"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/03/2017

Jurisprudência (575)


Processo de insolvência; 
arresto; oponibilidade

 
1. O sumário de RP 21/11/2016 (335/12.0TYVNG-G.P1) é o seguinte:

I- O arresto constitui uma penhora antecipada, exercendo uma função meramente instrumental relativamente ao processo de execução, sendo ineficazes em relação ao credor (arrestante) os atos de disposição dos bens arrestados, nos termos do art.º 622.º do CC.
 
II - Provando-se que o arresto a favor do autor foi registado em data anterior àquela em que a sociedade insolvente adquiriu os bens, tal aquisição é ineficaz e inoponível relativamente ao credor arrestante, sendo os bens onerados insuscetíveis de apreensão a favor da massa insolvente.
 
III - À conclusão anterior não obsta o disposto no n.º 1 do art.º 149.º do CIRE, considerando que a alínea a) da referida disposição legal se reporta ao arresto para garantia de créditos sobre a insolvente (adquirente dos bens), e o que está em causa na situação enunciada é o arresto para garantia de um crédito sobre a alienante dos bens.
 
IV - A situação descrita enquadra-se na previsão legal da alínea c) do n.º 1 do artigo 141.º do CIRE, devendo os bens onerados com arresto com registo anterior à aquisição pela insolvente, serem separados da respetiva massa, a fim de viabilizar a realização do direito do credor arrestante na execução instaurada contra a alienante dos bens, sem prejuízo de reverter para a massa insolvente o remanescente da venda.
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Na situação sub judice, as datas são particularmente relevantes, e por essa razão se passam a enunciar cronologicamente os factos mais relevantes (datas de registo):
 
1) o arresto a favor do ora autor, sobre as frações em causa, foi registado em 21.04.2005;
 
2) a sociedade “B…, S.A.”, adquiriu as referidas frações, tendo procedido ao registo da aquisição em 18.11.2009;
 
3) a insolvência da sociedade “B…, S.A.” foi decretada em 28.03.2012;
 
Em suma: quando a sociedade insolvente adquiriu as frações autónomas, já sobre estas incidia arresto a favor do recorrente, com registo efetuado havia cerca de 4 anos.
 
Vejamos agora o que dispõe o artigo 149.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [...]:
 
1 - Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido:
 
a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;
 
b) Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil. 
 
2 - Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido.
 
A questão que se coloca é a de saber se a situação sub judice se integra na previsão legal da alínea a) do n.º 2 do normativo transcrito.
 
Na sentença, optou-se pela resposta afirmativa.
 
Salvo todo o respeito devido, tal interpretação não teve em conta a cronologia do registo predial e as consequências que, imperativamente, a lei retira desse fator.
 
Com efeito, quando a sociedade, que veio a ser declarada insolvente, adquiriu as frações em causa, já as mesmas haviam sido objeto de arresto registado, pelo que, nos termos do citado artigo 622.º do Código Civil, os atos de disposição posteriores sempre teriam de ser ineficazes em relação ao credor (recorrente), não produzindo quaisquer efeitos em relação a este que, uma vez transformado o arresto em penhora (o que veio a ocorrer) podia prosseguir com a execução e posterior venda dos bens, apesar de estes terem saído do património do devedor.
 
Reiterando todo o respeito devido, na sentença recorrida confunde-se o arresto para garantia de um crédito sobre a insolvente (situação integrável no n.º 2 do artigo 149.º do CIRE), com o arresto anterior (com registo prévio à aquisição pela insolvente), que garantia o crédito de um outro devedor (da sociedade alienante), não integrável na previsão legal da citada norma.
 
Refere-se na fundamentação da sentença recorrida:
 
«Os objectivos prosseguidos pelo processo de insolvência, através dos vários mecanismos processuais nele previstos, passam fundamentalmente por, num único processo, reunir todos os bens que constituem o património do devedor/insolvente, por meio da sua apreensão para a massa insolvente, proceder à sua liquidação, e, através do produto assim obtido, satisfazer, na medida do possível, os créditos dos credores daquele. Ou seja: “A razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece”, in Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, Coimbra, 2009, p. 167).».
 
Estamos de acordo com a natureza do processo de insolvência, como execução universal, e com o princípio da relativa igualdade dos credores, traduzido no facto de não lhes assistirem quaisquer outros privilégios ou garantias para além daqueles que decorrem do regime legal da insolvência (diferenciação prevista no art.º 47/4 do CIRE).
 
Mas, atenção: o recorrente não é credor da sociedade insolvente. O recorrente é, sim, credor da sociedade C…, Lda., e registou o arresto sobre os bens (frações autónomas) quando eles pertenciam à referida sociedade, muito antes de esta os ter alienado à sociedade “B…, S.A.”, cuja insolvência veio a ser declarada mais tarde.
 
Face às datas de registo (do arresto e da posterior aquisição das frações), não restam dúvidas quanto à plena aplicabilidade do disposto no artigo 622.º do Código Civil, não sendo oponível ao recorrente/arrestante, a aquisição posterior por parte da sociedade que veio a insolver, nada podendo obstar a que o ora recorrente realize plenamente o seu direito de crédito (sobre a devedora C…, Lda.), no âmbito da execução que instaurou, sem prejuízo de o remanescente da venda judicial reverter para a massa insolvente e aí ser repartido pelos credores desta."
 
[MTS]