"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/03/2017

Jurisprudência (579)


Imunidade de jurisdição;
acta iure gestionis



1. O sumário de RL 10/11/2016 (9677/15.1T8LSB-A.L1-6) é o seguinte:


- Radicando a regra da imunidade de jurisdição no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, só se justifica que tenha aplicação quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despidos de jus imperii. É este entendimento que está mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais.
 
- Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro (Mali) contra o qual foi interposto um procedimento cautelar, visando impedir o acionamento de garantias bancárias, prestadas no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre aquele Estado e uma sociedade portuguesa.
 
- A garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário, certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato.
 
- Nas relações entre o ordenador de uma garantia autónoma “on first demand” e o beneficiário, aquele só pode intentar, em sede judicial, providência cautelar, destinada a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário. 
 
- O critério para aferir dos limites à recusa de pagamento de uma garantia bancária tem de ser muito restritivo com exigência de clara, inequívoca e manifesta má-fé, por parte do beneficiário, sob pena de se desvirtuar a razão de ser da garantia bancária automática.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"O recorrente invoca desde logo a excepção da sua imunidade de jurisdição.

Importa, pois, apreciar se o Estado do Mali pode ser condenado por um Tribunal de um outro Estado, neste caso, um tribunal Português.

Não existindo tratado ou convenção vinculativa para o Estado Português a regular a matéria em causa, importa analisar a questão à luz da regra consuetudinária de Direito Internacional, segundo a qual, em face da independência recíproca dos Estados e de harmonia com o antigo princípio par in parem non habet jurisdictionem, os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus.

Porém, importa notar que “a jurisprudência nacional tem-se mostrado, neste domínio, particularmente oscilante, entre uma concepção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1997, processo n.º 809/96-A, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 473; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de 1989, processo n.º 4918, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, tomo IV, pág. 178, de 4 de Maio de 1994, processo n.º 704/92, de 23 de Fevereiro de 2000, processo n.º 8356; e do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Janeiro de 1981, processo n.º 15 139, na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo I, pág. 183) e uma concepção mais restrita, como a do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Maio de 1990, processo n.º 6319, confirmado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 1991, processo n. 2927, no Boletim do Ministério da Justiça, n. 403, pág. 267.” [Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-11-2002, Processo 01S2172 [...]]. 


Parece ser esta a posição mais correcta, pois que radicando a regra da imunidade de jurisdição no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, só se justifica que tenha aplicação quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despidos de jus imperii. É este entendimento que está mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais [Idem].

“As sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm, desde há vários anos, salientado que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quanto estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil e comercial), o que inclui, além do mais (transacções comerciais, contratos para fornecimento de serviços, empréstimos e obrigações financeiras, titularidade, posse e uso de propriedade, protecção da propriedade industrial e intelectual, acções in rem relativas a navios e cargas, etc.), "contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party" (cfr. artigo III, d), do Projecto de Resolução relativo à Imunidade de Jurisdição dos Estados, apreciado na sessão plenária de Santiago de Compostela, em 1989, publicado no Annuaire de l’Institut de Droit International, vol. 63, tomo II, pág. 83-120; artigo II, c), da Resolução adoptada na sessão de Basileia, em 1991, publicada no Tableau des Résolutions Adoptées (1957-1991), Instituto de Direito Internacional, Paris, 1992, págs. 220-231)” [Idem].[Idem]

Ora, no caso em apreço, o que está em causa é a celebração de um contrato de empreitada, mediante o qual uma empresa portuguesa de comprometeu a realizar uma obra para o Estado do Mali. E é no âmbito da execução desse contrato de empreitada que surgiu a questão particular deste procedimento cautelar que se prende com o acionamento de garantias bancárias prestadas. A prestação de garantias bancárias é um acto típico de gestão privada e nada nos permite identificar características próprias de gestão pública, nos termos dessa contratação.

Cremos, portanto, que este é um caso, em que deve ser afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro pois estão em causa relações reguladas pelo direito privado e não actos relativos ao exercício do poder público (jus imperii).

Não se verifica pois, a invocada excepção da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Improcedem as conclusões de recurso a este propósito."


[MTS]