"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/03/2017

Jurisprudência (584)


Notário; controlo da legalidade;
articulado deficiente; dever de prevenção do tribunal


1. O sumário de RP 5/12/2016 (406/14.8TBMAI.P1) é o seguinte:

I - Mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino, sendo que à luz deste sistema o notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim, mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública.
 
II - Entre o notário e as partes não se estabelece qualquer vínculo de cariz negocial, pelo que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza extracontratual.
 
III - A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei, competindo-lhe, por isso, o controlo da legalidade do negócio, visando, designadamente, detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas.
 
IV - O notário, enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, não pode recusar a sua intervenção com fundamento na anulabilidade ou ineficácia do ato, devendo, contudo, por mor do disposto no nº 3 do art. 11º do DL nº 26/2004, de 4 de fevereiro, advertir os interessados da existência do vício e consignar no instrumento a advertência feita.
 
V - O referido normativo assume natureza de norma de proteção, porquanto - ao impor ao notário (qual “conselheiro” das partes) o dever de advertir os outorgantes da existência de qualquer vício que, em alguma medida, possa condicionar a manifestação da sua vontade negocial - visa tutelar o interesse destes últimos, obstando à prática de ato que possa revelar-se patrimonialmente lesivo.
 
VI - O facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
 
VII - O estrito cumprimento do poder funcional estabelecido na alínea b) do nº 2 do art. 590º do Código de Processo Civil implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado.
 
VIII - O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
 
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
 
"No caso em apreço, como deflui da exegese da petição inicial, verifica-se que o autor/apelante filia a concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz no presente processo no facto de o réu C…, aquando da celebração da escritura pública destinada a documentar o contrato de compra e venda que teve por objeto mediato o imóvel identificado nesse articulado - na qual o autor interveio na qualidade de comprador -, não ter cumprido os seus deveres enquanto notário, posto que, nesse ato, não fez, como se impunha, a advertência às partes outorgantes de que o imóvel se encontrava onerado por uma penhora.

A presente ação, tal como o autor a configura, integra um caso de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, domínio em que imperam, fundamentalmente, os arts. 483º a 498º do Código Civil [...]. [...]

No ato decisório sob censura considerou-se [...] não estarem, in casu, reunidos os pertinentes pressupostos ou requisitos da aludida fonte de obrigações, mormente por ausência de nexo de causalidade entre o comportamento do réu C... e os danos cuja reparação o autor reclama na presente demanda.

É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, já que é primordialmente em relação à afirmação da ausência do apontado nexo causal que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva apresentada pelo apelante, que esgrime argumentação no sentido de que é manifesta a existência de nexo de causalidade (seja à luz da teoria da causalidade adequada, seja sob o enfoque da teoria do fim da norma) entre o comportamento omissivo do réu e os danos que afirma ter sofrido em consequência do mesmo.

Na resolução da enunciada questão importa, como prius, caraterizar, ainda que em termos necessariamente sumários, o concreto estatuto dos notários, sendo que nos autos não é fundadamente posto em crise que a ajuizada escritura pública foi formalizada pelo réu na sua qualidade de notário.

Como é consabido, desde, pelo menos, a reforma levada a cabo pelos Decretos-Leis nºs 26/2004 (que aprovou o Estatuto do Notariado) e 27/2004 (que criou a Ordem dos Notários e o respetivo Estatuto), ambos de 4 de fevereiro, mostra-se consagrado entre nós o denominado sistema ou modelo do notariado latino [...], sendo que à luz deste sistema o notário é um profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. Ou seja, notário é um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública. Assim, é simultaneamente um oficial público e um profissional do direito, como, aliás, expressamente preceitua o nº 2 do art. 1º do DL nº 24/2004, dispondo ainda o nº 3 do mesmo normativo que “a natureza pública e privada da função notarial é incindível”.

Como oficial público exerce a fé pública notarial que tem e sustenta um duplo conteúdo: na esfera dos factos, a exatidão dos que o notário vê, ouve ou percebe pelos seus sentidos; na esfera do direito, a autenticidade e força probatória das declarações de vontade das partes no instrumento público, redigido segundo as leis. Deste modo, exerce uma função pública, documental ou de autenticação; função dirigida ao documento, na sua expressão externa de autenticidade dos factos ou das declarações de vontade, do ato ou da relação jurídica. Já como profissional de Direito exerce uma função jurídica privada: função assessora, de assistência, conselho e formação da vontade das partes e de adequação ou conformação daquela vontade ao ordenamento jurídico. Dito de outro modo, a função jurídica privada refere-se à preparação do documento, à recolha da vontade das partes, ao conselho, à pedagogia e auxílio dessa vontade e à sua interpretação, bem como à expressão da vontade das partes, à redação e conformação do ato ou relação jurídica.

Daí que o notário venha sendo considerado um terceiro imparcial, que deve estar sempre acima dos interesses comprometidos: a sua profissão obriga-o a proteger as partes com igualdade, libertando-as, com as suas explicações imparciais e oportunas, dos enganos a que poderia conduzi-las a sua ignorância. O notário tem pois o dever (legal) de cuidar dos interesses de ambas as partes e, buscando o ponto de equilíbrio, servir a vontade comum, obtendo uma composição duradoura, e se possível definitiva, dos interesses opostos. O notário serve as partes e nenhuma em particular. Para o notário não há clientes, há apenas outorgantes, e todos merecem o mesmo tratamento e proteção. Por via disso, não se estabelecendo entre o notário e as partes qualquer vínculo de cariz negocial, propendemos, pois, a considerar que a eventual responsabilidade em que aquele incorra no exercício das suas funções assumirá natureza aquiliana, que não contratual.

Portanto, no exercício desse múnus o notário (latino), a par da função estritamente documental, desempenha outrossim uma função jurídica privada [...] – que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequação ou conformação da vontade dos particulares ao ordenamento jurídico.

É certo que a segurança que o notário proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expande pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direções (eficácia probatória, executiva, legitimadora, etc.).

Mas a importância desta segurança formal não pode fazer esquecer que antes dela há uma outra – a segurança substancial – que requer que o ato ou contrato documentado seja válido e eficaz, segundo as prescrições do ordenamento jurídico. O instrumento público só pode ter por conteúdo um negócio válido. A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé em conformidade com a lei. Existe, por conseguinte, um controlo [...] da legalidade do negócio, cabendo ao notário detetar incapacidades, erros de direito ou de facto, coações encobertas, fraudes à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. Por isso se tem justamente afirmado que a segurança preventiva é uma consequência ou resultado normal da sua intervenção [...].

Como se assinalou, o notário enquanto operador jurídico, da lei e da vontade das partes, tem de ser (é, por definição) completamente independente no exercício da sua função, autónomo e responsável, não subordinado, devendo obediência apenas à lei e à vontade das partes, encontrando-se outrossim obrigado a proteger os outorgantes com igualdade e imparcialidade, deveres estes que resultam juspositivados, designadamente, nos arts. 10º, 11º, 12º, 13º e 15º do DL nº 26/2004. [...]

Ora, malgrado na decisão recorrida se tenha afirmado a antijuridicidade do comportamento do réu C… (por inobservância da referida regra legal), facto é que nela se concluiu pela inexistência de fundamento para a responsabilização dos réus, por inverificação do necessário nexo causal entre o descrito comportamento omissivo do identificado demandado e os danos que o autor afirma ter sofrido na sua esfera jurídica. [...]

[...] revertendo ao caso sub judicio, importa, desde logo, reter que o sentido decisório sufragado na sentença recorrida se ancorou primordialmente no entendimento de que “nada do que foi alegado permite ao Tribunal apurar pela existência de um nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano que o autor diz ter sofrido”, afirmando, ainda que em obicter dictum, que a violação do citado art. 11º, nº 3 do DL nº 26/2004 por parte do réu C… “não foi a causa direta e necessária do dano sofrido pelo autor”.

Ora, procedendo à exegese da petição inicial, apesar de essa peça processual não primar por uma cabal densificação factual do aludido requisito da responsabilidade civil, certo é que, ainda assim, dela deflui que o autor acaba por alegar (cfr. arts. 6º e 10º) que se soubesse que o imóvel estava onerado com uma penhora não realizaria o ajuizado contrato de compra e venda, adiantando outrossim que desconhecia a existência desse ónus aquando da celebração da escritura destinada a documentar esse ato alienatório.

Admite-se, neste particular, que o aludido articulado se revele deficiente [...] na exposição e concretização de substrato factual que permita afirmar, de forma concludente, que o demandante não teria despendido as quantias que alegadamente afirma ter desembolsado como consequência da celebração do ajuizado contrato de compra e venda, maxime quando, na economia da ação, pretende obter do réu C… (e das respetivas seguradoras) a reparação desse prejuízo por ausência da advertência de que o imóvel que constituía objeto mediato desse contrato se encontrava onerado por uma penhora.
 
Nessas circunstâncias justificar-se-ia, pois, que em despacho pré-saneador (art. 590º, nºs 2 al. b) e 4 do Cód. Processo Civil) ou até na audiência prévia (art. 591º, nº 1 al. c), 2ª parte do CPC) o demandante fosse convidado ao aperfeiçoamento do dito articulado, de molde a que se lograsse suprir a mencionada deficiência na alegação do nexo causal [Como adverte TEIXEIRA DE SOUSA, In Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?, pág. 7 e seguinte, disponível no blog do IPPC, a omissão do poder-dever que compete ao tribunal por força do disposto no art. 590º do CPC “constitui, nos termos do art. 195º, nº 1 do mesmo diploma, uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal)”, acrescentando, com o concordamos, que “o que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado”]."

[MTS]