Título executivo; titulo de crédito como documento quirógrafo;
nulidade da relação subjacente
I – Anteriormente à redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, o art.º 46º do CPC, elencando nas suas diversas alíneas as espécies de títulos executivos, consignava na sua alínea c): “As letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quis conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis”.
II - Na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, o teor desse artº 46º passou a ser o seguinte:
«À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.».
III - A alínea c) do artigo em causa veio a ser modificada pelo DL nº 38/2003, de 08/03, passando a ter a seguinte redacção: «Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
IV - Finalmente, o DL nº 226/2008, de 20/11, introduziu a essa alínea c) a seguinte redacção: «Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
V - Porém, deixando de valer enquanto título cambiário, o cheque prescrito era ainda aceite, maioritariamente, diga-se, por parte da doutrina e da jurisprudência, como mero quirógrafo do crédito, como título executivo, incluído na alínea c) do nº 1 do referido artº 46º - porquanto se considerava o mesmo como documento particular, assinado pelo devedor, que importava o reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante era determinado -, desde que nele, ou na petição executiva, se tivesse feito constar a relação causal ou subjacente.
VI - A alínea c) do nº1 do art. 703º do nCPC manteve e explicitou a precedente orientação jurisprudencial maioritária, consagrando expressamente que valem como títulos executivos os títulos de crédito que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstracta, podem valer como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo.
VII - O documento particular que contenha o reconhecimento de uma dívida, assumida pelo devedor, pode ser dado à execução, mesmo que dele não conste a causa da obrigação, devendo, porém, neste caso, o exequente alegar no requerimento executivo essa causa da obrigação, ou seja a causa de pedir.
V - Quando a relação obrigacional subjacente respeita a um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, a letra sem valor cartular pode constituir título executivo da restituição da quantia mutuada.
VI - Reconhecida a nulidade que inquina a relação subjacente, não há obstáculo a que, não sendo infirmada a realidade do presumido empréstimo, se reconheça o direito de exigir a restituição da quantia a que o título alude, não em execução do mútuo, mas como consequência legal da nulidade, com base no art. 289.º, n.º 1, do CC.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"Anteriormente à redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, o art.º 46º do CPC, elencando nas suas diversas alíneas as espécies de títulos executivos, consignava na sua alínea c): “As letras, livranças, cheques, extractos de factura, vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quis conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis”.
Na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, o teor desse artº 46º, passou a ser o seguinte:
«À execução apenas podem servir de base: [...]
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto; [...]».
A alínea c) do artigo em causa veio a ser modificada pelo DL nº 38/2003, de 08/03, passando a ter a seguinte redacção: «Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
Finalmente, o DL nº 226/2008, de 20/11, introduziu a essa alínea c) a seguinte redacção: «Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto».
Assim, à data da instauração da execução “sub judice” o cheque (reportamo-nos ao cheque em geral e não àquele que concretamente aqui está em causa), era título executivo contemplado na al. d) do nº 1 do artº 46º do CPC, na versão deste que imediatamente antecedeu ao NCPC, porquanto a Lei Uniforme relativa ao Cheque (doravante LUCH) atribui força executiva ao cheque quando este seja apresentado a pagamento no prazo de oito dias, começando a contar-se esse prazo a partir do dia indicado no cheque como data de emissão (art.º 29.º - I e IV da LUCH), sendo que a respectiva acção executiva, sob pena de prescrição, teria de que ser instaurada no prazo de seis meses contados do termo do prazo para a sua apresentação.
Porém, deixando de valer enquanto título cambiário, o cheque prescrito era ainda aceite, maioritariamente, diga-se, por parte da doutrina e da jurisprudência, como mero quirógrafo do crédito, como título executivo, incluído na alínea c) do nº 1 do referido artº 46º - porquanto se considerava o mesmo como documento particular, assinado pelo devedor, que importava o reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante era determinado -, desde que nele, ou na petição executiva se tivesse feito constar a relação causal ou subjacente.
Essa questão, que era controvertida na jurisprudência e na doutrina, no âmbito da vigência do artº 46º, nº 1, do CPC, foi definitivamente resolvida ao consagrar-se, sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, no preceito correspondente do NCPC - artº 703º (“rectius” no nº 1 al. c) desse artigo) -, serem títulos executivos «…Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
Ora, essa norma do artº 703º do NCPC, na medida em que veio resolver, no sentido de um dos entendimentos jurisprudenciais, que quanto a essa matéria se apresentavam no âmbito da norma correspondente do direito pretérito, pode considerar-se como lei interpretativa e, como tal, aplicar-se retroactivamente (artº 13º, nº 1, do Código Civil). [...]
Mas o entendimento, resolvido agora no NCPC, que, como dissemos, dividia a jurisprudência e a doutrina, sobre a valia, enquanto títulos executivos, no âmbito dos documentos particulares, dos títulos de crédito prescritos, tinha, para alguns que o seguiam, uma condicionante importante a que subordinavam a exequibilidade desses títulos e que consistia na circunstância de não haver invalidade formal do negócio jurídico subjacente ao título, pois que, havendo-a, isso afectaria «…não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo.» [Cfr. assim, exemplificativamente, o Acórdão do STJ, de 20/02/2014 (Revista nº 22577/09.5YYLSB-A-1.S1), relatado pelo Exmo. Conselheiro Serra Batista.].
Seguindo este entendimento, podem citar-se, entre outros, para além do Acórdão do STJ de 20/02/2014, [...] o Acórdão desta Relação de Coimbra de 27/01/2015 (Apelação nº 834/13.6TBCVL-A.C1) [...] relatado pelo Exmo. Desembargador Arlindo de Oliveira, onde se escreveu: «[…] Atento a que o cheque ou letra, em tal caso, não são dados à execução na qualidade de títulos de crédito/cambiário em si mesmo considerados, mas como meros quirógrafos, acompanhados da alegação/descrição da relação/negócio subjacente, da razão da sua emissão, a causa de pedir não radica nas qualidades do cheque ou da letra como títulos, mas sim, ao invés, na relação substantiva que está na base da emissão dos cheques, no negócio ou contrato que está na génese da sua emissão.
Contrato que, in casu, é um mútuo, no montante de 15.000,00 €, que não foi reduzido a escrito, nem como tal se podendo entender que essa falha pode ser colmatada com a emissão do cheque, dado que no mesmo nada se refere quanto à existência do mútuo, pelo que tudo se passa como se não haja documento que o (mútuo) corporize, sem esquecer que, como determinado pelo artigo 364.º, n.º 1, do CC, em caso de exigência legal, como forma da declaração negocial, de documento, em qualquer das suas modalidades, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.[…]».
Formou-se, porém, uma corrente jurisprudencial que aceitando a exequibilidade do título cambiário prescrito, não a posterga mesmo que se verifique a aludida invalidade formal do negócio jurídico subjacente.
Exemplo deste último caso é o entendimento seguido no Acórdão do STJ de 27/05/2014 (Revista nº 268/12.0TBMGD-A.P1.S1), relatado pelo Exmo. Conselheiro Pinto de Almeida, de cujo sumário consta: «[…] O documento particular que contenha o reconhecimento de uma dívida, assumida pelo devedor, pode ser dado à execução, mesmo que dele não conste a causa da obrigação, devendo, porém, neste caso, o exequente alegar no requerimento executivo essa causa da obrigação, ou seja, a causa de pedir.
V - Quando a relação obrigacional subjacente respeita a um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, a letra sem valor cartular pode constituir título executivo da restituição da quantia mutuada.
VI - Reconhecida a nulidade que inquina a relação subjacente, não há obstáculo a que, não sendo infirmada a realidade do presumido empréstimo, se reconheça o direito de exigir a restituição da quantia a que o título alude, não em execução do mútuo, mas como consequência legal da nulidade, com base no art. 289.º, n.º 1, do CC.[…]».
Foi também neste último sentido que seguiu o Acórdão desta Relação de 24/04/2012 (Apelação nº 169/10.6TBCSC-B.C1) relatado pelo Exmo. Desembargador Moreira do Carmo - com ampla citação de arestos em idêntico sentido e em sentido contrário -, podendo ler-se no respectivo sumário: «[…]3.- Baseando-se a execução em cheques prescritos, mas invocada, no requerimento executivo, a obrigação emergente de negócio jurídico formal, deve a mesma prosseguir para apuramento da existência de tal obrigação, sem prejuízo de o executado a poder impugnar na respectiva oposição.
4.- A nulidade do mútuo, por falta de forma legal, não retira a exequibilidade a tais documentos, pois que por força do Assento do STJ nº 4/95 (hoje AUJ), a obrigação de restituição sempre existirá ao abrigo do art. 289º, nº 1, do CC, sendo avesso à celeridade e economia de meios obrigar o exequente a deitar mão da acção declarativa para obter a prestação.[…]».
Em semelhante sentido seguiu, também, o Acórdão da Relação do Porto de 19/01/2010 (proc. nº 6357/04.7TBMTS-B.P1), ao que se saiba não publicado, relatado pela aqui 1ª Adjunta, onde se escreveu: «[…]Nesta execução o Exequente apresentou como título executivo o escrito particular, assinado pela Executada, emitido para documentar a alegada entrega de € 475.000,00 efectuada pelo Exequente à Executada, a pedido desta, a título de empréstimo gratuito.
Nesse escrito a Executada, numa declaração de ciência, relata ter recebido, a seu pedido, do Exequente a quantia de € 475.000, a título de empréstimo, reconhecendo que essa quantia deveria ser restituída a este até ao final do mês de Julho de 2004.
Mesmo considerando, apesar das dificuldades interpretativas que se podem suscitar, que a declaração de reconhecimento da obrigação de restituição se reporta à obrigação contratual resultante da celebração do contrato de mútuo e não à obrigação de restituição resultante dos efeitos retroactivos da nulidade desse contrato, por inobservância da forma legalmente imposta, esse escrito é título suficiente para credenciar a propositura duma acção executiva, visando o cumprimento coercivo desta última obrigação de restituição.
Na verdade, do mesmo consta uma declaração de ciência emitida pela Executada em que esta reconhece que o Exequente lhe entregou a título de empréstimo a quantia de € 475.000,00, cuja restituição coerciva agora reclama, resultando do próprio escrito que documentou essa entrega que o contrato de mútuo que lhe está subjacente é nulo por falta de forma - art.º 220º, do C. Civil -, o que é do conhecimento oficioso do tribunal - art.º 286º, do C. Civil.
O facto constitutivo da obrigação de restituição como efeito dessa nulidade - art.º 289º do C. Civil - encontra-se, pois, devidamente certificado pelo escrito junto pelo Exequente, pelo que o mesmo não carece de eficácia executiva, relativamente à obrigação exequenda.
Não se verifica, pois, a existência de qualquer facto impeditivo da obrigação exequenda que o tribunal deva conhecer oficiosamente, nem o título apresentado é inexequível, pelo que não há motivo para julgar extinta a execução.[…]»."
3. [Comentário] Não parece ser aceitável a orientação jurisprudencial que entende que, apesar de o documento apresentado como título executivo ser nulo por vício de forma, ainda assim esse documento pode valer como título executivo para exigir a restituição do que tenha sido realizado em cumprimento do negócio nulo (cf. art. 289.º CC). Tal concepção equivaleria a admitir a existência de títulos executivos "negativos", se assim se pode dizer: o documento particular (legalmente insuficiente) não pode servir de base a uma execução destinada a obter o que devia ter sido realizado em função do negócio, mas pode fundamentar uma execução destinada a obter o que não devia ter sido cumprido em função desse negócio.
A orientação é discutível se o documento particular for utilizado como título executivo numa execução destinada, ab initio, a obter a restituição do que foi indevidamente prestado, mas é ainda mais discutível se com ela se pretende defender a admissibilidade da convolação da execução em situações como a seguinte: o exequente instaura a execução pretendendo obter a prestação que resulta do contrato; o executado alega, em embargos de executado, a inexigibilidade da obrigação, dado que o contrato que a constituiu é nulo (cf. art. 731.º CPC); a execução convola-se (oficiosamente? -- cabe perguntar) em execução para obter a restituição do que foi prestado em cumprimento do negócio nulo.
Seja como for, o problema deixou de se colocar em função do elenco dos títulos executivos que consta do art. 703.º, n.º 1, CPC, dado que os documentos particulares deixaram de ser título executivo (se bem ou mal, isso é questão que agora não tem de ser tratada). Supõe-se que a referida orientação jurisprudencial não vai ao ponto de considerar que são título executivo os documentos particulares que substituem os (ou que estão em vez dos) exigíveis documentos autênticos.
O problema pode colocar-se, no entanto, em casos semelhantes ao apreciado no acórdão da RC: o título de crédito que é apresentado como título executivo encontra-se prescrito e só pode valer como documento quirógrafo, hipótese na qual incumbe ao exequente o ónus de invocar a correspondente relação subjacente (cf. art. 703.º, n.º 1, al. c), CPC). Compreende-se que assim seja: se o título executivo não pode valer como incorporando uma relação abstracta (como é a relação cambiária), então tem de ser invocada a causa debendi da obrigação exequenda.
A resposta que se impõe nesta hipótese não difere do que anteriormente se disse, por uma razão simples: o que deve ser alegado como relação subjacente tem de estar em linha com a obrigação que resultaria do título de crédito se este não estivesse prescrito. Dito de outra forma: a relação subjacente tem de fundamentar a mesma obrigação exequenda que é titulada pelo título de crédito, dado que, como se referiu, aquela relação subjacente tem de funcionar, quanto à obrigação exequenda, como causa debendi. Aliás, se assim não fosse, não se perceberia a utilidade da alegação da relação subjacente pelo exequente. Se este ónus de alegação não impuser a alegação de uma relação subjacente que seja paralela à relação cambiária e que possa constituir a causa debendi da obrigação exequenda, cabe então perguntar qual a função que esse ónus pode cumprir na execução.
Aquela necessidade de correspondência (ou de paralelismo) entre a relação cambiária e a relação subjacente -- ou seja, entre a obrigação exequenda e a respectiva causa debendi -- não se encontra preenchida quando a relação cambiária (a que respeita o título de crédito prescrito) fundamenta uma obrigação de pagamento e a relação subjacente alegada pelo exequente constitui uma obrigação de restituição do que foi indevidamente prestado em cumprimento de um negócio inválido. Como é evidente, esta obrigação de restituição só existe porque aquela obrigação de pagamento não pode existir, pelo que não se verifica nenhuma correspondência entre as referidas obrigações.
Aliás, não é mesmo impossível pensar numa ineptidão do requerimento executivo por contradição entre o pedido executivo relativo à obrigação de pagamento (se o título executivo for um título de crédito, ainda que prescrito, só é possível pedir esse pagamento) e o fundamento invocado como causa debendi (cf. art. 186.º, n.º 1, al. b), CPC), dado aquele pedido é incompatível (e até contraditório) com esta causa (que respeita a uma obrigação de restituição, não a uma obrigação de pagamento).
Nesta perspectiva, não parece que a RC tenha decido bem.
MTS