"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/07/2023

Informação (294)


Interrupção estival


Como é habitual nesta altura do ano, o Blog interrompe a partir de hoje as publicações regulares. 

Espera-se retomar o ritmo habitual de publicações no início de Setembro.


MTS


Jurisprudência 2022 (234)


Herança indivisa;
herdeiros; legitimidade processual*


1. O sumário de RC 13/12/2022 (1889/20.2T8SRE.C1) é o seguinte:

I - À luz do atual regime processual civil, a herança aberta e indivisa não é dotada de personalidade judiciária, não podendo, por isso, estar em juízo, seja pelo lado ativo, seja pelo lado passivo da instância.

II - Intentada ação para reconhecimento do direito de propriedade de um dos autores e da herança aberta e indivisa por morte do seu cônjuge, figurando como autores também os filhos da falecida, como seus herdeiros, o respetivo direito dominial, no respeitante à herança, tinha de ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros (nessa qualidade), em bloco, em litisconsórcio necessário ativo.

III - Se tal ação fosse intentada pela própria herança indivisa (em seu próprio nome), falharia o pressuposto da personalidade judiciária, com as inerentes consequências ao nível da instância.

IV - Sendo demandantes todos os herdeiros da herança indivisa, ocorre legitimidade ativa, mas o direito dominial não pode ser reconhecido aos herdeiros, enquanto tais (por si e para si), apenas o podendo ser ao autor viúvo e à herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge.

V - Alegando-se claramente na ação serem tais autor viúvo e herança ilíquida e indivisa os únicos e exclusivos donos do prédio, adquirido por usucapião, é de entender que o pedido formulado pelos autores, embora imperfeitamente expresso (tendente, em sentido literal, ao reconhecimento de todos eles como donos daquele prédio), é o de condenação do réu no reconhecimento do direito dominial do autor viúvo e da herança ilíquida e indivisa, de que são herdeiros todos os demandantes.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Inalterado o quadro fáctico da causa, tal como traçado na sentença recorrida, importa agora saber se, ainda assim, incorreu tal sentença em erro de julgamento de direito, de molde a dever julgar-se improcedente a ação e procedente a reconvenção, como pretende o Apelante.

E deve começar por dizer-se, no plano jurídico, que aquele mostra ter alguma razão quanto a uma das críticas que apresenta.

Com efeito, concorda-se com o Recorrente quando afirma (cfr. conclusões 1.ª a 9.ª) que os AA. se apresentaram nos autos a litigar «na qualidade de únicos e universais herdeiros da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE FF» (cfr. a identificação dos demandantes na sua petição, a fls. 5 do processo físico), alegando taxativamente que aquela herança aberta e indivisa e o co-herdeiro (1.º A.) AA «são ou únicos donos e possuidores» dos elementos imobiliários em discussão (cfr., designadamente, os art.ºs 1.º e 49.º da petição).

É certo que no petitório oferecido na petição inicial – e outras versões posteriores houve, como já visto, dos pedidos – vem aludido, desde logo, de forma genérica, que deve o R. ser condenado a reconhecer que os AA. «são donos e legítimos possuidores», o que poderia fazer inculcar a ideia de um reporte aos cinco AA. pessoas singulares identificadas na parte inicial da petição, como se agissem todos por si – e para si, não em função da herança ilíquida e indivisa, de que são herdeiros –, como parece ter sido entendido no dispositivo da sentença, com enfoque exclusivo nesses cinco AA. e sem qualquer menção à dita herança ilíquida e indivisa.

Porém, mesmo atendendo aos pedidos originários da ação, constata-se que no pedido principal não são mencionados os nomes de cada um desses cinco AA. (surgindo apenas a genérica referência a «Os autores»), enquanto no rol dos pedidos subsidiários se começa por dizer, de forma esclarecedora, que «Se não se entender que o autor AA e a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF […] adquiriram por usucapião o prédio descrito no artigo 1º desta petição (…)».

Quer dizer, toda a causa de pedir é direcionada para um invocado direito dominial adquirido por via de usucapião pelo A. AA e pela Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF, compreendendo-se a intervenção dos demais AA. para assegurar a legitimidade ativa no concernente a uma herança aberta e indivisa, destituída de personalidade judiciária.

E da economia dos pedidos (mormente os principais, aqueles que aqui importam), em conjugação com tal causa de pedir, também tem de retirar-se, em adequada e situada/contextualizada interpretação, que a pretensão se dirige ao dito direito dominial, adquirido por via de usucapião, pelo A. AA e pela Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de FF (seu cônjuge falecido).

Com efeito, não há dúvidas quanto a ter sido claramente alegado na petição que:

- aquela herança ilíquida e indivisa e o co-herdeiro AA – o qual foi casado com FF, falecida em .../.../2004, de que são filhos os demais AA. – são os únicos donos e possuidores do mencionado prédio (art.º 1.º); e

- a dita herança ilíquida e indivisa e o A. AA são os único e exclusivos donos do mencionado prédio, adquirido por usucapião (art.º 49.º).

Assim sendo, estando os 2.º a 5.º AA. na ação para assegurar a legitimidade ativa (no que tange à herança), tem de concordar-se com o Recorrente quando alude à prática dos atos de posse em nome da herança, não podendo tais AA. (com exclusão do 1.º) pedir para si próprios o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do litígio, mas pedir, enquanto herdeiros da referida herança ilíquida e indivisa, o reconhecimento, a favor desta, que não deles (à exceção do dito 1.º A./viúvo), do direito de propriedade sobre o prédio em questão.

Nesta senda, concorda-se ainda que a comunhão hereditária não se confunde com a compropriedade, já que os herdeiros não são titulares simultâneos da mesma coisa, mas antes titulares de um direito à herança, como universalidade, não se podendo considerar, à priori, sobre qual ou quais dos bens em concreto o respetivo direito ficará a pertencer, não comportando, assim, uma declaração de propriedade sobre uma realidade ainda não determinada e, bem assim, que da aceitação sucessória apenas decorre para cada um dos herdeiros chamados à herança uma quota hereditária (cfr. conclusões 4.ª e 5.ª do Apelante).

Termos em que, até à partilha, «aos herdeiros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota, que sequer alegam) sobre cada ou qualquer um dos bens que integram o património hereditário» (conclusão 6.ª), sendo eles, enquanto tais, «titulares, tão somente, do direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota de cada um dos elementos a partilhar» (conclusão 7.ª), só depois da partilha podendo, cada herdeiro, «ficar a ser proprietário, ou comproprietário, de determinado bem da herança» (conclusão 8.ª).

Mas se «Daqui, resulta, por si só, o falecimento do primeiro pressuposto para os autores poderem ser reconhecidos como comproprietários do prédio objecto da acção (ou, singelamente, proprietários, na terminologia da sentença)», tal só vale para os ditos 2.º a 5.º AA., que intervêm apenas na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa, com vista a assegurar a legitimidade ativa nesta parte.

Na verdade, quanto à herança aberta e indivisa, o art.º 2091.º, n.º 1, do CCiv. estabelece a regra de que «os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros», esclarecendo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 152.) que se trata aqui «de casos de litisconsórcio necessário, para os quais o cabeça-de-casal já não tem legitimidade, e em que a falta de qualquer dos herdeiros interessados na acção é fundamento de ilegitimidade de qualquer dos intervenientes».

Com efeito, o art.º 6.º do CPCiv., na versão anterior à conferida pelo DLei n.º 180/96, de 25-09, dispunha apenas que a herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária.

Nesta expressão inicial – “a herança cujo titular ainda não esteja determinado” – podia facilmente incluir-se a herança jacente e a herança indivisa, pelo que se entendia que esta última tinha personalidade judiciária, podendo, por isso, estar, por si própria (obviamente, através de quem a representasse), em juízo, no lado ativo ou passivo da instância (como parte na causa) (---).

Porém, o art.º 6.º, n.º 1, al.ª a), do CPCiv., na versão introduzida pelo DLei n.º 180/96, de 25-09, passou a preceituar que têm personalidade judiciária a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado (---).

Sabida a diferença entre herança jacente (aberta mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado) e herança aberta e indivisa (já objeto de aceitação, expressa ou tácita), logo se verificou que esta nova formulação legal não contempla a herança indivisa como dotada de personalidade judiciária, com a consequência de não poder esta (ao contrário da herança jacente) ser parte em processos judiciais (cfr. art.º 11.º, n.º 1, do NCPCiv.), mormente, quanto ao que agora importa, como parte demandante.

Como claramente explicitado pela jurisprudência posterior àquela alteração legislativa:

«Isso significa, a contrario sensu, que a herança ainda não partilhada, mas cujos titulares quinhoantes estejam determinados, não tem personalidade judiciária.

Assim, em regra, se a herança tiver sido aceite, não obstante ainda não ter ocorrido a respectiva liquidação e partilha, o contraditório deve ser estabelecido com os herdeiros aceitantes.

Acresce que a herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado

Com efeito, embora a herança indivisa funcione para variados efeitos como património autónomo, este só tem personalidade judiciaria se os respectivos titulares não estiverem determinados, o que, na espécie, não ocorre.» (Assim, o Ac. STJ de 15/01/2004, Proc. 03B4310 (Cons. Salvador da Costa), em www.dgsi.pt.)

Assim sendo, fácil se torna concluir que, no regime atual, verificada a não jacência da herança, como in casu, por se tratar de herança indivisa (o que resulta incontroverso nos autos), é a mesma destituída de personalidade judiciária, o que consubstanciaria, se demandante fosse, exceção dilatória típica, de conhecimento oficioso [cfr. art.ºs 278.º, n.º 1, al.ª c), 576.º, n.º 2, 577.º, al.ª c), 578.º, e 591.º, n.º 1, al.ª b), todos do NCPCiv.].

Em suma, no caso dos autos, se surgisse como demandante a dita herança aberta e indivisa, teria de concluir-se pela respetiva falta de personalidade judiciária. [...]

Quanto ao pedido formulado pelos AA. é verdade que, de acordo com a melhor técnica, não deveria ter sido formulado nos termos em que o foi, porquanto os herdeiros do Sr. FF, não estão na acção a título pessoal, mas enquanto herdeiros, sendo que o direito que os autores se arrogam é contra a herança que eles aqui representam. Em bom rigor o pedido deveria ser formulado no sentido de eles ser[em] condenados a reconhecer a existência do crédito reclamado pelos AA., e a satisfazer pelas forças da herança (Ac. STJ de 19.3.1992; BMJ; 415.º - 658).» (---).

Bem se compreende que tenha vindo a ganhar terreno, nos Tribunais superiores, o entendimento no sentido de os titulares dos direitos e deveres da herança aceite e indivisa, em comum e sem determinação de parte, serem os herdeiros/sucessores, por aquela não ser sujeito de direitos, não dispondo de personalidade judiciária e, como tal, não poder ser parte ativa nem passiva. Por isso, sabido só poder ser condenado ou absolvido quem for parte na lide, se pelos encargos da herança, incluindo as dívidas do falecido, responde o património autónomo constituído pelos bens da herança indivisa, para esse fim serão demandados os herdeiros/sucessores nessa qualidade (Vide Ac. TRP de 04/11/2019, Proc. 1136/18.7T8VFR.P1 (Rel. Fátima Andrade), em www.dgsi.pt, sublinhando, nesta senda, que, «Em ação na qual são RR. os herdeiros/sucessores do autor de herança indivisa e aceite, em que a A. alega ser credora da herança e demandar os herdeiros (nessa qualidade) para que possa obter a responsabilização daquela herança “R”, é de entender que o pedido formulado pela A., embora imperfeitamente expresso, é o de condenação dos RR. na qualidade em que são demandados a reconhecer a existência do crédito reclamado da responsabilidade da herança».).

Pode, pois, dizer-se que a atuação em juízo quanto a uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do art.º 2091.º, n.º 1 do CCiv. (Ac. TRC de 26/02/2019, Proc. 1222/16.8T8VIS-C.C1 (Rel. António Carvalho Martins), em www.dgsi.pt.).

Como pode ler-se em Estudo de 27/02/1986, intitulado “Herança Indivisa – Sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros Pelas Dívidas da Herança” (---), neste tipo de situações, «os direitos só podem ser exercidos contra todos os herdeiros» (citando Oliveira Ascensão). E prossegue o respetivo Autor: “Os herdeiros são sempre parte legítima como «representantes» da herança indivisa, na acção em que se pede a satisfação de encargos desta. Se se pretender, porém, responsabilizá-los directamente pela dívida, o problema já não será de legitimidade, mas sim de mérito, pelo que deviam os herdeiros ser absolvidos do pedido e não da instância. // Com efeito, deve relembrar-se que estamos perante uma massa de bens sem personalidade, sem personalidade jurídica ou judiciária, que pertence em bloco e só em bloco aos co-herdeiros. É uma verdadeira colectividade, com bens encargos próprios”.

Cabe agora, com reporte ao caso sub judice, responder às questões que aqui se colocam, com projeção no desfecho do peticionado na ação.

Assim, deve dizer-se, como visto, que a ação não poderia ter sido intentada pela herança indivisa (em seu próprio nome), já que destituída de personalidade jurídica e judiciária, o que levaria ao falhanço do pressuposto indeclinável da personalidade judiciária.

Por isso, a legitimidade ativa tem de recair sobre o conjunto dos herdeiros, em bloco, os quais, como visto também, são parte legítima como «representantes» da herança indivisa, incluindo na ação em que se pretenda o reconhecimento de um direito de propriedade sobre imóvel que cabe à herança. São estes que têm de estar, enquanto herdeiros, no lado ativo da instância.

Assim acontece com os 1.º a 5.º AA., enquanto herdeiros da falecida FF, discutindo direito que cabe à dita herança.

Donde que, demonstrados os respetivos pressupostos, o direito dominial haja de ser reconhecido – em adequada interpretação do pedido – por reporte à herança, e não aos AA. por si e para si.

Mas já quanto ao 1.º A. tem de reconhecer-se que lhe assiste um direito dominial em paridade com a herança, para além da sua posição de herdeiro.

Com efeito, este atua por si e para si, para além de como herdeiro da sua falecida esposa.

Em suma, permitindo o pedido formulado a interpretação (corretiva/adaptativa) aludida, tem de alterar-se a sentença, na parcial procedência da apelação, em moldes de se entender que o A. AA e a herança ilíquida e indivisa – de que são herdeiros todos os AA. – adquiriram, por usucapião, o discutido direito de propriedade, posto não ter ocorrido alteração da factualidade de suporte, que se mostra devidamente apreciada na sentença em crise."

*3. [Comentário] Salvo melhor opinião, em vez de se afirmar que "o A. AA e a herança ilíquida e indivisa [...] adquiriram, por usucapião, o discutido direito de propriedade", teria sido melhor concluir que essa aquisição ocorreu, tal como se diz no Relatório, pelos autores "AABBCCDDEE [...], na qualidade de únicos e universais herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF". 

Efectivamente, se a herança indivisa não pode ser autora, por falta de personalidade judiciária, não é possível considerar, quanto a ela, a acção procedente ou improcedente.

MTS


27/07/2023

Jurisprudência 2023 (1)


Processo de insolvência;
exoneração do passivo restante*

I. O sumário de RL 9/1/2023 (2943/22.1T8FNC-B.L1-1) é o seguinte

1. Aceitando-se a competência internacional do tribunal português (art.ºs 59.º e 62.º do CPC) e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº 1 do art.º 294.º do CIRE, isto é, o devedor, pessoa singular, não tem em Portugal o seu domicílio, nem o CIP, conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.

2. As várias normas constantes do capítulo III, do Título XV, do CIRE não são todas coincidentes no seu campo de aplicação: a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional, mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

3. Centrando-nos no art.º 295.º do CIRE a aplicação das “especialidades” aí referidas pressupõe que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular ou, noutra designação, de um processo territorial (nº 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º, compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União, mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva).

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. O presente processo de insolvência foi instaurado em Portugal, por apresentação da devedora, em 31-05-2022 e, como decorre dos autos, o tribunal recorrido não questionou a sua competência para a tramitação dos autos e apreciação respetiva, nem qualquer interveniente processual deduziu questão atinente à competência internacional do tribunal português [---], sendo que a hipótese que se nos depara é a seguinte:

- A requerente/devedora, ora apelante, tem nacionalidade portuguesa;
 
- À data em que se apresentou à insolvência residia no Reino Unido, situação que se mantém [---];
 
- A requerente /devedora tem bens em Portugal, nomeadamente, é titular de uma quota ideal de herança que engloba bens imóveis;
 
- Alegando a apelante que “o processo de insolvência foi aberto em Portugal, encontrando-se aqui localizado o único credor da recorrente e os seus bens, tendo neste país sido contraída a divida indicada nos presentes autos”, invocando ainda na petição inicial que corre termos contra si, instaurado em Portugal, ação executiva tendo em vista a cobrança do crédito no valor de €18.557,81, que indica ser o seu único passivo, tendo como único credor a exequente daquele processo [---].

Donde, à data de instauração da ação, momento processualmente relevante para aferição dos pressupostos de natureza processual, a devedora não tinha o seu domicílio em Portugal – cfr. os art.ºs 82.º a 88.º do Cód. Civil – tendo-o no Reino Unido, que já não é um Estado-Membro da União Europeia, salientando-se que, a essa data, já tinha terminado o período de transição para a consolidação da saída (21-12-2020), em que ainda seria aplicável no Reino Unido o direito da União Europeia, conforme “Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica” (2019/C 384 I/01), publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 12-11-2019.

Não se conhecendo qualquer convenção internacional celebrada entre o Estado Português e o Reino Unido, incidindo sobre esta matéria, aceita-se, tendo em conta a relação jurídica tal como ela foi configurada pela apelante na petição inicial e o disposto nos art.ºs 59.º e 62.º, alíneas b) e c) do CPC que o tribunal recorrido, admitindo a tramitação dos autos, proferisse decisão sobre a insolvência, assumindo-se como internacionalmente competente [---].

No entanto, não se cuida aqui de aferir de questão atinente à (in)competência internacional do tribunal português e da aferição de elementos/fatores de conexão, de natureza pessoal ou real, mas, exclusivamente, da caraterização do presente processo como processo particular de insolvência, com as especificidades elencadas no art.º 295.º que, sob a epígrafe “[e]specialidades de regime”, preceitua:

“Em processo particular de insolvência:
a) O plano de insolvência ou de pagamentos só pode ser homologado pelo juiz se for aprovado por todos os credores afectados, caso preveja uma dação em pagamento, uma moratória, um perdão ou outras modificações de créditos sobre a insolvência;
b) A insolvência não é objecto de qualificação como fortuita ou culposa;
c) Não são aplicáveis as disposições sobre exoneração do passivo restante”.
 
Acentuando-se que essas “peculiaridades que assistem ao processo particular” se colocam “no seu confronto com o processo comum de insolvência”, mas, ainda assim, “não há uma forma especial para o processo particular de insolvência” [Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015, Lisboa: Quid Juris, p. 966.].   

O tribunal recorrido deu resposta positiva, considerando estarmos perante um processo particular de insolvência e, decretando a insolvência da devedora, indeferiu liminarmente a pretensão de exoneração, fundamentando como segue:

“Nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos seus principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.

No caso em análise, a requerente reside no Reino Unido, país para o qual emigrou, no qual se encontra a desempenhar a sua actividade profissional.

Deste modo, e tomando em consideração a noção de domicílio expressa no art.º 82.º do Código Civil, resulta que, tal como assumido pela própria, o domicílio da requerente é no Reino Unido.

Por outro lado, os factos alegados pela requerente não permitem de todo concluir que esta tem o centro dos seus principais interesses em Portugal.

O mero facto de a requerente ter nacionalidade portuguesa e até ser titular de um quinhão hereditário em território português, só por si, não é de molde a integrar tal conceito.

Com efeito, de acordo com o art.º 7.º, n.º 2, entende-se por centro dos principais interesses aquele em que o devedor os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros.

Sendo o devedor pessoa singular, a doutrina tem acolhido o lugar da residência habitual, ou da principal residência habitual, tendo mais que uma, como o elemento de mais fácil concretização (o determinável ou cognoscível por terceiros).

A nosso ver é o critério que deve prevalecer na falta de outros elementos que sugiram que o centro principal de interesses não corresponde ao do local de residência habitual – pode muito suceder que, por exemplo, o devedor tenha residência habitual num Estado-Membro e, directamente ou por interposta pessoa, tenha a administração de sociedades ou de estabelecimentos sediados noutro Estado-Membro. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 2304/13.3TBVCT-A.G1, de 22/05/2014, disponível em www.dgsi.pt)

Assim, nos termos do art.º 294.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o presente processo de insolvência abrange apenas os bens situados em território português.

E, nesta decorrência, de acordo com o art.º 295.º, alínea c), do mesmo diploma, não são aplicáveis as disposições sobre a exoneração do passivo restante.

Deste modo, resta indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante”.
 
Entendemos que, tendo por referência exclusivamente a avaliação da admissibilidade da formulação de pedido de exoneração do passivo restante pela devedora, não procede a argumentação expendida na decisão recorrida [---].

Dispõe o art.º 294.º, que o tribunal recorrido convoca, sob a epígrafe “[p]ressupostos de um processo particular”:

“1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário”.

Aceitando-se a competência internacional do tribunal português, nos moldes supra indicados e considerando que se verifica o condicionalismo aludido no nº 1 do referido preceito [---], conclui-se que o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português: o legislador permite que o interessado possa, ainda assim, instaurar o processo de insolvência em Portugal, limitando, no entanto, o seu objeto, que se restringe aos bens do devedor situados em território nacional.

Daqui não segue que deva aplicar-se o disposto no art.º 295.º, afigurando-se nos que as várias normas do capítulo III do Título XV, não são todas coincidentes no seu campo de aplicação. Assim, a aplicação de cada uma dessas normas pressupõe sempre que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional [---] mas, em segunda linha, é necessário aferir se a hipótese que se depara ao julgador configura, ou não, uma situação subsumível à disciplina jurídica vertida no Regulamento (EU) nº 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015 [---] [---] [---]; aliás, essa constatação é evidente em face do nº 2 do art.º 294.º, preceito que, notoriamente, não é compatível com o disposto no art.º 3.º, nº 2 do Regulamento [---], de sorte que uma leitura articulada dos dois regimes e tendo em conta o disposto no art.º 275.º, passa por circunscrever a sua aplicabilidade, exclusivamente, às situações internacionais não abrangidas pelo Regulamento [---] [ ---]. Conclusão que também ressalta do nº 3 do art.º 294.º, impressionando a referência daí constante – “[s]sempre que seja aplicável o Regulamento (…)” – o que deixa antever a necessidade de ponderação da aplicação de cada uma das normas desse Capítulo no contexto do Regulamento, ou à margem do mesmo [---].

Centrando-nos, então, no referido art.º 295.º, atento o objeto do presente recurso, a aplicação das “especialidades” desse regime pressupõe, em nosso entender, que estejamos perante uma insolvência transfronteiriça ou internacional com referência, exclusivamente, a Estados-Membros da União Europeia e em que seja aplicável a disciplina jurídica vertida no referido Regulamento, só assim se podendo compreender o sentido e alcance do regime aí fixado; efetivamente, a existência de um processo particular, ou, noutra designação, de um processo territorial (nº 3 do art.º 294.º) deve ser conexionada com a existência de um processo secundário, a que se reporta o art.º 296.º [---] [---], compreendendo-se que será no processo principal em que as questões alusivas ao perdão de dívida serão colocadas, sendo que só em Estados-Membros da União Europeia é que pode assegurar-se a aplicação uniforme do Direito da União [---] [---], mormente quanto ao regime alusivo a tal matéria, atenta a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 [---] [---], cujos destinatários são os Estados-Membros (art.º 36.º da Diretiva). 

Fica, assim, salvaguardada a igualdade de tratamento dos cidadãos no que concerte à possibilidade de o devedor insolvente obter um perdão de dívida (art.º 13.º da CRP) [---]; o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art.º 245.º, nº 1), permitindo-se ao devedor “um novo começo (fresh start), recuperando assim da sua situação de insolvência” [Luís Meneses Leitão, 2009, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, p.319.]; esse foi, conforme expresso no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o objetivo do legislador. Relativamente a pessoas singulares, cidadãos de um Estado- Membro da União, a que se aplica o regime do Regulamento, a concessão desse benefício já é assegurada no denominado processo territorial, a correr termos no Estado-Membro correspondente ao domicílio do devedor ou em que se situa o CIP, por via da aplicação do regime da Diretiva, pelo que não tem cabimento o tratamento dessa matéria no processo secundário, de âmbito limitado. O mesmo já não acontece quando a situação de insolvência transfronteiriça ou internacional se coloca relativamente ao Estado Português e outro Estado que se situa fora da União Europeia e/ou em que não é aplicável o Regulamento, não se vislumbrando razões para, nesses casos, relativamente ao processo que corre termos em Portugal, o devedor não poder usufruir do mesmo direito, beneficiando da  mesma oportunidade de exoneração do passivo restante, se verificado o condicionalismo respetivo.

Adere-se, pois, ao entendimento sufragado no acórdão do TRC de 01-06-2020 em que, numa situação que temos por similar à dos autos, se considerou que “[o] critério estabelecido nos art.ºs 294.º a 296.º do CIRE apenas tem aplicação quando se verifica uma situação de insolvência transfronteiriça ou internacional, ou seja, quando o devedor tem ligações com mais do que um Estado-Membro, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais de um Estado-Membro, e quando, verificando-se tal situação de insolvência transfronteiriça, o Estado Português não é o internacionalmente competente para o chamado “processo de insolvência principal [---] [---].

Em suma, com a delimitação feita, conclui-se que não se aplica ao caso o regime do processo particular de insolvência, inexistindo fundamento para, com base no art.º 295.º, alínea c), indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante; os autos devem, pois, prosseguir os normais trâmites para apreciação do pedido de exoneração formulado pela devedora, sem prejuízo, obviamente, da eventual existência de outros fundamentos para o indeferimento liminar desse pedido, o que aqui não esteve em apreciação."

*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, as razões apresentadas no acórdão para se concluir que a exclusão da exoneração do passivo restante que consta do art. 295.º, al. c), CIRE não se aplica no caso sub iudice não são nada convincentes.

b) O raciocínio utilizado como fundamento do decidido no acórdão parece ser o seguinte:

-- O art. 295.º CIRE só se aplica a insolvências transfronteiriças ou internacionais com referência exclusiva a Estados-Membros da União Europeia;

-- Logo, no caso concreto, o art. 295.º, al. c), CIRE não se aplica.

Ora, o disposto no art. 275.º CIRE (que define o âmbito de aplicação das normas de conflitos constantes do CIRE, entre as quais as que se encontram nos art. 294.º a 296.º CIRE sobre o "processo particular de insolvência") contraria aquela solução sobre o âmbito de aplicação do art. 295.º CIRE. Tenha-se presente o que estabelece aquele primeiro preceito:

"1 - Os processos regulados neste Código a que se aplica o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, regem-se pela disciplina vertida naquele instrumento e, em tudo quanto a não contrarie, pelo presente diploma.
2 - As disposições do presente título são aplicáveis apenas na medida em que não contrariem o estabelecido no Regulamento referido no número anterior ou noutras normas de Direito da União Europeia ou em tratados e convenções internacionais."

Disto não se pode concluir que o art. 295.º CIRE só se aplica entre Estados-Membros da União Europeia, isto é, quando seja aplicável o Reg. 2015/848. O que há que concluir é exactamente o contrário: o art. 295.º CIRE só se aplica quando o Reg. 2015/848 não for aplicável, seja porque o caso concreto não cabe no seu âmbito de aplicação, seja porque aquele instrumento europeu é omisso sobre a questão a resolver.

Sendo assim, nada justificaria que o disposto no art. 295.º, al, c), CIRE não fosse aplicável à questão da exoneração do passivo restante em análise no acórdão.

c) Resta acrescentar que não é nada estranho que a exoneração do passivo restante não possa ser concedida num "processo particular de insolvência", dado que o pedido dessa exoneração afecta, quer durante o período de cessão, quer após a concessão da exoneração todos os créditos sobre o insolvente (art. 245.º, n.º 1, CIRE).

[MTS]


26/07/2023

Jurisprudência 2022 (233)


Falta de citação;
ónus de arguição*


1. O sumário de RG 15/12/2022 (469/20.7T8AVV-A.G1) é o seguinte:

I - Ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objeto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.

II - Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC.

III - Verifica-se nulidade por falta de citação do réu quando se tenha empregado indevidamente a citação edital (art. 188/1-c do CPC), nomeadamente se tiverem sido omitidas as diligências de averiguações previstas no art. 236º do CPC, tudo com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária e, no caso, entretanto, de informação de ser residente no estrangeiro, ainda deverá ser colhida informação da morada junto dos consulados e embaixadas.

IV - Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).

V - Numa interpretação atualista da lei, atenta a tramitação eletrónica, não pode considerar-se que a mera junção de procuração forense a mandatário judicial é suficiente para sanar aquela nulidade e pôr termo à revelia absoluta, constituindo intervenção processual que faz pressupor o conhecimento do processo, nos termos e para os efeitos do art. 189 do C.P.C.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Vejamos agora se se verifica a alegada falta de citação por se ter ocorrido a citação edital indevidamente e que, conforme conclui o apelante, tem como consequência a «nulidade de todo o processado, nos termos da alínea a) do artigo 187.º do Código de Processo Civil».

Quid iuris?

Em primeiro lugar, dir-se-á que se avançou para a citação edital por se ter considerado que a situação processual era a de «ausência do citando em parte incerta», no quadro do disposto no art.º 236.º do CPCiv..

Estabelece este preceito legal (no seu n.º 1) que:

«Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da citação edital, junto das autoridades policiais.».

Assim, por considerada «ausência do citando em parte incerta», mostrava-se, nesta ótica, «impossível a realização da citação» por via pessoal, restando, então, aberta a perspetiva da citação edital, como ultima ratio.

Lê-se no sumário do AC do STJ de 15-02-2022 (relator Jorge Silva):

IA citação edital é remedeio para evitar a paralisação dos processos, pelo que, apenas, dela deve lançar-se mão quando seja impossível o contacto pessoal com o citando, ou contacto direto por outro meio, dada a multiplicidade de meios de contacto na atualidade.

II - A Constituição, consagrando o respeito pelo direito de defesa, no art. 20º, pretende alcançar a garantia de que o réu/demandado tenha efetivo conhecimento do processo contra ele instaurado.”.

Mas se a situação era essa – de frustração da citação pessoal, por via postal ou mediante contacto pessoal (cfr. art.º 231.º do NCPCiv.), então impunha-se a obtenção, por quem tinha a tarefa da realização da citação, de informações sobre o último paradeiro ou residência conhecida do citando ausente em parte incerta, como estabelece o citado art.º 236.º do NCPCiv., designadamente, se absolutamente indispensável, junto das autoridades policiais.

Ora, no caso sub judicio, ressuma dos autos que o AE deslocou-se à morada indicada na pi e informou os autos de que ninguém se encontrava em casa e colhidas informações consignou que o Réu estaria a viver em ....

E mais: aquele agente de execução ainda ventilou a hipótese de lhe ser dada autorização para consultar a autoridade tributária, mas nada foi dito.

Apenas foram consultadas algumas das entidades das previstas no artigo 236º do CPC, a segurança social e registo automóvel e IMT e sendo a mesma a morada onde havia sido frustrada a citação postal e pessoal, a secção, conforme despacho judicial, procedeu à citação edital, sem curar de averiguar junto das outras entidades como a autoridade tributária e como era dada informação de ser residente em ..., junto dos consulados ou embaixadas (vide neste sentido AC RL de 09.09.2021 (relator FF).

Isto é, não estava afastada a possibilidade de o mesmo residir noutra morada.

Conclusão esta que deixa instável – como logo tem de inferir-se – o dito entendimento de que se tratava de um caso de ausência do citando em parte incerta, posto essa ausência ainda não poder ter-se por seguramente demonstrada, o que vem a ser comprovado como ressuma do documento junto com as alegações do apelante donde consta na autoridade tributária uma morada em ... (!).

Por isso, foi prematuro avançar para a citação edital, último recurso dos instrumentos de citação, visto que não estaria claro que a situação fosse de ausência do citando em parte incerta.

Em suma, dos autos ressuma que outras diligências poderiam e deveriam ter sido levadas a cabo, com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária.

E, julgando que o réu estaria em ..., conforme informação colhida pelo AE, podiam ter sido feitas averiguações junto das entidades competentes, nomeadamente embaixada ou consulado.

Sendo que perentoriamente ninguém afirmou (agente de execução ou secretaria), verbalmente ou por escrito, que o réu na ação se encontrava em parte incerta.

Atendendo à verificada incerteza sobre o paradeiro do citando ou se estava ausente em parte incerta, devendo prevalecer a perspetiva do cabal exercício do contraditório e possibilidade de utilização dos inerentes meios de defesa do réu, parece-nos que a situação dos autos justificava claramente que se explorassem outras diligências.

Só então, com mais detalhada informação, se poderia decidir, sem ameaça para o direito de defesa do citando, sobre a justeza/necessidade da citação edital.

Donde que seja inelutável a conclusão de que foi prematura a ocorrida adesão à citação edital e ordenada por despacho, verificando-se assim nos termos do art. 188º, nº1, al. c) do CPC nulidade por falta de citação por se ter empregue indevidamente a citação edital.

Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Como referia o Prof. A. dos Reis (Comentário, vol. 2º, pág. 446/447 e CPC Anot., I, 3ª ed., pág. 313) “para a arguição da falta de citação não há prazo; enquanto o réu se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se mantiver alheio ao processo, está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação, só perdendo o direito de o fazer se intervier no processo e não reagir imediatamente contra ela”.

Relevante será, pois, e antes de mais, definir o que deve entender-se por intervenção da parte na causa, sendo que é na primeira intervenção processual que deve ser “logo” arguida a falta de citação.

Na jurisprudência existe uma orientação que defende que a junção da procuração a advogado constitui intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação (neste sentido, AC da RE de 20-12-2018, proc. 4901/16; Ac. Rl de 20-04-2015, proc. 564/14, Ac da RE de 16.04.20125, proc. 401/10), entendimento esse seguido pelo juiz a quo.

A esta orientação opõe-se outra corrente, segundo a qual a forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso aos direito, no caso das ações tramitadas eletronicamente, é fazer uma interpretação atualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação da procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique, direta e necessariamente, a preclusão da possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação (neste sentido, Ac RP de 9-1-20, proc. 2087/17, RC 24-04-2018, proc. 608/10, Acórdão da Relação de Évora de 3.11.2016; os Acs. da Relação de Lisboa de 6.7.2017, e de 05.11.2019, e o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 29.6.2017 e ainda o AC desta RG de 23-01-2020, proc. 17/19.1T8PVL.G1, no qual a agora relatora foi ali adjunta, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, como vimos defendendo, entendemos que uma interpretação atualista da lei (em consonância com o disposto no artº 9º, nº1, in fine, do Código Civil) leva a considerar como estando desatualizada a corrente jurisprudencial que pugnava por reputar como intervenção relevante - para efeitos do actual artº 189º, do Código de Processo Civil - a simples apresentação de uma procuração.

Isto é, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3-11-2016, acima referido: “Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº 280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade”.

Desta forma, entendendo que a junção da referida procuração não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o réu prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, é de concluir que não ficou então sanada a eventual nulidade da citação.

Destarte, está demonstrada a ocorrência da nulidade por falta de citação e, por consequência, a nulidade da sentença que veio a ser proferida na sequência e no pressuposto da regularidade de validade da citação.

Impõe-se, como tal, anular todo o processado e consequentemente, a sentença proferida nos autos, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido ao réu/recorrente o prazo de que dispõe para contestar, prosseguindo depois o processo a tramitação processual subsequente que se imponha."

*3. [Comentário] Já houve oportunidade de mostrar discordância perante a necessidade de uma interpretação actualista do art. 189.º CPC (clicar aqui).

MTS

25/07/2023

Jurisprudência 2022 (232)


Nexo de causalidade;
presunções judiciais


1. O sumário de RL 20/12/2022 (17760/20.5T8LSB.L1-7) é o seguinte:

I. Nada obsta a que, em sede de recurso de apelação, a apelante estribe a pretensão de alteração da matéria de facto em presunções judiciais formuladas a partir de factos-base que, por sua vez, integrem o elenco dos factos tidos como provados pela primeira instância, salvo as limitações probatórias decorrentes dos Artigos 393º a 395º do Código Civil.

II. Nos termos do Artigo 7º do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8.4., no âmbito do exercício do direito de regresso, o vendedor apenas pode dirigir-se à pessoa de quem adquiriu o bem, não podendo responsabilizar diretamente o produtor.

III. No âmbito da responsabilidade civil do produtor, compete ao lesado o ónus da prova do defeito do produto, do dano e do nexo de causalidade entre o defeito e o dano.

IV. A Autora/apelante não pode alterar a causa de pedir no âmbito do recurso de apelação, invocando agora o incumprimento de um dever imposto pela garantia do fabricante, ao não efetuar um diagnóstico atempado e adequado na sequência do alerta luminoso que foi denunciado, duas vezes, pelo adquirente do veículo.

V. No âmbito da prestação da garantia voluntária podem ser impostas condições, nomeadamente a realização atempada da manutenção nos intervalos de revisão especificados pela marca, bem como de que os materiais utilizados [devam] [cumprir as especificações técnicas da marca.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A apelante pretende que o facto presumido/factum probandum (“A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico”), decorra de outros factos-indiciários (presunção polibásica), a saber:

6. Em Maio de 2019, o Dr. PT – então possuidor do veículo - deslocou-se ao concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto (e doravante aqui designada por “JJ”), devido à luz de motor do veículo que se encontrava acesa, assinalando uma qualquer avaria;
9. Alguns dias passados, em viagem do Porto para Lisboa, a referida luz de motor voltou a acender.
10. De imediato, o Dr. PT contactou a JJ através de chamada telefónica, tendo-lhe sido dito pelos profissionais que poderia prosseguir a viagem.
11. Aquando da viagem de regresso para o Porto, a viatura começou a perder força e o seu funcionamento tornou-se irregular e deficiente.
12. Por isso, o Dr. PT solicitou de imediato a respetiva assistência em viagem do seguro do veículo, tendo este sido deslocado através de pronto-socorro e entregue na JJ do Porto em 20/05/2019.
13. A JJ comunica ao Dr. PT que existia uma avaria no motor do seu veículo e que, em concreto, os cilindros n.º 2 e n.º 7 estavam danificados.

Para que se possa considerar provado um facto por presunção judicial, é necessário que entre o facto-indiciário e o facto presumido ocorra um nexo lógico atendível e revelante.

Quanto à densificação de tal nexo lógico, conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., pp. 57-58 e 64:

«Resulta do que fica dito que, nos casos reconduzíveis ao id quod plerumque accidit, a inferência entre o facto-base e o facto presumido baseia-se numa regra geral, sendo a relação entre os dois factos de tal ordem que a enunciação do facto-base torna impossível a falsidade da enunciação do segundo facto (presumido) mas não implica necessariamente a verdade deste. Dito de outra forma, na prova indiciária a relação entre os dois factos é tal que ao primeiro se segue, normalmente, o segundo mas o inverso não é verdade, ou seja, a prova do segundo faculta uma simples probabilidade do primeiro. [---] A relação que existe é de implicação condicional, no âmbito da qual o indício assume a posição de um consequente do qual se pode verificar a possibilidade de remontar a um antecedente. Atenta a natureza eminentemente lógica da relação de implicação condicional entre o antecedente e o consequente, não tem particular relevância a relação temporal entre o antecedente e o consequente (cf. a classificação dos indícios sob 4.). [---]

A inferência presuntiva baseada no id quod plerumque accidit, mais do que comportar uma relação de necessidade absoluta entre os dois factos, limita-se a afirmar que tal relação ocorre na maior parte dos casos conhecidos, ou seja, é uma relação que se pode considerar normal ou frequente. [---] A máxima de experiência pertinente no caso fornece uma justificação suficiente para se concluir que existe um nexo lógico entre a ocorrência do facto conhecido (factum probans) e o facto desconhecido (factum probandum). Colocado perante a prova do factum probans, o juiz – com recurso aos critérios interpretativos do mesmo propiciados pela regra da experiência pertinente e atentas as circunstâncias do caso – aquilata se o mesmo proporciona um suporte racional suficiente de molde a que possa afirmar-se a existência do factum probandum para os fins daquele processo.

O grau de probabilidade que pode ser atribuído ao factum probandum é sempre relativo ao material cognoscitivo disponível. Este grau de probabilidade que pode ser atribuído a uma certa asserção afere-se não tanto na sua apreciação de per si mas mais pelo seu cotejo com outras proposições contrárias e/ou incompatíveis relativas ao mesmo factum probandum. A força probante do indício reside na razão direta da frequência do factum probandum face àquele e na razão inversa da multiplicidade e da frequência dos factos contrários ao indício. [---] Quanto maior for a conexão lógica que o juiz encontre entre o factum probans e o factum probandum maior será a força probante daquele. A certeza ínsita à formulação da convicção judicial significa, neste circunspecto, que o juiz assumiu uma hipótese como a mais atendível por ser a que apresenta maior probabilidade possível naquela concreta situação probatória [---], excluindo – do mesmo passo – outras alternativas verosímeis. (…)

O nexo lógico não é um facto mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima de experiência, tida por aplicável no caso, segundo a qual perante a ocorrência de um facto gera-se uma probabilidade qualificada de que se tenha produzido outro. Assim, a parte que recorre a uma presunção judicial não tem que provar o nexo lógico mas tem que lograr convencer o juiz da existência e aplicabilidade ao caso de uma máxima de experiência. O que é objeto de prova é a máxima de experiência e não o nexo lógico.»

Revertendo ao caso em apreço, há que notar que a primeira matrícula do veículo data de 1.7.2016 (facto 3), tendo sido adquirida no estado de usada pela apelante em 27.3.2019, ou seja, mediaram 999 dias entre a primeira matrícula do veículo e a data da sua aquisição pela autora. Subsequentemente, em 29.3.2019, a autora vendeu o veículo a uma sociedade comercial.

Durante este longo hiato temporal, desconhece-se a utilização efetiva que foi dada ao veículo em causa, se cuidada e com observância das recomendações técnicas de manutenção ou se, pelo contrário, o mesmo foi objeto de uma utilização descuidada ou negligente.

Deste modo, o longo hiato temporal em causa não abona – muito pelo contrário – a configuração de uma regra de experiência segundo a qual, face aos factos provados sob 6, 9 a 13, haja que considerar que exista uma probabilidade qualificada de a avaria se dever a um defeito de fabrico e não a fatores que tenham a ver com o uso que foi dado ao veículo durante 999 dias. Uma estreita proximidade temporal entre a deteção da avaria e o fabrico da viatura poderia sedimentar a formulação de tal nexo lógico enquanto uma maior dilação temporal, como é o caso, infirma a formulação desse nexo lógico. Com efeito, havendo um defeito de fabrico de tal índole que cause danos nos cilindros, o mesmo tenderia a revelar-se de forma mais prematura, não demorando mais de mil dias a revelar-se.

Acresce que a avaria nos cilindros tem como uma das causas mais conhecidas a falta de lubrificação do motor, sendo esta – sim – uma situação de ocorrência frequente. Ou seja, é formulável uma regra de experiência técnica no sentido de que a falta de lubrificação do motor pode causar danos no motor, designadamente nos cilindros, como foi o caso.

A título exemplificativo:

§ «Quando se fala num motor gripado há no mínimo duas peças, uma móvel e outra fixa (as mais habituais são o pistão e a camisa que cobre o cilindro ou os casquilhos e a cambota), que se fundiram impedindo o funcionamento de toda a engrenagem. Todo este processo advém de uma falha de um elemento muito simples: o óleo. Se a lubrificação faltar ou se o óleo já não tiver a viscosidade necessária para manter as peças lubrificadas, a fricção das peças vai gerar calor extremo que resulta no motor gripado» (https://www.standvirtual.com/blog/mecanica-automovel-conheca-5-piores-avarias/?doing_wp_cron=1669658665.6858179569244384765625 )

§ «(…) a falta de lubrificação força o atrito dos pistões com os cilindros, entre outras partes metálicas. Com as altas temperaturas, essas peças podem acabar ocasionando no motor fundido. Dessa forma, faça trocas periódicas para evitar que o óleo envelheça e forme borras no motor ao longo do tempo» ( https://www.portalautoshopping.com.br/blog/motor-fundido/ ).
 
Em suma, inexiste regra de experiência técnica que estribe a pretendida formulação de um nexo lógico entre os factos provados sob 6, 9 a 13 e o facto não provado sob 2 e, sobretudo, o longo tempo decorrido entre o fabrico do veículo e a deteção da avaria infirma completamente a formulação de tal nexo lógico."

[MTS]


24/07/2023

Jurisprudência 2022 (231)


Ampliação do objecto do recurso;
contra-alegações; prazo*


1. O sumário de RL 20/12/2022 (8671/14.4T8LSB.L2-7) é o seguinte:

- Tendo a apelante interposto recurso de revista per saltum da decisão proferida em primeira instância, e pretendendo a apelada ampliar o objeto do recurso com impugnação de determinados pontos da matéria de facto, a apelada não beneficia do prazo adicional de dez dias previsto no Artigo 638º, nº7, do Código de Processo Civil, para apresentação das suas contra-alegações.


2. Na fundamentação do acórdão (proferido com um voto de vencido) escreveu-se o seguinte:

"A Autora/recorrente apresentou o seu recurso no prazo legal de 30 dias (Artigo 638º, nº 1, do Código de Processo Civil), cabendo à Ré/recorrida apresentar contra-alegações no mesmo prazo (Artigo 638º, nº 5, do Código de Processo Civil).

Todavia, a Ré/recorrida apresentou contra-alegações em quarenta dias, entendendo que lhe assiste tal prazo porquanto ampliou o objeto do recurso com a impugnação de três factos (cf. Artigo 636º, nº 2).

A discussão centra-se, pois, em saber se se aplica o disposto no Artigo  638º, nº7, no caso de o apelado pretender ampliar o objeto do recurso na vertente de impugnação da matéria de facto, num contexto em que o recorrente não impugnou a decisão relativa à matéria de facto, como aconteceu nos autos.  

A Ré/reclamante invoca em abono da sua posição dois arestos.

O primeiro dos referidos arestos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.2015, Garcia Calejo, 2689/08) não analisou expressamente a questão em causa, afirmando apenas que:

«Nos termos do art.º 636.º, n.º 2, do mesmo Código, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelos recorrentes, os recorridos podem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como assente. Neste caso, à impugnação da matéria de facto é-lhe aplicável as regras atinentes à impugnação da matéria pelo recorrente, donde resulta que a matéria de facto impugnada pelos recorridos, só poderá ser apreciada pela Relação se os mesmos cumprirem as determinações ínsitas no art.º 640.º, n.º 1.»

Ora, estas asserções nada de novo trazem face ao teor expresso dos Artigos 636º, nº 2 e 640º, nº 3, nos termos do qual: «O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável no caso do recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º

Já no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.10.2017, Mário Coelho, 1891/15, a questão foi expressamente analisada nestes termos:

«Com efeito, quer se partilhe da tese da ampliação do âmbito do recurso não constituir um autêntico recurso, quer se entenda tratar de um recurso subsidiário, está sempre em causa o direito do recorrido a introduzir na instância recursiva questões não apresentadas pelo recorrente, prevenindo a hipótese do tribunal de recurso aderir in totum aos fundamentos apresentados pelo recorrente.

Uma vez que a ampliação do prazo de recurso e de resposta, em caso de reapreciação da prova gravada, se justifica pelo facto do impugnante ter o ónus, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, de indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, podendo proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes [---], incumbindo à parte contrária proceder do mesmo modo, designando os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente – art.º 640.º n.º 2, al.s a) e b) do Código de Processo Civil – as razões que justificam a ampliação do prazo de recurso são as mesmas que justificam tal ampliação no caso de resposta.
 
E assim, tendo a parte o dever de indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, podendo proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, justificando esse labor acrescido a concessão de maior prazo, o recorrido que pretenda ampliar o âmbito do recurso e suscitar a reapreciação da matéria de facto, sendo sujeito a tal ónus, tem igualmente direito à ampliação do prazo da sua resposta, independentemente do modo como o recorrente fundamentou o seu recurso.»
 
A posição deste aresto é acolhida por Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, p. 312.

Em sentido oposto, invocou-se no anterior despacho a posição de Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., 2022, p. 177:

«A extensão do prazo por mais 10 dias (de que também beneficiará o recorrido nas contra-alegações, nos termos do nº 5) apenas está prevista para os casos em que o recorrente introduz nas alegações a impugnação da decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova que tenham sido gravados (nº 7). Não abarca os casos em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja suscitada, a título subsidiário, pelo recorrido, nos termos do art.º 636º, nº 2, ou seja, a título de mera ampliação do objeto do recurso interposto pela parte contrária.

Por conseguinte, pretendendo ampliar o objeto do recurso nesses termos, o recorrido deve fazê-lo nas contra-alegações que serão apresentadas em prazo idêntico que vigorou para o recorrente. Notificado este das contra-alegações em que seja ampliado o objeto da apelação, o recorrente responderá no prazo de 15 dias, sem qualquer adicional.»

Sendo certo que a questão comporta margem de discussão, entendemos que esta última é a posição correta.

Em primeiro lugar, dispõe o nº 7 do Artigo 638º que «Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias».

Ora, no caso, a Ré não assume genuinamente as vestes de recorrente porquanto foi totalmente absolvida do pedido em primeira instância, sucumbindo-lhe legitimidade para recorrer (Artigo 631º, nº1). Ou seja, a Ré não interpôs nem podia interpor recurso da decisão proferida na primeira instância. Não sendo recorrente e não tendo o recorrente impugnado a decisão da matéria de facto, a Ré não beneficia do prazo de 10 dias do nº7, do Artigo 638º.

Note-se que a doutrina chega a afirmar que o recorrido, que requer a ampliação do objeto do recurso, não tem o estatuto de recorrente. Neste sentido, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, 3ª ed., 2022, p. 73:

«Mas o vencedor que se prevaleça desta faculdade não tem o estatuto de recorrente (Amâncio Ferreira, Manual cit., p. 162), dado que o objeto do recurso (a decisão final proferida) permanece idêntica (ver, porém, Ribeiro Mendes, Recursos 2007, p. 85, admitindo tratar-se de uma espécie de recurso subsidiário, ainda que o recorrente não haja sido vencido). À semelhança do que ocorre com o recurso subordinado (art. 633-3), a ampliação requerida só será apreciada se houver pronúncia sobre o mérito do recurso, mas as questões suscitadas pelo recorrido só serão apreciadas se, em consequência do recurso interposto, for modificada a decisão recorrida (…)».

Também Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., 2022, p. 149, afirma que:

«Na configuração legal, não estamos perante um verdadeiro recurso. Afinal sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado do processo que serve de critério aferidor da legitimidade, através do segmento decisório, nos termos dos arts. 631º, nº1, e 633º, nº1. Como reflexo, o vencedor que se prevalecer desta faculdade não terá o estatuto próprio de recorrente.»

Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, p. 309, afirma que:

«Trata-se, assim, de uma previsão excecional de recurso dos fundamentos. Um recurso condicional ou subsidiário em sentido impróprio já que a parte passiva do recurso pretende obter um efeito revogatório que afaste um eventual provimento do mesmo, em ordem a manter o dispositivo que lhe foi favorável.»

Nesta senda, o regime do Artigo 636º, nº2 - ao permitir ao vencedor na ação que, a título subsidiário, impugne a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto - integra uma norma excecional porquanto define um regime jurídico contrário ao que consta da regra geral (cf. Artigo 11º do Código Civil; Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, p. 226). Dito de outra forma, ao atribuir à parte vencedora uma legitimidade subordinada (cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, p. 140) para impugnar, num recurso interposto pela parte contrária, a matéria de facto, o nº 2 do Artigo 636º integra uma norma excecional face ao Artigo 631º e ao regime geral recursório em que se inclui o Artigo 638º que rege sobre os prazos.

Tratando-se de um regime excecional, o legislador estava atento ao mesmo e às suas implicações. Assim, o legislador sinalizou no nº 3 do Artigo 640º que: «O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º.» Tendo presente que, no âmbito da ampliação do objeto do recurso, o apelado poderia querer impugnar determinados pontos da matéria de facto, o legislador – atentamente – sinalizou que, nessa eventualidade, o recorrido está também vinculado aos ónus processuais impostos pelo Artigo 640º. Estando atento e pretendendo articular expressamente o regime da ampliação do objeto do recurso com o regime geral da impugnação da decisão de facto, o legislador – caso entendesse que se justificava nessa eventualidade a concessão do prazo adicional de dez dias – tê-lo-ia dito de forma explícita, o que não fez. Esta omissão compagina-se com a circunstância de a ampliação do objeto do recurso configurar, no melhor dos cenários, um recurso condicional ou subsidiário (cf. supra). [...]

Note-se ainda no teor dos nºs 7 e 8 do Artigo 638º:

7- Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.
 
8- Sendo requerida pelo recorrido a ampliação do objeto do recurso, nos termos do Artigo 636º, pode o recorrente responder à matéria da ampliação, nos 15 dias posteriores à notificação do requerimento.

A sistemática adotada no preceito não é despicienda. Na verdade, se o legislador – com o mesmo cuidado que teve na redação do nº 3 do Artigo  640º - pretendesse atribuir ao recorrido o prazo adicional de dez dias para ampliar o objeto do recurso com impugnação da matéria de facto, teria adotado preferencialmente uma de duas opções: ou trocaria a ordem dos números (passando o conteúdo do nº 8 a constar como nº 7 isto porquanto a redação do artigo 638º parte dos regimes mais gerais para os regimes  mais especiais) ou inseriria uma ressalva no nº 8 de teor equivalente a: “aplicando-se o disposto no nº 7”.

Invoca a reclamante que, a não se acolher a sua tese, ocorre uma violação do princípio da igualdade processual.

O princípio da igualdade processual encontra-se consagrado no Artigo 4º do Código de Processo Civil, nos termos do qual: «O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais

«(…) o princípio da igualdade das partes traduz-se numa igualmente de chances e de riscos: ambas as partes devem ter as mesmas chances de obter uma decisão favorável e sobre ambas as partes deve recair o mesmo risco de o tribunal vir a proferir uma decisão desfavorável. Durante o desenrolar do processo, ambas as partes devem ter as mesmas oportunidades de influenciar o seu resultado: é o que, por vezes, acentuando uma conceção “duelística” do processo se designa por igualdade de armas. (…) O princípio da igualdade impõe ao tribunal o dever de tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual» (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 99-100).

Por sua vez, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, À Luz do Código Revisto, pp. 105-106, afirma a este propósito que o princípio da igualdade de armas «(…) impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspetiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respetivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos, sempre que a posição perante o processo é equiparável, e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigualdade objetiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte meios processuais não atribuíveis a outra.»

Releva também neste circunspecto a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se colhe a lição expressa no Acórdão n.º 39/88:

«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, «reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade» – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
 
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante».

O princípio da igualdade não pode conduzir à postergação de normas processuais que se apresentam com um conteúdo inflexível, como são os casos das normas processuais que fixam prazos perentórios (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 24). Perante normas processuais cogentes como são as atinentes a prazos perentórios, o juiz só tem que fazer acatá-las em relação a ambas as partes, sendo – deste modo – assegurado o princípio da igualdade. Assim, a aplicação no caso do disposto no Artigo 638º, nºs 1 e 5, a ambas as partes não colide com o princípio da igualdade, pelo contrário, observa-o.

Note-se que a situação da ré/reclamante não é materialmente equiparável à situação de um apelante que, ab initio, pretenda impugnar a decisão da matéria de facto. Enquanto aqui o apelante pretende socorrer-se de um meio de defesa da sua posição a título principal e que será necessariamente apreciado, diversamente na situação da reclamante (impugnação da matéria de facto em sede de ampliação do recurso, num contexto em que não houve impugnação da matéria de facto pela parte vencida) a mesma socorre-se de um meio de defesa subsidiário, condicional, que pode nem sequer ser objeto de apreciação em sede do recurso. A centralidade e operacionalidade da impugnação da matéria de facto não são equiparáveis nas duas situações e, não sendo equiparáveis, não justificam a aplicação idêntica do regime do nº7 do Artigo 638º.

Assim, conforme enfatiza a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o estabelecimento das distinções aqui preconizadas não fere o princípio da igualdade porquanto as mesmas radicam em situações substancialmente diferentes e não equiparáveis.

A atender-se a tese da reclamante, a mesma conduziria mesmo a resultados insólitos. Assim, num contexto em que a parte vencida, ab initio, impugnasse a decisão da matéria de facto beneficiando de um prazo de recurso de 40 dias, a parte vencedora/apelada beneficiaria do mesmo prazo para contra-alegações (Artigo 638º, nº7). Mas, se a apelada também pretendesse impugnar um facto em sede de ampliação do objeto do recurso, então passaria a beneficiar de um prazo de contra-alegações de 50 dias!"


*3. [Comentário] Tudo ponderado, ter-se-ia preferido uma diferente solução. É verdade que o recorrido que amplia o objecto do recurso não é, em termos legais, um recorrente. No entanto, nada impediria que, legalmente, fosse classificado como tal: em vez de a matéria ser tratada como uma ampliação do objecto do recurso, poderia ser perfeitamente enquadrada num recurso subordinado do recorrido. Apesar de não ter sido escolhida esta opção, a verdade é que, em termos substanciais, o recorrido não deixa de dirigir ao tribunal de recurso um pedido de reapreciação de uma determinada questão.

MTS