Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional;
erro judiciário; meio processual para obter a revogação prévia da decisão
1. O sumário de RC 3/11/2015 (136/14.0TBNZR.C1) é o seguinte:
I - O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada pelo art. 13.º da Lei 67/2007, de 31/12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.
II - Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.
III - Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada.
IV - No caso, a matéria indiciada permitiria, fundadamente, concluir, em face da situação concreta, que era o 1º requerido quem, sem aparecer como administrador ou gerente (“homem oculto”), servindo-se do nome do filho, ou seja, actuando através de pessoa fictícia (“homem de palha”), sempre deteve o domínio dos factos e o controlo efectivo da sociedade e que esta apenas serviu como “testa de ferro” para aquele poder desenvolver a respectiva actividade e pôr o seu património a salvo dos credores, actuando através de um gerente ficticiamente designado.
V - Assim sendo, ao reconhecer a existência de abuso da autonomia patrimonial da sociedade, em prejuízo dos credores, mais do que plausível, foi defensável a abordagem fáctico-jurídica que a sra. Juíza engendrou, obtendo, com autonomia e uma racionalidade (também) prático-normativa, um resultado que, não sendo singular nem o único possível, de modo algum, pode ser apodado de “peregrino”.
VI - Por isso, a desconsideração (inversa) ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade A..., por ser uma solução legítima da questão submetida à apreciação da sra. Juíza, não afectou a decisão proferida de manifesta ilegalidade, com a restritiva qualificação que tem este conceito – designadamente sobre o grau da respectiva intensidade –, que é exigida pelo requisito específico da responsabilidade civil exercida nesta acção, traduzido no erro judiciário.
VII - A concreta actuação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades ainda padece de falta de rigor dogmático, desde logo porque não apela “directamente” a concretas normas jurídicas – antes a princípios, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade – e é controversa, porquanto se manifestam entendimentos não inteiramente convergentes quanto à formulação dos respectivos requisitos. Além disso, a decisão judicial aqui reputada de ilícita, por errada, tem que ser vista sem omitir que o juiz não dispõe no seu labor de uma ciência exacta que o oriente e, sobretudo, no concreto contexto de uma figura jurídica em elaboração, característica que, perpassando ou sendo inerente ao direito em geral e à realidade dinâmica em que o mesmo intervém, sobressai ainda mais no campo desta teoria.
VIII - O reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à situação jurídica em apreço, fruto de erro de julgamento, manifesto e indesculpável – teria de ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, fora cometido o erro. Essa opção legislativa, apesar do seu carácter restritivo, compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado e, por isso, não cerceia arbitrariamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade.
IX - Sem mais, a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior, a que o julgamento da questão foi deferido, sobrepondo-se ao de primeira instância, significa, apenas, que foram oferecidas duas diferentes apreciações fáctico-jurídicas – ambas formadas com base nos elementos factuais indiciariamente demonstrados no processo, com sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas no quadro normativo vigente, como manifestações da autonomia quanto ao “dizer o que diz o direito” e do princípio da independência dos juízes – bem como duas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação, ambas igualmente legítimas – ainda que só uma tenha prevalecido, como decorrência da forma como o exercício do poder judicial está estruturado – e não, necessariamente, que a decisão de 1ª instância estivesse errada, muito menos, manifestamente.
X - No caso, pelo contrário, não se constata que a decisão judicial revogada fosse claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave, ou seja, que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado por tal (inadmissível) forma.
2. No caso sub iudice, não se colocou o problema da revogação prévia da decisão alegadamente ilícita, dado que esta decisão já tinha sido anteriormente revogada por uma das Relações.
Como se tem referido neste Blog, o regime da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional torna-se verdadeiramente problemático quanto a dois aspectos:
-- A constitucionalidade da exigência da revogação prévia da decisão ilícita que consta do art. 13.º, n.º 2, L 67/2007, de 31/12, e, em função de TJ 9/9/2015 (C‑160/14, Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português) o âmbito desta exigência;
-- O meio de que o lesado dispõe para, pressuposta a constitucionalidade da exigência da revogação prévia da decisão ilícita, obter esta revogação; na falta de qualquer meio específico, parece que se impõe a admissibilidade de uma acção comum, dado que nenhum direito ou interesse juridicamente tutelável pode ficar sem possibilidade de tutela jurisdicional.
Isto permite concluir que a constitucionalidade da exigência da revogação prévia abre necessariamente, perante a falta de qualquer outra alternativa, a via da acção comum para obter essa revogação. O que é curioso é que esta solução acaba por ser totalmente contrária ao que o legislador, segundo parece, teria pretendido evitar com a exigência da revogação prévia: a apreciação da licitude de uma decisão dos tribunais superiores por um tribunal de 1.º instância.
A verdade é, no entanto, que dificilmente se encontra qualquer outra solução que seja compatível com a constitucionalidade da exigência da revogação prévia da decisão ilícita: se esta exigência é constitucional e se, portanto, o interessado tem o ónus de obter a prévia revogação da decisão ilícita, então tem de haver na ordem jurídica um meio de obter essa revogação. O que não é aceitável -- nem constitucional -- é exigir-se a revogação prévia da decisão e não se facultar, numa situação em que o recurso ordinário é inadmissível, nenhum meio processual para obter essa revogação. Dito de outro modo: o legislador só teria evitado esta solução se, perante a inadmissibilidade do recurso ordinário, tivesse previsto um qualquer meio específico de obter a revogação da decisão ilícita; não o tendo feito, esse meio só pode ser uma acção comum.
3. Concluindo-se que este é o sistema (necessariamente) hoje vigente, não quer dizer que o mesmo seja adequado ou recomendável. Do que foi afirmado terá também resultado a necessidade de repensar todo o sistema, começando pela exigência da revogação prévia da decisão.
Na hipótese de se manter a necessidade da revogação prévia da decisão (o que implica construir um regime que permita ultrapassar a jurisprudência de TJ 9/9/2015 (C-160/14)), importa estabelecer qual o meio processual, além do recurso ordinário, concedido aos interessados para essa revogação e qual o órgão com competência para essa revogação. Problemas semelhantes se colocam na hipótese de se dispensar a exigência da revogação prévia e de, portanto, se aceitar uma acção de indemnização sem essa prévia revogação: também neste caso há que definir qual o meio processual para fazer valer essa indemnização e qual o órgão competente para apreciar a ilicitude da decisão e definir as respectivas consequências (para além da indemnização ao lesado, coloca-se necessariamente o problema da subsistência da decisão no ordenamento jurídico).
4. Para reflexões anteriores sobre o tema, cf. Jurisprudência (239) e demais indicações.
A verdade é, no entanto, que dificilmente se encontra qualquer outra solução que seja compatível com a constitucionalidade da exigência da revogação prévia da decisão ilícita: se esta exigência é constitucional e se, portanto, o interessado tem o ónus de obter a prévia revogação da decisão ilícita, então tem de haver na ordem jurídica um meio de obter essa revogação. O que não é aceitável -- nem constitucional -- é exigir-se a revogação prévia da decisão e não se facultar, numa situação em que o recurso ordinário é inadmissível, nenhum meio processual para obter essa revogação. Dito de outro modo: o legislador só teria evitado esta solução se, perante a inadmissibilidade do recurso ordinário, tivesse previsto um qualquer meio específico de obter a revogação da decisão ilícita; não o tendo feito, esse meio só pode ser uma acção comum.
3. Concluindo-se que este é o sistema (necessariamente) hoje vigente, não quer dizer que o mesmo seja adequado ou recomendável. Do que foi afirmado terá também resultado a necessidade de repensar todo o sistema, começando pela exigência da revogação prévia da decisão.
Na hipótese de se manter a necessidade da revogação prévia da decisão (o que implica construir um regime que permita ultrapassar a jurisprudência de TJ 9/9/2015 (C-160/14)), importa estabelecer qual o meio processual, além do recurso ordinário, concedido aos interessados para essa revogação e qual o órgão com competência para essa revogação. Problemas semelhantes se colocam na hipótese de se dispensar a exigência da revogação prévia e de, portanto, se aceitar uma acção de indemnização sem essa prévia revogação: também neste caso há que definir qual o meio processual para fazer valer essa indemnização e qual o órgão competente para apreciar a ilicitude da decisão e definir as respectivas consequências (para além da indemnização ao lesado, coloca-se necessariamente o problema da subsistência da decisão no ordenamento jurídico).
4. Para reflexões anteriores sobre o tema, cf. Jurisprudência (239) e demais indicações.
MTS