"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2015

Jurisprudência (247)



Relações patrimoniais entre os cônjuges; direito à compensação; 
forma do processo


1. O sumário de RC 10/11/2015 (360/14.6TBCTB.C1) é o seguinte:

I – Na vigência da relação matrimonial os cônjuges tornam-se devedores entre si, através da transferência de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios. Nestes casos surge o chamado “crédito de compensação“ a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei difere para a partilha.

II - Não existe erro na forma de processo se a Autora, em acção declarativa, com forma de processo comum, reclama do Réu um “crédito de compensação”, alegando que já efectuaram partilha extrajudicial que só posteriormente teve conhecimento da existência do crédito sobre o Réu, e que este o nega, sendo litigioso.

III - A Lei nº 61/2008 de 31/10 (que aprovou o novo regime do divórcio) alterou a redacção do art.1792º do CC, acabando com a chamada “teoria da fragilidade da garantia”, pelo que a violação dos deveres conjugais pode implicar uma situação de responsabilidade civil extracontratual reforçando a actual norma que o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro, nos termos gerais da responsabilidade civil.

IV - Não constitui abuso de direito o facto de a Autora, após o divórcio por mútuo consentimento, reclamar judicialmente uma indemnização do Réu (ex marido), por danos não patrimoniais, em virtude deste haver mantido uma relação extraconjugal, mas que a Autora só veio a tomar conhecimento depois do divórcio.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença declarou a nulidade por erro na forma de processo, insanável, porque o alegado crédito [de compensação] só pode apurar-se na partilha, em processo de inventário, que é o adequado.

A Apelante sustenta que não obstante o disposto no art.1697.º, nº 2, do CC remeter para o “momento da partilha”, tal não é impeditivo de o reclamar nos meios comuns.

A adequação do meio processual não depende do mérito, mas da pretensão deduzida, tal como a configura a Autora.

As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio (art.1788.º e 1795.º-A do CC), produzindo-se, neste caso, os seus efeitos entre eles a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retroagindo-se à data da propositura da acção (arts.1688.º e 1789.º, n.º 1, do CC).

Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (art.1689.º do CC ), e sendo esta judicial, através do processo especial de inventário, actualmente regulado pela Lei n.º 23/2013, de 5/3.

Na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património.

Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes (art.1689.º, n.º 2, do CC). Não havendo património comum suficiente para o pagamento das dívidas comunicáveis, poderão estas ser pagas pelo produto dos bens próprios de cada um dos cônjuges, consoante o regime de bens (art.1695.º do CC).

Na liquidação do passivo entram ainda as dívidas dos cônjuges entre si, as quais são pagas pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas na ausência ou insuficiência de bens comuns respondem os bens próprios de cada um deles (art.1689.º n.º 3, do CC).

Sobre as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, o art.1697.º, n.º 1, do CC prevê o caso de os bens de um dos cônjuges terem respondido por dívidas da responsabilidade comum para além do que lhe competia, e o n.º 2 a situação em que por dívidas de um dos cônjuges tenham respondido bens comuns.

Na vigência da relação matrimonial os cônjuges tornam-se devedores entre si, através da transferência de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios. Nestes casos, surge o chamado “ crédito de compensação “ a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei difere para a partilha.

A razão de ser deste diferimento prende-se essencialmente com o propósito de se evitarem desentendimentos ou perturbações conjugais e a exigibilidade imediata implicaria atribuir ao cônjuge credor um meio fácil (a ameaça de cobrança) de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor, como justificou Braga da Cruz no seu anteprojecto (Capacidade Patrimonial dos Cônjuges, BMJ n.º 69, pág.413 e segs.), ou noutra perspectiva, a não exigibilidade imediata radica na própria natureza jurídica da comunhão (Cristina Dias, “Das Compensações pelo pagamento das dívidas do casal”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol.1º, 2004, pág. 323).

Por outro lado, compreende-se a opção legislativa no sentido de o crédito de compensação incidir, não sobre o património comum, mas sobre o outro cônjuge (devedor), pois de outra forma haveria o risco do cônjuge credor não lograr o pagamento se não houvesse pura e simplesmente património comum ou se este fosse insuficiente.

A Autora, alegando que para pagamento de uma dívida (de alimentos) da exclusiva responsabilidade do Réu, este utilizou dinheiro de uma conta conjunta com rendimentos pertencentes ao património comum do casal, reclama o pagamento de metade do valor que se liquidar posteriormente.

Como foram pagas dívidas próprias com bens comuns, tem directa aplicação do disposto no art.1697.º, n.º 2. CC, pelo que estamos perante um “crédito de compensação, com exigibilidade diferida para o momento da partilha”. [...]

Na situação dos autos, comprova-se que as partes, em 30/12/2013, já efectuaram, por acordo, a partilha, embora sem contemplar este crédito, que se revela litigioso.

A Autora alegou que só posteriormente teve conhecimento da existência do crédito sobre o Réu.

A razão de ser do diferimento da exigibilidade do crédito para o momento da partilha (perturbação do casamento) deixou aqui de verificar-se, sendo que a Autora (credora) alega a superveniência subjectiva do crédito.

Por outro lado, segundo o disposto nos arts. 32.º, 37.º e segs. da Lei n.º 23/2013, de 5/3, sendo negada a dívida em processo de inventário e não aprovada por acordo, os interessados mantêm o direito de exigir o pagamento pelos meios comuns.

Verifica-se até, pela posição assumida nos articulados, que o crédito reclamado se apresenta litigioso, tanto mais que o Réu sem negar a transferência, alega na contestação que a Autora teve conhecimento dessas movimentações e, por isso, consentiu tacitamente, para além de haver sido compensada na partilha, pois foi favorecida economicamente.

Neste contexto, tendo em conta a pretensão da Autora e a natureza do crédito, a posição assumida pelas partes, e as razões de economia processual, o conhecimento superveniente do crédito, o processo comum apresenta-se adequado."


MTS