"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/12/2015

Jurisprudência (248)



Investigação da paternidade; caducidade; constitucionalidade;
contagem do prazo; aplicação da lei no tempo


I. O sumário de STJ 22/10/2015 (
1292/09.5TBVVD.G1.S1) é o seguinte:

1. O prazo de 10 anos de caducidade para a instauração da acção de investigação de paternidade previsto no n.º 1 do art. 1817.º, na sua actual redacção (introduzida pela Lei n.º 14/09, de 1-4), é contado partir da data em que o investigante atingiu a maioridade.

2. Não é inconstitucional a norma do art. 1817.º, n.º 1, do CC, alterada pela Lei n.º 14/09, que fixou em 10 anos o prazo geral de caducidade para a instauração da acção de investigação da paternidade, na interpretação segundo a qual tal prazo também é de aplicar aos casos em que o investigante já tinha atingido a maioridade na data em que a alteração legal entrou em vigor.

3. Tendo sido declarada inconstitucional a norma do n.º 1 do art. 1817.º do CC, na sua anterior redacção (que previa um prazo de caducidade de dois anos), sem uma imediata fixação de outro prazo mais alargado, não viola os princípios da confiança ou da proporcionalidade a alteração legislativa que foi introduzida pela Lei n.º 14/09, de 1-4.

4. Embora na decorrência da aludida declaração de inconstitucionalidade tenham sido julgadas procedentes acções de investigação de paternidade que estavam pendentes ou que foram posteriormente instauradas, sem interferência de qualquer prazo de caducidade, o facto de às acções interpostas depois da data da entrada em vigor da Lei n.º 14/09, de 1-4, ser aplicável o prazo de caducidade de 10 anos não representa violação do princípio da igualdade.

II. Tem interesse conhecer esta parte da fundamentação do acórdão:

«1.4. Decorre do preceito em análise [art. 1817.º, n.º 1, CC] que o prazo de caducidade de 10 anos se conta a partir da data em que o investigante atingiu a maioridade, não encontrando justificação o argumento tecido laboriosamente pelo recorrente no sentido de que, em face do art. 297.º, n.º 1, do CC, tal prazo se deve contar a partir da entrada em vigor da nova lei.

Para que tal ocorresse necessário seria, em primeiro lugar, que o legislador não tivesse tomado expressa posição sobre essa questão. Ora, o certo é que em consonância com o disposto no art. 329.º do CC (“se a lei não fixar outra data”), o legislador, na composição do regime jurídico numa área tão sensível como é a do estabelecimento da paternidade, optou por reportar o início da contagem do prazo de caducidade a um elemento de natureza objectiva, assumindo, aliás, uma redacção que, nesse preciso segmento normativo, é idêntica à que já constava da primitiva redacção do n.º 1 do art. 1817.º do CC que também prescrevia a contagem do prazo a partir da maioridade ou da emancipação.

A solução torna-se ainda mais clara neste ponto quando se observa a Lei n.º 14/09, de 1-4, na sua globalidade e, além disso, quando se atenta nos Trabalhos Preparatórios que à mesma conduziram e que são acessíveis através de www.parlamento.pt.

Com efeito, o legislador consignou no art. 3.º de tal diploma que “a presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

Este preceito não constava do Projecto de Lei nº 178/X que desembocou na Lei nº 14/09, tendo sido aditado verbalmente, já no âmbito da discussão que decorreu na 1ª Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, visando, em termos que foram explicitados, a “conformação (do novo regime que iria ser instituído) com o princípio geral de aplicação da lei no tempo” (cfr. D.A.R., de 12-2-2009).

Através deste elemento de ordem sistemática, fica clara a intenção do legislador de aplicar o prazo de 10 anos às relações jurídicas já constituídas. Pois se dele decorre a intenção de aplicá-lo mesmo às acções que haviam sido interpostas antes ou depois da declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º do CC, na sua anterior redacção, por maioria de razão se deve concluir pela intenção do legislador de aplicar o novo prazo às situações, como a dos autos, que ainda não haviam dado origem a qualquer processo judicial.

É verdade que tal norma, na medida em que implicava com o exercício de direitos que já estavam em discussão em acções pendentes, foi julgada inconstitucional pelo Ac. do Trib. Constitucional n.º 401/11, de 24-3-11, no D. R., II Série, de 13-5-11, solução também reproduzida noutros arestos posteriores, designadamente nos Acs. n.º 547/14 e n.º 704/14.

Todavia, sem infirmar a inconstitucionalidade do preceito, na medida em que fosse aplicável a processos pendentes, a sua redacção (elemento literal) e os motivos que estiveram na génese da sua inserção no diploma legislativo (elemento histórico), deixam bem clara a intenção do legislador no sentido de que o início do referido prazo de 10 anos se deve contar a partir de um momento anterior ao da entrada em vigor da Lei, em consonância com a norma geral do art. 329.º do CC.

1.5. Tal conclusão afasta o argumento que o recorrente pretende extrair do art. 297.º, n.º 1, do CC.

Em termos literais, tal preceito visa os casos em que a nova lei prevê um prazo mais curto para o exercício do direito, situação que, numa determinada perspectiva, nem sequer ocorreria no caso concreto.

Com efeito, assumindo o entendimento de que, após a declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º do CC, o exercício do direito de investigação de paternidade não ficou submetido a qualquer prazo de caducidade, a previsão do prazo de caducidade de 10 anos representaria uma inovação em matéria de caducidade.

Pese embora esse elemento literal, não custa, no entanto, admitir que o mesmo regime será de aplicar, na ausência de outra opção do legislador, a casos em que se estabeleça, de forma inovadora, um prazo para o exercício de direitos desonerados de qualquer circunstância de ordem temporal, como defende Antunes Varela, no CC anot. (anot. ao art. 297.º).

Todavia, nem assim se inverte a solução anteriormente anunciada, na medida em que o recurso a tal preceito de natureza geral apenas se justificaria se acaso o legislador não tivesse adoptado uma posição na regulamentação específica da caducidade nas acções de investigação da paternidade.

Ora, como dissemos, o legislador tomou uma posição diversa sobre a matéria, intenção reflectida não apenas no elemento literal como ainda no elemento histórico (justificação do preceito) e no referido elemento de ordem sistemática.»


III. a) São duvidosos os argumentos -- muitos deles demasiado apegados à intenção do legislador -- que o STJ utiliza para não aplicar ao caso concreto o disposto no art. 297.º, n.º 1, CC. Para melhor compreensão do que a seguir se diz, convém recordar o que se dispõe, na parte agora relevante, neste preceito: "A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei [...]".

A declaração de inconstitucionalidade da aplicação imediata do regime legal instituído pela L 14/2009, de 1/4, às acções pendentes permite o recurso a um argumento por analogia: se não é constitucional aplicar o novo prazo de 10 anos a contar da aquisição da maioridade às acções pendentes, então também não pode ser constitucional aplicar, sem qualquer restrição, esse mesmo prazo à propositura de futuras acções. Em qualquer dos casos há uma protecção da confiança que importa acautelar: no primeiro caso, porque quem propôs uma acção em tempo segundo a lei antiga não pode, através de uma alteração legal posterior, ver caducado o seu direito à investigação da paternidade; no segundo caso, porque, quem ainda está em tempo de propor uma acção segundo a lei antiga, não pode ver-lhe retirado, por uma modificação legislativa posterior, o seu direito à investigação da paternidade

A referida protecção da confiança está assegurada pela aplicação do disposto no art. 297.º, n.º 1, CC, que possibilita uma solução adequada e equilibrada. O novo prazo de 10 anos após a aquisição da maioridade que foi instituído pela L 14/2009 aplica-se a todas as acções de investigação da paternidade presentes e futuras, mas o mesmo só se conta a partir da entrada em vigor do novo regime legal.

Pode assim concluir-se que não há motivos para distinguir entre acções de investigação da paternidade pendentes ou a propor. Em nenhuma destas acções é defensável a aplicação imediata do novo prazo de 10 anos a contar da aquisição da maioridade ou, dito pela positiva, em qualquer dessas acções é necessário proteger a confiança do investigante através da aplicação do estabelecido no art. 297.º, n.º 1, CC.

b) Impõe-se a mesma conclusão quer quanto a investigantes que, no momento da entrada em vigor da L 14/2009, já tinham adquirido a maioridade há mais de 10 anos, quer quanto a investigantes em relação aos quais, nesse momento, esse prazo ainda não se tenha completado. Todos estes investigantes necessitam da mesma protecção da confiança. Sendo assim, atendendo a que o disposto no art. 297.º, n.º 1, CC é suficiente para assegurar essa protecção, não se vislumbra nenhuma razão para não aplicar esse preceito a qualquer daqueles grupos de investigantes.

É, aliás, muito fácil demonstrar que o art. 297.º, n.º 1, CC não pode deixar de ser aplicado a qualquer daqueles investigantes. Na verdade, se se entender que o art. 297.º, n.º 1, CC não pode ser aplicado à fixação do prazo de 10 anos posteriores à maioridade do investigante, então ter-se-á de concluir o seguinte:

-- Os investigantes que, no momento da entrada em vigor da L 14/2009, já tenham adquirido a maioridade há mais de 10 anos perdem o seu direito à investigação da paternidade;

-- Os investigantes -- mais afortunados, pode dizer-se -- em relação aos quais ainda não se tenha completado o prazo de 10 anos a contar da aquisição da maioridade não perdem o direito à investigação da paternidade, mas podem ver o prazo para a propositura da acção reduzido a meses, semanas ou mesmo dias. 

É precisamente a aplicação do art. 297.º, n.º 1, CC que evita qualquer destes (indesejáveis) resultados.

MTS