Competência material; acções de interdição
1. O sumário de RP 10/11/2015 (1050/14.5T8LRA.C1) é o seguinte:
I – Ao aludir, na alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou essa expressão, na sua acepção mais restrita e apenas para se reportar a acções em que esteja em causa – ou tenham como pressuposto – a situação ou posicionamento das pessoas relativamente ao casamento (estado de solteiro, casado, viúvo, divorciado, separado…), união de facto ou economia comum, aí não se incluindo, portanto, as acções de interdição.
II – Assim, as acções de interdição não estão incluídas no âmbito de competência das secções de família e menores, pertencendo essa competência às secções da instância local.
2. Da fundamentação do acórdão retira-se a seguinte passagem:
"A questão não é nova e já se havia colocado a propósito da Lei nº 52/2008, de 28/08 – cujo artigo 114º, alínea h), tinha redacção idêntica à da alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013 – considerando a jurisprudência, de forma dominante, que as acções de interdição não estavam incluídas no âmbito de competência dos Juízos de família e menores [Cfr. Acórdão do STJ de 13/11/2012 (proc. nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1.) e Acórdãos da Relação de Lisboa de 12/07/2012 (proc. nº 21777/11.2T2SNT.L1-1), de 19/06/2012 (proc. nº 2901/11.1T2SNT.L1-7), de 12/06/2012 (proc. nº 7218/12.1TLSNT.L1-7), de 29/05/2012 (proc. nº 3928/12.1T2SNT.L1-1) e de 29/05/2012 (proc. nº 21427/11.72SNT.L1-7), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.].
E a verdade é que não encontramos razões para discordar desse entendimento.
É indiscutível que, como considerou a sentença recorrida (apelando à noção dada por Ana Prata), numa acepção mais ampla da expressão “estado civil”, as acções de interdição corresponderão a acções relativas ao estado civil.
Todavia, ainda que, eventualmente, essa acepção possa assumir maior rigor em termos jurídicos, a verdade é que essa expressão é vulgarmente utilizada com um sentido mais restrito e apenas para definir a posição do indivíduo relativamente ao casamento (casado, solteiro, viúvo, divorciado, separado, em união de facto). É com esse sentido que, em linguagem corrente, essa expressão é utilizada e é com esse sentido que ela é apreendida e entendida pela generalidade das pessoas (leigas em direito). Mas é também com esse sentido que ela é utilizada em diversos formulários que, para as mais diversas situações, são disponibilizados aos cidadãos, como acontece, por exemplo, com o modelo de declaração para efeitos de IRS que é disponibilizado no portal das Finanças e é também nesta acepção mais restrita que tal expressão é utilizada nos bilhetes de identidade.
Além do mais, é o próprio legislador quem utiliza, por vezes, essa expressão numa acepção restrita, o que sucede, designadamente, no Código de Registo Civil.
Com efeito, se é certo que o art. 3º do citado diploma alude a tal expressão na sua acepção mais lata (e, porventura, mais rigorosa), quando alude ao estado civil correspondente aos diversos factos que estão sujeitos a registo e fazendo, portanto, corresponder o estado civil à situação em que o indivíduo se encontra na vida jurídica como decorrência de cada um desses factos (entre os quais a interdição), também é certo que, noutras disposições legais – designadamente nos arts. 7º e 220º-A – o citado diploma utiliza aquela expressão numa acepção mais restrita quando alude, separadamente, ao estado civil, à nacionalidade e à capacidade civil.
Sendo certo, portanto, que a expressão “estado civil” pode ser entendida num sentido mais amplo (onde se inclui a situação de interdição) ou num sentido mais restrito (que apenas se reporta à situação do indivíduo relativamente ao casamento) e sendo certo que este sentido mais restrito, além de corresponder ao sentido mais vulgar ou corrente, também é, por vezes, utilizado pelo legislador, resta saber em qual desses sentidos deverá ser lida e interpretada a alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, quando alude a “acções relativas ao estado civil das pessoas”.
E, para tanto, importa atentar, desde já, no âmbito de competência das secções de família e menores que está definida nas demais alíneas do nº 1 e no nº 2 do citado art. 122º e que apenas se reporta a acções onde estão em causa situações que se inserem no conceito de “estado civil”, na sua acepção mais restrita e apenas reportado ao posicionamento do indivíduo relativamente ao casamento. Com efeito, tais alíneas reportam-se apenas a processos referentes a cônjuges e a situações de união de facto ou de economia comum e às variadas questões que podem surgir entre pessoas ligadas por esses vínculos ou às questões relacionadas com a sua dissolução, designadamente, execuções por alimentos e inventários.
Ora, se a norma em questão se reporta, na sua globalidade, a tais situações (em que, como se disse, está em causa o “estado civil”, na sua acepção mais restrita), porque razão o legislador teria pretendido introduzir nessa norma as acções de interdição que nada têm a ver com o casamento, situações de união de facto ou de economia comum? E porque razão o teria feito, de forma tão dúbia e equívoca, referindo-se apenas a “acções relativas ao estado civil das pessoas”?
Parece-nos, com efeito, que, se o legislador tivesse pretendido incluir as acções de interdição no âmbito de competência das secções de família e menores, o lógico seria que o tivesse feito numa norma à parte (como fez relativamente às questões referentes a menores e filhos maiores), ao invés de as ter incluído numa norma que se reporta, na sua globalidade, a situações em que está em causa o casamento e respectiva dissolução ou situações de união de facto ou de economia comum. E, de qualquer forma, se fosse essa a sua intenção, não deixaria de aludir expressamente às acções de interdição, tanto mais que esse tipo de acções sempre andou arredado do âmbito de competência dos tribunais de família e menores.
De facto, como se refere no Acórdão do STJ de 13/11/2012, supra citado, “…se o legislador pretendesse romper com esta longa tradição já sedimentada, estendendo a competência daquele tribunal de competência especializada a um tipo de acções de verificação frequente nos tribunais, mas em que não há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, não teria deixado de o fazer de forma mais clara ou expressa no texto da lei”.
Refira-se que, como se dá conta no aludido Acórdão, no parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (DAR II série A n.° 91/X/3, de 03.5.2008), referente ao processo legislativo que veio a dar origem à Lei 52/2008 (e onde, pela primeira vez, se fez alusão à competência dos juízos de família e menores para “acções relativas ao estado civil das pessoas” que também veio a ficar consignada na Lei 62/2013), escreve-se, na nota 5, o seguinte: “de referir que se atribui aos juízos de família e menores a competência para preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou economia comum – cfr. artigo 113.º, alínea b) - e acções de investigação da maternidade e paternidade – cfr. artigo 114.º, n.º 1, alínea l) –, competências que não se encontram actualmente acometidas aos Tribunais de Família e Menores”. Nem uma palavra, porém, acerca da eventual inclusão das acções de interdição no âmbito de competência dos juízos de família e menores, quando é certo que a competência destes juízos nessa matéria seria uma significativa inovação, não só porque nunca havia existido, mas também porque, ao contrário do que acontece com as situações de união de facto ou economia comum (que se assemelham às situações de casamento), a acção de interdição fugia completamente ao tipo de questões ou conflitos a que a norma se reporta e que se dirige, sobretudo, a situações de casamento, união de facto ou economia comum.
E tal não poderá deixar de significar que não existiu qualquer intenção legislativa de incluir as acções de interdição no âmbito de competência dos juízos de família e menores e das actuais secções de família e menores.
Parece-nos, portanto, em face do exposto, que, ao aludir, na alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou essa expressão, na sua acepção mais restrita, atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
Concluímos, assim, que a norma supra citada não inclui as acções de interdição no âmbito de competência das secções de família e menores, pelo que, face ao disposto no art. 130º, nº 1, alínea a), da Lei 62/2013, tal competência pertence às secções da instância local – no caso, à Secção Cível da Instância Local de Leiria – conforme tem decidido, aliás, esta Relação em vários acórdãos em que a questão se suscitou [Cfr. Acórdãos de Coimbra de 08/09/2015 (proc. nº 369/13.7TBLRA.C1), de 05/05/2015 (proc. nº 549/14.8TBLRA.C1), de 02/06/2015 (proc. nº 322/14.3TBLRA.C1) e de 10/03/2015 (proc.nº 1579/14.5TBLRA.C1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.]."
MTS