"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/12/2015

Injunção requerida contra um único dos cônjuges: quais as consequências na posterior execução?


1. O art. 741.º, n.º 1, CPC estabelece que, movida execução contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum. No seu sentido literal, o preceito significa que é possível que o credor comece por requerer a injunção contra um único dos cônjuges e depois invoque, na execução instaurada contra esse cônjuge, que a dívida é comum. Pode perguntar-se se esta consequência, independentemente da sua aceitabilidade, é efectivamente a que resulta do sistema processual civil.
 
A resposta à questão acima colocada não pode deixar de considerar o regime (interno) de injunção vigente em Portugal. De acordo com o disposto no art. 10.º, n.º 2, al. d), RPOP, o requerente da injunção tem o ónus de expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão. Estes factos podem referir-se a uma dívida que foi contraída perante o credor por ambos os cônjuges ou a uma dívida que foi contraída por apenas um dos cônjuges. Importa considerar separadamente cada uma destas situações, dado que a exigibilidade do conhecimento do credor sobre o carácter comunicável da dívida não é a mesma em cada uma delas.

2. a) Na primeira hipótese (dívida contraída perante o credor por ambos os cônjuges), parece ser indiscutível que a injunção deve ser requerida contra ambos os cônjuges. A dívida que é contraída por ambos os cônjuges é, naturalmente, uma dívida comum (art. 1691.º, n.º 1, al. a), CC), aceitando-se dificilmente que o credor possa desconhecer o carácter comum da dívida. Sendo assim, não pode deixar de se concluir que a injunção deve ser requerida contra ambos os cônjuges: trata-se de uma situação de litisconsórcio necessário legal (art. 34.º, n.º 3, CPC), que o credor não tem nenhum fundamento para não ter o ónus de observar.

O resultado possível do procedimento de injunção -- que é a formação de um título executivo -- tem de estar em consonância com a realidade substantiva. Em relação a uma dívida pela qual respondem ambos os cônjuges com os seus bens comuns (cf. art. 1695.º, n.º 1, CC) deve impor-se a formação de um título executivo contra ambos os cônjuges. Estranho seria que se admitisse a formação de um título executivo contra um dos cônjuges num caso em que a dívida é comum e em que ambos os cônjuges são responsáveis pela dívida.

Note-se, a propósito, que o credor não pode dispensar o litisconsórcio entre os cônjuges, requerendo a injunção apenas contra um deles e pedindo somente metade da dívida a esse cônjuge. Uma dívida comum é uma dívida que só pode ser exigida de ambos os cônjuges e pela qual respondem, antes do mais, os bens comuns desses cônjuges, não a soma de duas dívidas próprias de cada um dos cônjuges pelas quais respondem os bens próprios de cada um deles.

b) Em princípio, se a injunção for requerida contra um único dos cônjuges, a ilegitimidade do cônjuge requerido decorrente da preterição do litisconsórcio necessário deve ser conhecida oficiosamente no procedimento de injunção (cf. art. 577.º, al. e), e 578.º CPC). Se tal acontecer, o credor não obterá nenhum título executivo e não poderá instaurar a posterior acção executiva.

Suponha-se, no entanto, que essa ilegitimidade não é conhecida no procedimento de injunção e que o requerente obtém um título executivo contra o cônjuge requerido. Nesta hipótese, o ónus da obtenção de um título executivo contra ambos os cônjuges não pode deixar de implicar a preclusão da invocação da comunicabilidade da dívida numa execução posterior baseada no título formado no procedimento de injunção contra um único dos cônjuges.

Para além de tudo o mais, há um argumento substancial que impõe esta solução. O credor que, conhecendo (ou não devendo ignorar) que a dívida foi contraída por ambos os cônjuges, começa por requerer a injunção contra apenas um deles e que, na posterior acção executiva, invoca a comunicabilidade da dívida actua contra factum proprium e faz um uso reprovável dos meios processuais. A ordem jurídica não deve deixar sem sanção esta estratégia processual, aliás própria de um litigante de má fé (cf. art. 542.º, n..º 2, al. d), CPC).

Em suma: tendo o credor que conhece (ou que não pode desconhecer) que a dívida é comum obtido, através do procedimento de injunção, título executivo contra um único dos cônjuges, isso não pode deixar de implicar não só que a execução apenas pode ser movida contra esse cônjuge, mas também que o credor não pode invocar na execução a comunicabilidade da dívida. 

c) Resta retirar as consequências da admissibilidade da propositura da acção executiva apenas contra o cônjuge requerido no procedimento de injunção. As consequências são fáceis de extrair: o cônjuge (agora) executado é parte ilegítima na execução contra ele instaurada, porque o mesmo não pode ser executado sozinho por uma dívida que é comum de ambos os cônjuges.  

Pode assim concluir-se que à ilegitimidade do cônjuge requerido no procedimento de injunção se segue a ilegitimidade desse mesmo cônjuge no posterior processo de execução. Para que esta ilegitimidade seja conhecida no processo de execução basta que o cônjuge executado alegue e prove a comunicabilidade da dívida ou que, em função dos factos alegados pelo exequente, o tribunal se aperceba do carácter comum da dívida.

3. Também pode suceder que a dívida comum tenha sido contraída por um único dos cônjuges, ou seja, que se verifique alguma das situações reguladas no art. 1691.º, n.º 1, al. b), c), e d), CC. Em princípio, a solução desta hipótese não diverge daquela que foi proposta para o caso de a dívida ter sido contraída perante o credor por ambos os cônjuges.

A hipótese só merece uma resposta diversa se, no momento da apresentação do requerimento de injunção, não for exigível que o credor conheça a situação de casado do devedor que com ele contratou. Nesta circunstância, nada impede que o credor que obteve, através do procedimento de injunção, título executivo contra um dos cônjuges possa alegar, com fundamento no conhecimento superveniente da situação matrimonial do devedor, que se trata de uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges (cf. art. 741.º, n.º 1, CPC). O desconhecimento não culposo do estado de casado do devedor assegura que o credor actua de boa fé ao requerer a injunção apenas contra o (afinal) cônjuge contratante, o que lhe faculta a invocação da comunicabilidade da dívida na posterior execução.

Este caso permite ainda uma outra observação. Suponha-se que, durante a pendência da execução, o credor continua a desconhecer (sem culpa) que o devedor era casado e que, por isso, se tratava de uma dívida comum, não tendo, por essa razão, deduzido o incidente de comunicabilidade da divida com base no disposto no art. 741.º, n.º 1, CPC. Embora o estabelecido no art. 742.º, n.º 1, CPC quanto á comunicabilidade suscitada pelo executado só se refira à hipótese em que o exequente qualifica a dívida de um executado casado como sendo uma dívida própria e em que o cônjuge executado pretende alegar a comunicabilidade da dívida, nada impede que, através de uma interpretação extensiva do preceito, o mesmo regime deva valer para a situação em que o executado (não indicado como casado pelo exequente) pretende alegar que é casado e que, por isso, a dívida é comum.
 
4. A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 857.º, n.º 1, CPC (cf. TC 12/5/2015 (264/2015)) torna irrelevante a conduta do requerido no procedimento de injunção. Isto não justifica, sob pena de total subversão das finalidades do procedimento de injunção, uma simétrica irrelevância da conduta do requerente. Sendo assim, a regra não pode deixar de ser a de que as opções tomadas pelo credor no procedimento de injunção têm de se reflectir no posterior processo de execução.

MTS