"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/12/2015

Injunção requerida contra um único dos cônjuges: quais as consequências na posterior execução? (2)

 
1. Na sequência de um post anterior, volta-se ao tema das relações entre a legitimidade passiva no procedimento de injunção e na posterior acção executiva, quando se trate de uma dívida comum de ambos os cônjuges. Recorde-se que, no referido post se defendeu que, havendo preterição (injustificada) de litisconsórcio necessário passivo no procedimento de injunção, não pode esta ilegitimidade ser sanada na subsequente acção executiva através do invocação pelo credor exequente (anterior requerente da injunção) da comunicabilidade da dívida nos termos do art. 741.º, n.º 1, CPC.

Nada há a alterar quanto a esta solução. Só há que procurar reforçá-la.

2. O procedimento de injunção é um meio processual optativo, no sentido de que constitui uma alternativa a uma acção condenatória a ser proposta pelo credor. Uma coisa é, no entanto, aceitar-se o carácter optativo do procedimento de injunção e outra, bem diferente, é concluir que desse carácter resulta que nele não tem de ser observado um litisconsórcio necessário legal. O credor não tem de recorrer ao procedimento de injunção, mas isso não significa que, optando por requerer a injunção, não tenha de observar as regras processuais relativas à legitimidade das partes. 

Aliás, o referido carácter optativo do procedimento de injunção reforça o argumento de que, tal como sucede na acção de condenatória, também nesse procedimento têm de ser observadas as regras relativas ao litisconsórcio necessário legal. Muito estranho seria que, havendo dois meios alternativos para obter um título executivo relativo a uma dívida comunicável (naturalmente contra ambos os cônjuges), num deles devessem ser observadas as regras relativas ao litisconsórcio necessário legal entre cônjuges e no outro pudessem essas regras não ser observadas. Se assim fosse, em vez de dois meios alternativos entre si, haveria dois meios distintos de obter resultados igualmente distintos: a acção condenatória seria destinada a obter um título executivo contra ambos os cônjuges, o procedimento de injunção permitiria obter, à escolha do credor requerente. um título executivo contra um ou ambos os cônjuges.

Esta razão reforça a conclusão de que não é aceitável que o incidente de comunicabilidade da dívida seja uma forma de sanar a ilegitimidade do executado quando -- como aliás também acontece quando o título for uma decisão judicial -- o credor podia (e devia) ter obtido um título contra ambos os cônjuges. Dito de outra forma: em vez de se dizer que o regime do art. 741.º, n.º 1, CPC não se aplica quando o título executivo for o requerimento de injunção, o que se deve concluir é que esse preceito impõe que se trate de forma igual aquilo que é igual (demanda de um único dos cônjuges na acção condenatória e requerimento de injunção contra um único dos cônjuges).

O que há a retirar do disposto no art. 741.º, n.º 1, CPC é um argumento por analogia, e não um argumento a contrario. Em vez de se concluir, com base num argumento a contrario, que, se aquele preceito literalmente se refere apenas às decisões judiciais, então, sempre que o título não seja uma sentença condenatória, o credor pode alegar a comunicabilidade da dívida, o que se deve extrair, através de um argumento por analogia, é que, se o título executivo for um requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória, então o credor que não observou o litisconsórcio necessário entre os cônjuges (que teria de ter observado no processo declarativo) não pode alegar na execução subsequente a comunicabilidade da dívida. 

Julga-se ter fornecido no post anterior razões suficientes para este entendimento. Neste momento, apenas importa acrescentar que no âmbito do direito processual civil não pode haver nenhum obstáculo à utilização do argumento por analogia. Não há nenhuma razão para que o direito processual civil seja excluído do que é comum e habitual em muitos outros ramos do direito. É sabido que o argumento por analogia está excluído em relação a regras substancialmente excepcionais, bem como no âmbito de algumas regras penais e fiscais. A verdade é, no entanto, que o direito processual civil não é um direito substancialmente excepcional (e também não o são as regras respeitantes ao litisconsórcio legal), nem a ele podem ser estendidos os motivos que justificam a tipicidade penal ou fiscal e que, por isso, excluem o argumento por analogia. 

3. Poder-se-ia também procurar obstar à referida preclusão alegando que, não formando a aposição da fórmula executória ao requerimento de injunção, nenhum caso julgado, essa preclusão não se pode verificar.

Quanto a isto, a primeira coisa que importa referir é que a preclusão e o caso julgado (material) são duas realidades bem distintas. Para o demonstrar basta ter presente, a título de exemplo, que os meios de defesa não alegados pelo demandado ficam precludidos muito antes de haver qualquer caso julgado: a preclusão daqueles meios ocorre logo que se esgote o prazo para a apresentação da contestação (cf. art. 573.º, nº 1, CPC), ou seja, muito antes de haver qualquer decisão passível de caso julgado. O mesmo também decorre de um exemplo que pode ser retirado do regime do processo executivo: ainda que o título executivo seja uma sentença que foi impugnada através de um recurso ordinário com efeito devolutivo, ou seja, ainda que a execução seja provisória (cf. art. 704.º, n.º 1, CPC), o executado não pode alegar na oposição à execução nenhum facto modificativo ou extintivo anterior ao encerramento da discussão (cf. art. 729.º, al. g), CPC); de novo, (já) há preclusão sem (ainda) haver caso julgado.

Aliás, a admissibilidade da preclusão no procedimento de injunção, ainda que neste não se forme nenhum caso julgado, é algo de legalmente indiscutível. A título de exemplo basta atentar nas restrições -- também vigentes em Portugal -- à defesa do requerido após a aposição da fórmula executória no âmbito da injunção de pagamento europeia que constam do art. 20.º Reg. 1896/2006. 

O que nesta matéria se deve dizer é que o procedimento de injunção constitui um bom exemplo de que a preclusão é independente do caso julgado, não de que, como não é possível a formação de caso julgado nesse procedimento, não é possível nenhuma preclusão decorrente desse mesmo procedimento.  

Assim, nada impede que se entenda que, não tendo o credor alegado no procedimento de injunção a comunicabilidade da dívida, não o possa fazer na posterior acção executiva. Para fundamentar esta solução não é preciso mais do que fundamentar esta preclusão.
 
4. Neste momento, atendendo à declaração de inconstitucionalidade da norma constante do art. 857.º, n.º 1, CPC, é claro que a não invocação do carácter comunicável da dívida pelo requerido no procedimento de injunção não tem qualquer carácter preclusivo, pelo que essa omissão nunca o impede de alegar, nos termos do art. 742.º, n.º 1, CPC,  a comunicabilidade da dívida na execução posterior.

Um dia o regime constante do art. 857.º, n.º 1, CPC (que, como se sabe, foi considerado inconstitucional) será certamente substituído por um outro que não levante problemas de constitucionalidade. Como é evidente, tem de ser possível construir no direito interno um regime semelhante ao regime europeu instituído pelo Reg. 1896/2006 e ao de muitas outras ordens jurídicas (cf., por exemplo, § 796 (2) ZPO: "As excepções que respeitam à própria pretensão só são admissíveis se os fundamentos nas quais as mesmas se baseiam tiverem ocorrido depois da notificação do mandado de execução e se não puderem ser alegadas através de oposição"). Nessa altura, terá de ser discutido se a não alegação da comunicabilidade da dívida pelo requerido no procedimento de injunção implica a preclusão dessa alegação na posterior acção executiva.

O único aspecto que agora importa salientar é o de que, quanto à preclusão da invocação da comunicabilidade da dívida na acção executiva, a solução não tem de ser uniforme para ambas as partes do procedimento de injunção. A defesa da preclusão dessa invocação pelo credor (como se defendeu no post anterior e se reforça neste) não implica uma idêntica preclusão da alegação pelo requerido. Como fundamento desta disparidade de soluções basta recordar que, enquanto, numa acção declarativa, ficam precludidos os fundamentos de defesa não alegados pelo demandado (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC), não há nenhuma preclusão quanto aos fundamentos que o autor podia ter invocado como causa de pedir nessa mesma acção. Portanto, se se vier a impor, por uma razão legal ou doutrinária, uma diferente solução para as partes do procedimento de injunçao, isso nada constitui de extraordinário na ordem jurídica portuguesa.

5. Deixa-se ainda uma última observação de carácter mais geral.

No prefácio de um manual, F. Stein (1859-1923) – que foi um dos discípulos mais conhecidos de A. Wach (1843-1926) – afirmou (afastando-se, aliás, dos ensinamentos do seu grande mestre) que “o processo é o «direito técnico» na sua mais acurada expressão, dominado por conveniências mutáveis e sem quaisquer valores de perenidade” (Stein/Junker, Grundriβ des Zivilprozeβrechts und des Konkursrechts, 2.ª ed. (1924), XIV). É indiscutível que esta concepção do processo e do direito processual não corresponde àquela que hoje prevalece (não sendo também de todo indiscutível que ela tenha correspondido alguma vez a alguma época histórica). O processo é muito mais do que um somatório de formalidades que qualquer legislador pode introduzir, modificar ou retirar por razões puramente técnicas. Toda a discussão que, (principalmente) há alguns anos, se realizou quanto às relações do processo e do direito processual com a Constituição demonstra que assim é. 

Posto isto, só há que procurar ser coerente. Se o intérprete tiver presente a substância (ideológica e valorativa) que está subjacente à forma processual, então compreenderá que é necessário respeitar valores como a exigência da litigância de boa fé das partes e a necessária concordância do regime processual com o regime substantivo. É precisamente esta a razão que permite defender que a regra não pode ser outra que não a de que a omissão (consciente) da alegação pelo credor da comunicabilidade da dívida no procedimento de injunção não é compatível com a invocação dessa comunicabilidade na execução subsequente.
 
MTS