"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/12/2015

Jurisprudência (250)



Audiência prévia; dispensa; conhecimento do mérito no despacho saneador; 
nulidade processual


1. O sumário de RP 12/11/2015 (4507/13.1TBMTS-A.P1) é o seguinte:

I - O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas al.s a), b), c) e g) do n.º 1 do art. 591.º do Código de Processo Civil.

II - Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes (art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.

2. Da fundamentação do acórdão consta o seguinte:

«1 - Nulidade processual por preterição da audição prévia das partes relativamente ao saneador-sentença

Como resulta do relatório que antecede, o M.mo Juiz designou audiência prévia “nos termos e para os efeitos do art. 591.°, n.° 1, als. a) a d), do NCPC”, ou seja, para:

“a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.°;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.° 1 do artigo 595.°.”

Suspensa que foi a instância na pendência da audiência prévia tendo em vista a obtenção de acordo quanto ao objeto do litígio --- um, apenas um, dos fins para que fora designada --- logo que o M.mo Juiz tomou conhecimento de que as partes não lograram obtê-lo no prazo concedido (15 dias), dispensou a continuação da audiência e, invocando a aplicação do art.º 593º, nº 1, por referência aos art.ºs 591º, nº 1, al. d) e 595º do Código de Processo Civil, proferiu imediatamente saneador-sentença onde conheceu do mérito dos embargos, no sentido da sua improcedência.

A questão é saber se ocorre a nulidade processual invocada pela recorrente, por preterição do direito das partes de serem ouvidas relativamente à decisão que conheceu do mérito dos embargos de executado no despacho-saneador. [...]

As situações de não realização da audiência prévia constam do art.º 592º e nelas não cabem, com toda a evidência, os presentes embargos.

A dispensa de audiência prévia carece de preencher os requisitos previstos no art.º 593º, desde logo que a ação haja de prosseguir. Só neste caso o juiz pode dispensar a realização daquela audiência, contanto que se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do art.º 591º. O conhecimento da totalidade d
o mérito não é de considerar para efeitos do art.º 593º, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: “ações que hajam de prosseguir”. [Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina 2014, 2ª edição, pág.s 535 e 536. No mesmo sentido, o recente acórdão da Relação do Porto de 24.9.2015, proc. 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, citando, designadamente, o acórdão da Relação de Lisboa de 5.5.2015, publicado na mesma base de dados, segundo o qual “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592°, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art.º 591º, nº 1, al. b)”.]

Em qualquer caso, [o] juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas al.s a), b), c) e g) do nº l do art.º 591º. Ela é de realização necessária, designadamente, “quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados". Mesmo quando o tenha sido, a decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, nº 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.[
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 536.] A dispensa da audiência prévia só seria admissível num contexto que o tribunal sempre teria que descrever no despacho respetivo e só depois de ouvidas as partes (art.ºs 547º e 6º). [...]


Retomando o caso sub judice, é por demais evidente a necessidade de realizar a audiência prévia ante a perspetiva de o tribunal conhecer do mérito dos embargos de executado. Não só não ocorre nenhum dos motivos legalmente previstos para a não realização ou para a sua dispensa (art.ºs 592º e 593º), como também o próprio tribunal a designou, além do mais, com a finalidade expressa prevista na al. b) do nº 1 do art.º 591º, ou seja, para “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz […] tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

O próprio tribunal reconheceu, ao designar a audiência, a necessidade de ouvir as partes para aquele fim. Convocou-as também para esse efeito. Não podia, por isso, simplesmente, conhecer do mérito da ação, sem cumprir aquele desígnio, aquela finalidade. Ao dispensar a sua continuação nos termos do art.º 593º, nº 1 --- como vimos, não aplicável ao caso --- com a agravante de não ter comunicado essa posição às partes antes da comunicação do teor da decisão sobre o mérito da causa no despacho saneador-sentença, violou o seu direito de serem ouvidas sobre a matéria de facto e de direito em causa e defraudou as suas legítimas expetativas de contribuírem para a sua discussão em função da antecipação da decisão para o momento do saneador.

Com efeito, a decisão de mérito proferida constituiu para as partes uma decisão-surpresa, proibida nos termos do art.º 3º, nº 3, e em violação do art.º 591º, nº 1, al. b).

A preterição daquela formalidade processual constitui a omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa (art.º 195º, nº 1), pelo que, tendo sido invocada (como nulidade), em sede de recurso e a coberto da decisão recorrida, sempre pode ser apreciada nesta Relação.

Com efeito e ao abrigo do nº 2 do art.º 195º, cumpre determinar a invalidade de todos os atos processuais subsequentes à audiência prévia, na parte que foi realizada, designadamente o saneador-sentença, devendo dar-se cumprimento aos fins para que foi designada, com exceção da tentativa de conciliação, já consumada.»


3. Embora se concorde com a solução adoptada no acórdão, importa fazer as seguintes observações:

-- O acórdão complica o que era bastante mais simples de fundamentar; a audiência prévia não podia ser dispensada, simplesmente porque a sua realização é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art. 591.º, n.º 1, al. b), e 593.º, n.º 1 a contrario, CPC); dado que, na única audiência prévia que foi realizada no processo, não chegou a efectuar-se nenhuma discussão de facto e de direito, porque nela as partes pediram a suspensão da instância com vista a obterem uma conciliação, o juiz não podia conhecer do mérito no despacho saneador sem antes convocar as partes para uma segunda audiência prévia;

-- É discutível que a expressão "nas ações que hajam de prosseguir" utilizada no art. 593.º, n.º 1, CPC tenha o sentido que lhe é atribuído no acórdão (e pela doutrina nele citada); o sentido da expressão não é o de permitir que o tribunal possa dispensar a audiência prévia quando o despacho saneador que venha a proferir não seja uma decisão final e o de não permitir essa dispensa quando o despacho saneador seja uma decisão final; é fácil demonstrar que esta interpretação não é aceitável: suponha-se que o réu, na contestação, invoca uma excepção peremptória; no processo pendente, a réplica é admissível e o autor contesta nela a excepção; o tribunal entende que a excepção deve ser rejeitada no despacho saneador; de acordo com a interpretação realizada no acórdão, dado que a excepção vai ser rejeitada e a acção vai prosseguir, nada impediria a dispensa da audiência prévia; como é evidente, tal não é admissível, porque a tal obsta o disposto no art. 591.º, n.º 1, al. b), e 593.º, n.º 1 a contrario, CPC; a expressão "nas ações que hajam de prosseguir" deve ser interpretada em conjugação com o disposto no art. 590.º, n.º 1, CPC: as acções que devem prosseguir são aquelas em que a petição inicial não tenha sido indeferida;

-- O acórdão entende que o proferimento do saneador-sentença pela 1.ª instância constitui uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1, CPC); isto é verdade, mas não é toda a verdade: o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um acto, mas também com o conteúdo do despacho).

MTS