"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2015

O que vale como acção principal após um procedimento cautelar?


1. Imagine-se a seguinte hipótese: A., credor de B., requer contra o seu devedor uma providência cautelar de arresto. Produzida prova sumária, o Tribunal reconhece como plausível a tentativa de dissipação do património de B., pelo que decreta o arresto dos seus bens.

Obtida a providência, o requerente apresenta -- poucos dias depois -- requerimento de injunção; no prazo legalmente estabelecido, o requerido opõe-se à injunção e o procedimento é convolado em processo declarativo (art. 16.º do regime anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98).

Já na pendência da acção declarativa de cobrança do crédito, o requerido alega que a providência de arresto caducou por facto imputável ao autor: cumpridos os 30 dias previstos no art. 373.º CPC, nenhuma acção principal foi por si instaurada. Importa saber se este argumento pode proceder.
 
2. Excepção feita às hipóteses em que seja decretada a inversão do contencioso, os procedimentos cautelares são apenas instrumentais perante outros processos: a composição (provisória) que deles resulta visa assegurar que o decurso do tempo não frustra a utilidade da decisão que venha a acolher (definitivamente) a pretensão do requerente. Qualquer providência é, pois, dependência da acção onde tal pretensão possa vir a ser, em definitivo, tutelada.

Partindo desta ideia, a causa dependente -- isto é, a acção principal a que se refere o art. 364.º CPC -- há-de ser uma acção judicial, declarativa ou executiva, que permita a obtenção de uma tutela definitiva.

Também por força da instrumentalidade dos procedimentos cautelares, a providência cautelar decretada caduca se o requerente não vier a propor a acção principal nos 30 dias subsequentes à data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que ordenou a providência (373.º/1 al. a), CPC). O preceito deixa claro que é sobre o requerente que recai o ónus de propositura da acção principal.

Preenchidos os requisitos do regime anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, não há razão para que o arrestante tenha um tratamento distinto dos restantes credores: se lhe era permitido recorrer ao processo de injunção antes do decretamento da providência cautelar, ser-lhe-á também permitido fazê-lo em momento posterior. 

Uma vez que a injunção não se reveste de carácter jurisdicional, não parece que a apresentação do requerimento com que este procedimento se inicia possa valer como acção principal para efeitos do art. 373.º CPC. Admitindo que o requerido neste procedimento não deduz oposição, nem por isso fica o requerente dispensado do ónus de propositura da acção principal. Não o fazendo, caduca a providência.

Curiosamente, a oposição do requerido altera por completo os dados do problema. Neste caso o procedimento de injunção convola-se, após distribuição, em acção declarativa especial (art. 16.º do regime anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98; art. 10.º/4 Dec.-Lei n.º 62/2013) ou em processo comum de declaração (art. 10.º/2 Dec.-Lei n.º 62/2013). Sabendo que a convolação ocorre por vontade do requerido -- nunca do requerente -- fica por saber se o ónus que recaía sobre o arrestante se mantém. A dificuldade é esta: uma reposta negativa conduz à caducidade da providência cautelar. Por um lado, assumindo que o requerente da injunção não dispunha de um título executivo (de outro modo porque recorreria ele à injunção?), está-lhe vedado o recurso à acção executiva. Por outro, a oposição do requerido assegura que qualquer acção declarativa posterior está votada ao insucesso por se verificar uma excepção de litispendência.

A protecção -- de resto perfeitamente compreensível -- que o art. 373.º CPC confere ao requerido exige que seja proposta uma acção judicial nos 30 dias seguintes à decisão que decretou a providência, de forma a evitar que uma situação que se pretende provisória se possa eternizar por inércia do requerente. No entanto, há que entender que não é relevante a parte que propõe uma acção declarativa depois do decretamento da providência cautelar. Assim, opondo-se ao requerimento de injunção dentro daquele prazo, o requerido substitui-se ao requerente quanto ao ónus de propositura de uma acção principal (o mesmo valendo para a acção de simples apreciação negativa que venha a ser intentada por ele na sequência do decretamento de uma providência cautelar). 

3. Deste modo, há que concluir que a acção declarativa decorrente da convolação do requerimento de injunção substitui, quando seja respeitado o prazo estabelecido no art. 373.º/1 al. a), CPC, a acção principal que o requerente da anterior providência cautelar tinha o ónus de propor, não se verificando, por isso, a caducidade desta providência pela omissão da propositura daquela acção principal.

Pedro Lacerda
(Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa)