Pessoa colectiva de direito público;
responsabilidade civil extracontratual; competência material
1. O sumário de STJ 1/3/2018 (1203/12.0TBPTL.G1.S1) é o seguinte:
I. A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da ação, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
II. O art. 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa consagra, em matéria de competência dos tribunais administrativos e fiscais, uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
III. Com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.2.1. Posto que os autores deduziram contra a ré Freguesia de … pedido de indemnização baseado na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, alegando que a mesma ofendeu o seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam ao causar com a sua atuação danos no respectivo muro, está em causa saber se são os tribunais administrativos e fiscais ou os tribunais judiciais os competentes para conhecer deste pedido.
A este respeito, defende a recorrente Freguesia de … que, estando-se perante uma situação de responsabilidade civil extracontatual decorrente do exercício das suas funções públicas, a jurisdição competente para conhecer do litígio é a jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa e da al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Contrariamente, entendeu o acórdão recorrido que essa competência pertence aos tribunais comuns, uma vez que a relação material controvertida está configurada, na petição inicial, como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.
Mais argumentou que, apesar do artº 4.º n.º 1, al. f ) do ETAF prever que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, não podemos dissociar essa responsabilidade civil extracontratual dos princípios consagrados constitucionalmente nos citados art.ºs 211° e 212° da Constituição, subjacentes àquela norma e que determinam a competência dos tribunais administrativos e fiscais apenas para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, mas já não para as relações jurídicas de direito privado, da competência residual dos tribunais judiciais.
Cremos, porém, que sem razão.
Senão vejamos.
A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Por sua vez, estabelece o art. 212º, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF de 2002 […] (aqui aplicável visto a ação ter sido proposta em 16.11.2012 [...] e, de harmonia com disposto no art. 5º, nº1 do mesmo diploma o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa é o da propositura da ação), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1 do mesmo diploma que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
« (…) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (…)
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público; (…) ».
E ainda que à primeira vista possa parecer que a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais para conhecer de questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público colide com o princípio da reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, consagrado no nº 3 do art. 212º da CRP, temos por certo ser essa incompatibilidade meramente aparente.
É que, contrariamente ao entendimento seguido no acórdão recorrido, o nº 3 deste art. 212º não consagra uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de matérias de natureza administrativa, no sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e de que só eles poderão julgar tais questões.
Trata-se, antes, segundo orientação pacífica na doutrina [Neste sentido, cfr. Vieira de Andrade, in “ A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs.; Sérvulo Correia, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes,” 1995, pág. 254; Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, n.º 16, págs. 35 e 36; Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, n.º 24, págs. 3 e segs.], de uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
Ou seja, o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.
No mesmo sentido e de forma unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem também entendido que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 deste art. 212º foi a abolição do caráter facultativo da jurisdição administrativa, rejeitando uma interpretação deste artigo conducente à consagração de uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa [...].
É também este o entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo [Cfr., entre outros, os Acórdãos do Pleno de 1998.02.18- recº n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14- rec. n.º 45633, de 2001.01.24 – rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 – rec. n.º 1329/02].
E foi também esta a leitura feita pelo legislador do ETAF de 2002, conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem [...], onde se afirma, de forma clara, que:
«(…) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.
Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (…).
Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A este respeito, defende a recorrente Freguesia de … que, estando-se perante uma situação de responsabilidade civil extracontatual decorrente do exercício das suas funções públicas, a jurisdição competente para conhecer do litígio é a jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa e da al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Contrariamente, entendeu o acórdão recorrido que essa competência pertence aos tribunais comuns, uma vez que a relação material controvertida está configurada, na petição inicial, como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.
Mais argumentou que, apesar do artº 4.º n.º 1, al. f ) do ETAF prever que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, não podemos dissociar essa responsabilidade civil extracontratual dos princípios consagrados constitucionalmente nos citados art.ºs 211° e 212° da Constituição, subjacentes àquela norma e que determinam a competência dos tribunais administrativos e fiscais apenas para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, mas já não para as relações jurídicas de direito privado, da competência residual dos tribunais judiciais.
Cremos, porém, que sem razão.
Senão vejamos.
A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Por sua vez, estabelece o art. 212º, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF de 2002 […] (aqui aplicável visto a ação ter sido proposta em 16.11.2012 [...] e, de harmonia com disposto no art. 5º, nº1 do mesmo diploma o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa é o da propositura da ação), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1 do mesmo diploma que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
« (…) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (…)
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público; (…) ».
E ainda que à primeira vista possa parecer que a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais para conhecer de questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público colide com o princípio da reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, consagrado no nº 3 do art. 212º da CRP, temos por certo ser essa incompatibilidade meramente aparente.
É que, contrariamente ao entendimento seguido no acórdão recorrido, o nº 3 deste art. 212º não consagra uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de matérias de natureza administrativa, no sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e de que só eles poderão julgar tais questões.
Trata-se, antes, segundo orientação pacífica na doutrina [Neste sentido, cfr. Vieira de Andrade, in “ A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs.; Sérvulo Correia, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes,” 1995, pág. 254; Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, n.º 16, págs. 35 e 36; Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, n.º 24, págs. 3 e segs.], de uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
Ou seja, o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.
No mesmo sentido e de forma unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem também entendido que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 deste art. 212º foi a abolição do caráter facultativo da jurisdição administrativa, rejeitando uma interpretação deste artigo conducente à consagração de uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa [...].
É também este o entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo [Cfr., entre outros, os Acórdãos do Pleno de 1998.02.18- recº n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14- rec. n.º 45633, de 2001.01.24 – rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 – rec. n.º 1329/02].
E foi também esta a leitura feita pelo legislador do ETAF de 2002, conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem [...], onde se afirma, de forma clara, que:
«(…) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.
Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (…).
Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado»."
[MTS]