"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/10/2018

Jurisprudência 2018 (103)


Decisão interlocutória; revista;
convenção de arbitragem; apreciação


1. O sumário de STJ 20/3/2018 (1149/14.8T8LRS.L1.S1) é o seguinte:


I - Admite revista o acórdão da Relação que, incidindo sobre decisão interlocutória de conteúdo adjectivo – indefere a excepção de preterição do tribunal arbitral e confere competência material ao tribunal judicial para conhecer a causa – integra a norma exceptiva do art. 671.º, n.º 2, al. a), mediante a previsão constante do art. 629.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC.

II - Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.

III - Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

a) Da (in)admissibilidade do recurso
A recorrida defende a inadmissibilidade do recurso de revista, apoiando-se no disposto no artigo 671º. Refere que não estão reunidos os pressupostos aí enunciados, uma vez que a decisão recorrida não conheceu do mérito da causa, não pôs termo ao processo, nem absolveu da instância a Ré.

Como já se anotou, o acórdão recorrido revogou a decisão da 1ª instância que havia julgado procedente a excepção da preterição de tribunal arbitral.

Na presente revista, a recorrente refuta essa decisão e bate-se pela repristinação do decidido na 1ª instância.

Apesar de, em princípio, não admitirem recurso de revista os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjectiva (como é o caso da decisão recorrida), a lei processual civil abre, no entanto, as duas excepções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671º. Admitem, por conseguinte, revista os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, integrem alguma das previsões constantes do n.º 2 do artigo 629º do CPC[2].

Uma dessas situações de excepção é a que se reporta à violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado – alínea a), do n.º 2 do artigo 629º.

Nos termos do artigo 96º, alínea b), do CPC, a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.

No caso vertente, a Ré, na revista, impugna a decisão que, indeferindo a excepção da preterição do tribunal arbitral, conferiu competência material ao tribunal judicial para conhecer dos autos.

Estando em causa a suposta violação das regras de competência em razão da matéria, nenhuma dúvida se levanta quanto à admissibilidade da revista.

b) Da preterição do tribunal arbitral voluntário 
Veja-se, antes de mais, o modo como o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de fazer improceder a excepção da preterição do tribunal arbitral voluntário:

“4.2. Passando, então, ao escrutínio do objecto da presente lide (tal como o mesmo foi definido pela apelante através das conclusões do seu recurso), impõe-se esclarecer que, pese embora a língua oficial dos autos seja o português, é útil observar o texto em língua inglesa da cláusula 19 c) do contrato firmado entre as partes - e que, insiste-se, é aquela cuja interpretação permitirá determinar o destino do pleito – porquanto, nas suas contra-alegações, a Ré, mais ou menos explicitamente, põe em causa a tradução desse contrato apresentada pela Autora a acompanhar a petição inicial deste processo (e que é a usada no texto da decisão recorrida, a saber e na parte que é verdadeiramente relevante: «… e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional).

E é, novamente apenas na parte verdadeiramente relevante, o seguinte o texto em inglês dessa cláusula: «…and any disputes between the parties arising under or in connection with or relating to any alleged breach of this Agreement shall be settled by arbitration in the city of Barcelona in accordance with the rules then obtaining of International Chamber of Commerce. …».

Inequivocamente, a tradução de que o Mmo Juiz a quo se serve para fundamentar o seu sentenciamento não é a única possível mas, não menos indisputavelmente, as palavras-chave do clausulado são alguma alegada violação do presente Contrato ou to any alleged breach of this Agreement.

Em suma, o compromisso arbitral aplica-se quanto a todos os conflitos emergentes (arising under - os que surgem por baixo de) ou conexos/em conexão ou relativos a/relacionados com uma qualquer alegada violação/quebra do contrato assinado pelas partes no dia 25/04/1996.

E é essa a leitura que um/a declaratário/a normal colocado/a na posição do/a real declaratário/a fará desse conjunto de palavras escritas, sendo esse o sentido que, tendo bem mais do que um mínimo de correspondência nesse texto, conduz a um maior equilíbrio das prestações e traduz uma actuação de acordo com os ditames da boa fé.

E como se tal não fosse - mas é - já suficiente, a interpretação agora manifestada é, sem margem para dúvidas, aquela que traduz a solução ético-socialmente mais acertada na actual situação do processo e, bem assim, aquela da qual melhor resulta a salvaguarda da segurança e da confiança jurídicas (legal certainty), as quais, por sua vez, constituem Valores ético-sociais da maior relevância, pois a segurança e a confiança são condições indispensáveis ao normal funcionamento do comércio jurídico e, mais do que isso, da própria vida em sociedade.

4.3. Ora, lendo com a devida atenção a petição inicial deste processo, o que se constata é que a Autora apenas pretende ver discutidas as seguintes questões:

a) qual a natureza jurídica do contrato - ou seja, como deve o mesmo ser qualificado (se é ou não um contrato de concessão comercial);

b) se lhe é ou não devida uma indemnização de clientela face à denúncia do contrato operada (unilateralmente) pela Ré nos termos previstos na cláusula 12 desse acordo negocial, o que implica decidir se a cláusula 9 do mesmo é ou não nula, e, finalmente,

c) qual o valor a fixar a título dessa indemnização.

Manifestamente e por mais que a Ré o queira fazer crer e o Mmo Juiz a quo assim o queira configurar, nenhuma dessas questões jurídicas - nem mesmo a indicada na alínea b) supra, que respeita a problemas de validade dos termos do acordo celebrado entre as partes - se reconduz a uma quebra ou violação do que se encontra estipulado em qualquer das cláusulas desse contrato.

O que significa que (sem haver sequer que cuidar se, em outro processo, a Ré violou o compromisso arbitral consubstanciado na alínea a) da cláusula 19 do contrato dos autos) é totalmente improcedente a excepção de preterição de tribunal arbitral invocada pela Ré, não podendo, portanto, ser mantida a decisão recorrida, antes tendo a mesma que ser revogada e substituída por outra que, declarando essa improcedência, determine o prosseguimento da tramitação do processo.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta”.

A nossa decisão irá, como veremos, em sentido contrário.

Está perfeitamente adquirido que, mediante a inclusão de cláusula compromissória, as partes decidiram submeter ao tribunal arbitral os eventuais litígios que as dividissem quanto ao contrato firmado em 25.04.1996.

A questão está em saber se essa cláusula compromissória abrange o presente litígio, sendo necessário, para o efeito e antes de mais, caracterizar este a partir da causa de pedir invocada e do pedido deduzido.

Alegou a Autora que:

- No ano de 1996, a Autora (então denominada “CC, Lda.”), celebrou com a Ré um contrato de distribuição, em regime de exclusividade, através do qual se obrigava a promover a venda, distribuição e assistência pós-venda, incluindo a instalação, formação e suporte dos produtos certificados da marca “BB” comercializados pela Ré à Autora no território português.

- Assim, durante mais de 16 anos, a Autora comprou à Ré diverso material do seu comércio (instrumentos científicos) com a finalidade de revender esses mesmos bens a clientes por si angariados no território português, a quem prestava formação técnica e a quem fornecia os necessários serviços de assistência pós-venda, manutenção preventiva e correctiva;

- Tais vendas e serviços foram sempre efectuados de acordo com as directrizes e formação prestados pela Ré aos colaboradores da Autora, que se deslocavam às instalações da Ré, em Barcelona, pelo menos duas vezes ao ano;

- A Ré fez cessar esse contrato em 31.12.2012; [...]

- A Autora angariou centenas de clientes para a marca da Ré, ao longo de mais de 16 anos, clientela essa de que a Ré passou a dispor após a cessação do contrato em causa;

- Em resultado das vendas realizadas nos últimos cinco anos de duração de contrato (2008 a 2012), a Autora obteve uma remuneração anual média de 1.343.611,88 €;

- Estando verificados os requisitos previstos no n.º 1, alíneas a), b) e c) do artigo 33º do DL 178/86, de 3 de Julho, tem a Autora direito a uma indemnização de clientela no valor de 1.343.611,88 €.

No quadro sinteticamente descrito, a relação contratual estabelecida entre a Autora e Ré reconduz-se a um contrato de distribuição comercial, na modalidade de concessão comercial.

Cessado esse contrato em 31.12.2012, através da denúncia formalizada por carta de 16.11.2102, reclama agora a Autora uma indemnização de clientela, ao abrigo do que dispõe o artigo 33º do DL do DL 178/86, de 3 de Julho. [...]

Resta saber, como se disse acima, se esse pedido de indemnização se inscreve no âmbito da cláusula compromissória constante da cláusula 19ª, alínea c) do mencionado contrato, ou seja, se a competência para dirimir o conflito é do tribunal arbitral.

Quando se procura apurar o sentido da convenção de arbitragem, para efeitos do eventual deferimento da competência ao tribunal arbitral, devem aplicar-se as regras gerais de interpretação do negócio jurídico.

Assim, conforme resulta da conjugação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, as linhas gerais que orientam a correcta interpretação da vontade negocial resumem-se ao seguinte: a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, devendo a interpretação adoptada, quando se trate de negócio formal, ter um mínimo de correspondência no texto do documento que a corporiza.

Vejamos, então, o que se estipulou na mencionada claúsula 19ª, alínea c):

“O presente Contrato deverá ser regido pelas leis de Espanha e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional”.

Depreende-se do texto do acórdão recorrido que a razão que ditou a improcedência da excepção da preterição do tribunal arbitral foi a de não vir configurada uma situação de violação do contrato, porque só esta poderia incluir-se no âmbito da cláusula compromissória.

Supomos, porém, que tem de se ir mais longe na interpretação e de se indagar para além da pura literalidade desta alínea c).

Por isso, numa perspectiva mais contextualizada do programa contratual, importa considerar também o teor do estipulado na alínea b) da mesma cláusula 19ª.

Aí se dispôs o seguinte:

“Nenhuma das partes deverá ser responsável para com a outra por motivos presentes neste Contrato ou por qualquer falha de desempenho ao abrigo do presente contrato por compensações ou danos relacionados com a perda dos potenciais lucros ou dos lucros reais ou comissões de vendas ou venda previstas, ou despesas, investimentos ou compromissos feitos em ligação com presente”.

Parece, pois, que as partes quiseram renunciar reciprocamente a futuros litígios envolvendo perdas, danos ou compensações derivados do contrato, reservando exclusivamente ao tribunal arbitral todos os conflitos que viessem a surgir relacionados com todas as outras vertentes do contrato.

Será que a indemnização de clientela constitui uma dessas outras vertentes?

O artigo 18º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV) [...] determina que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.

Encontra-se aqui consagrado o princípio da competência-competência, cuja justificação radica na necessidade de evitar que, invocada por uma das partes litigantes a falta de competência do tribunal arbitral, tivesse de ser o tribunal judicial a decidir dessa mesma competência. Atribui-se, portanto, ao tribunal arbitral competência para julgar da sua própria competência, com a necessária ponderação sobre a validade da convenção de arbitragem e sobre a arbitrabilidade do litígio.

Paralelamente, estatui o artigo 5º, n.º 1, da mesma Lei que o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.

Desta norma emana o efeito negativo do referido princípio, ao impor aos tribunais judiciais o dever de se absterem de julgar sobre as referidas matérias, antes que o árbitro se pronuncie sobre as mesmas. [...]

Logo, quando se suscitem dúvidas sobre o âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio [...].

Embora nos queira parecer que a regulamentação do ponto 19º do contrato aponte para a exclusividade de competência da jurisdição arbitral (uma vez que não há a mínima referência a uma instância não arbitral), admite-se que possam existir dúvidas quanto ao âmbito da cláusula compromissória e a sua aplicabilidade ao caso concreto, considerando a forma algo ambígua como se encontra redigida.

Todavia, o que sempre resulta evidente é que nada existe que afecte, de modo manifesto, a validade da dita cláusula ou a sua exequibilidade, pelo que caberá ao tribunal arbitral conhecer, em primeira mão, da sua aplicabilidade ao conflito que opõe a Autora à Ré."
[MTS]