"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/10/2018

Jurisprudência 2018 (93)


Litigância de má fé;
omissão do dever de cooperação


I. O sumário de RG 10/5/2018 (27/15.8T8TMC.G1) é o seguinte:

1 - A inutilidade superveniente da lide não prejudica a apreciação da litigância de má-fé.

2 - Deve ser sancionado como litigante de má de fé, nos termos do disposto no art. 542º, n.ºs 1 e 2, als. a), c) e d) do Código de Processo Civil, a parte que deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, omitiu gravemente os deveres de cooperação e de boa-fé processual (não cuidando de esclarecer o Tribunal e a contraparte de um equívoco por si induzido quanto ao seu estado civil e à identificação do seu cônjuge) e que, com o seu comportamento omissivo, logrou fazer do processo um uso manifestamente reprovável com vista a entorpecer e a retardar a ação da justiça.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[…] o tipo subjectivo da litigância de má-fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.

Na questão submetida à nossa apreciação o fulcro principal da objeção colocada pelo recorrente reside no facto de a Mmª juiz “a quo” ter feito uma incorreta valoração dos factos provados, já que, ao contrário do que foi exarado na decisão recorrida, jamais o recorrente alegou que estava casado com L. C..

Em abono da verdade se diga que esta afirmação do recorrente é correta. Não podemos, no entanto, deixar de ter presente e valorar o comportamento processual adotado nos autos pelo recorrente, dado o modo dissimulado com que se defendeu na contestação, ao arguir a exceção de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário passivo por não ter sido demandada a sua mulher, sem a identificar, como podia e devia, ao que acresce o facto do averbamento da dissolução do seu casamento com L. C. apenas ter sido feito em 29/12/2016, ou seja, já depois da prolação do despacho que admitiu a intervenção principal provocada da chamada Liliosa Bento na pressuposição desta ser à data sua mulher, o que gerou nos autos a fundada (mas errónea) convicção que aquele vínculo matrimonial se mantinha vigente, não se tendo sequer prontificado a providenciar pelo pronto esclarecimento do apontado equívoco. 

O recorrente, não só induziu o referido equívoco, como, face à censurável atitude omissiva a que voluntariamente se remeteu, legitimou que o mesmo perdurasse durante cerca de dois anos, nada tendo feito para o esclarecer, praticando, pois, omissão grave do dever de cooperação e logrando entorpecer a ação da justiça.

Concretizando o explicitado:

- na contestação, apresentada em 28.04.2015, o recorrente afirmou que era «casado no regime de comunhão de adquiridos, sendo necessária a intervenção/autorização da sua mulher para efeitos de qualquer alienação patrimonial», tendo arguido a excepção de preterição do litisconsórcio necessário passivo.

- não identificou, como podia e lhe era exigido, o seu cônjuge, nem juntou certidão do registo civil que atestasse o seu casamento; 

- notificados da contestação e alicerçados nas menções constantes do registo civil, os Autores, em 20/11/2015, requereram a intervenção principal provocada de L. C., na qualidade de mulher do co-réu Paulo, a fim de suprir a ilegitimidade conjugal.

- notificado do requerimento do incidente de intervenção principal provocada de L. C., como sua mulher e a fim de suprir a invocada ilegitimidade plural, ao invés de elucidar o Tribunal sobre o equívoco em causa atinente à identificação da sua mulher o réu Paulo pugnou pela necessidade de despacho de admissão do incidente ou, em alternativa, requereu prazo para se pronunciar. 

- por despacho datado de 18/01/2006, foi liminarmente admitido o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos autores com vista a suprir a invocada ilegitimidade conjugal e regularizar a instância.

- regularmente notificado desse incidente, nos termos e para os fins do disposto no art. 318º do CPC, o co-réu Paulo nada disse, nomeadamente que o seu casamento com a chamada já havia sido dissolvido por divórcio em 22/05/2001, pelo que deu azo a que subsistisse o equívoco em torno da identificação da sua mulher.

- o incidente de intervenção principal provocada passiva de L. C., na pressuposição de ser mulher do co-R. Paulo e a fim de sanar a ilegitimidade conjugal por este invocada, foi deferido por despacho datado de 4/03/2016.

- regularmente notificado desse despacho que admitiu a intervenção principal passiva da chamada, na qualidade de sua mulher, o recorrente (mais uma vez) nada fez para esclarecer o equívoco gerado nos autos e que para si era manifesto, pois bem sabia estar dela divorciado desde 22/05/2001. 

- de seguida, o Tribunal recorrido encetou diversas e morosas diligências tendentes à citação da chamada para os termos da ação, que se prolongaram por mais de um ano e vieram a revelar-se infrutíferas, período em que o recorrente manteve inalterada a sua postura omissiva, nada tendo feito no sentido de esclarecer o equívoco gerado nos autos.

- conforme resulta das certidões de nascimento constantes de fls. 65 e 68, o réu Paulo está divorciado da chamada L. C. desde o dia 22/05/2001, por sentença do Circulo Judicial No e Para o Condado de Orange, Flórida, Estados Unidos da América, a qual foi revista e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e transitou em julgado em 12/12/2016, tendo o averbamento desse divórcio sido apenas efetivado em 29/12/2016. 

Ora, ao alegar que era casado no regime de comunhão de adquiridos, tendo inclusivamente invocado a exceção de preterição do litisconsórcio necessário passivo (por ilegitimidade conjugal), e omitindo do Tribunal que já não era casado com a chamada L. C. desde 22/05/2001, facto este do seu conhecimento pessoal, e nada tendo feito para esclarecer o equívoco legitimamente formado pelo Tribunal e pela contraparte, equívoco este sedimentado pelas menções que constavam, do registo civil (arts. 1º, n.º 1, als. d) e q), 2º a 4º do Cód. Registo Civil), visto inexistir então averbada a extinção do casamento que celebrou com a chamada, nem tão pouco averbado o alegado […] casamento que este tardiamente declarou nos autos ter contraído com B. J., tendo deixado correr termos o incidente de intervenção provocada deduzido na pressuposição da chamada ser ainda sua mulher, bem como assumindo uma postura de completo alheamento e indiferença face às múltiplas diligências encetadas pelo Tribunal no sentido de citar uma pessoa que já há mais de 14 anos antes da dedução da contestação não era sua mulher (e que, por isso, não era titular de qualquer interesse em contradizer), é de concluir que o recorrente não só deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (ao arguir a exceção de ilegitimidade conjugal), como omitiu gravemente os deveres de cooperação e de boa-fé processual para com o Tribunal e os Autores, além de que logrou fazer do processo um uso manifestamente reprovável com vista a entorpecer a ação da justiça, conseguindo que os autos estivessem praticamente enleados durante cerca de dois anos em torno do suprimento dessa infundada exceção de ilegitimidade conjugal.

Por isso se conclui que a conduta do recorrente deve ser considerada dolosa, tendo preenchido as condutas previstos nas alíneas a), c) e d), do n.º 2, do art. 542º do CPC.

Nesta conformidade, embora com fundamentação não inteiramente coincidente com a decisão recorrida, é de confirmar o preenchimento dos pressupostos da condenação do recorrente como litigante de má-fé."

[MTS]