"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/10/2018

Reconvenção, valor da causa e admissibilidade de recurso ordinário


1. Num recente acórdão (RE 25/1/2018 (349/17.3T8ORM-A.E1)), afirma-se que, "se alguma das partes depois da apresentação da reconvenção interpuser qualquer recurso, o valor da ação para efeitos do regime de recurso, passa a ser também o equivalente à soma a que alude o artº 299º n.º 2 do CPC". O afirmado apoia-se na autoridade de Alberto dos Reis, que, a propósito da dedução pelo réu de um pedido cujo valor se soma ao do pedido do autor, escreveu o seguinte: "Se alguma das partes quiser, depois da contestação, interpor qualquer recurso, o valor da acção, para efeito do regime do recurso, passa a ser também o equivalente à soma ordenada no artigo 313.º" (correspondente, em parte, ao actual art. 299.º, n.º 2 e 3, CPC) (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil III (1946), 655). Pese a indiscutível autoridade de Alberto dos Reis, é muito duvidoso que assim deva ser.

No entanto, antes de procurar demonstrar as razões da discordância com esta orientação, importa enfrentar um problema suscitado pelo direito positivo. O art. 299.º, n.º 2, CPC determina que a cumulação dos valores dos pedidos só se verifica quando os pedidos sejam distintos "nos termos do disposto no n.º 3 do art. 530.º". Este preceito determina, na parte que agora releva, que "não se considera distinto o pedido [...] quando a parte pretenda obter a mera compensação de créditos". A questão que se coloca é a seguinte: o que significa este preceito?

A interpretação mais razoável é a que distingue duas situações:

-- O valor do contracrédito alegado pelo réu é igual ou inferior ao valor do crédito invocado pelo autor; nesta hipótese, o réu só pode pretender obter a "mera compensação de créditos", pelo que o valor do contracrédito não se soma ao valor do crédito;

-- O valor do contracrédito invocado pelo réu é superior ao valor do crédito alegado pelo autor; neste caso, o réu pretende obter quer a compensação de créditos, quer a condenação do autor a pagar o excesso do valor do contracrédito, pelo que não se pode dizer que o réu quer obter apenas a "mera compensação de créditos"; isto implica que ao valor do crédito do autor se deve somar o excesso do contracrédito do réu sobre esse crédito do autor; por exemplo: o autor alega um crédito no valor de € 25.000 e o réu um contracrédito no valor de € 35.000; o valor da causa resulta da soma de € 25.000 com € 10.000, ou seja, esse valor corresponde ao valor do maior dos créditos alegados pelas partes (€ 35.000).

2. Adquirida a medida em que se verifica a cumulação do crédito do autor com o contracrédito do réu, importa agora analisar as consequências para a interposição de um recurso ordinário pelo autor ou pelo réu.

Suponha-se que o réu invoca, para compensação com o crédito do autor no valor de € 20.000, um contracrédito no valor € 40.000. Admita-se que o tribunal não reconhece o crédito do autor (no valor de € 20.000). Pergunta-se: é pela razão de a acção ter um valor de € 40.000 que deve ser admissível o recurso para o STJ, com o fundamento de que o valor da causa excede a alçada da Relação?

Supõe-se que se impõe uma resposta negativa. Não é certamente pela circunstância de o valor da causa ser o do crédito de valor mais elevado que se passa a admitir a interposição do recurso para o STJ quanto àquele cujo valor não excede a alçada da Relação.

Admita-se ainda, no exemplo referido, que o tribunal considerou improcedente o pedido do autor (no valor de € 20.000) e procedente o pedido reconvencional do réu (no valor de € 40.000) e o autor pretende recorrer de ambas as decisões. Também nesta situação se mantém a solução acima defendida, dado que o autor não procura impugnar uma decisão com um valor unitário de € 40.000, mas uma decisão que apreciou dois pedidos autónomos, um com um valor são € 20.000 e outro com um valor de € 40.000.

Aliás, seria estranho que, não havendo nenhum ónus de deduzir o pedido reconvencional, um contracrédito de valor superior à alçada a Relação tornasse admissível a interposição de recurso de uma decisão respeitante a um crédito que não excede essa alçada.

Como é evidente o referido também vale para o réu. Suponha-se que o tribunal condenou o réu quanto ao pedido formulado pelo autor (no valor de € 20.000) e não reconheceu o contracrédito alegado por esse demandado (no valor de € 40.000). Esta parte não pode pretender interpor recurso para o STJ da decisão de procedência quanto ao crédito do autor com o argumento de que o valor do contracrédito e, portanto, o valor da causa excede a alçada da Relação.

Como é claro, o que se disse acima vale, mutatis mutandis, para a interposição de um recurso de apelação, havendo apenas, naturalmente, que considerar a alçada do tribunal de 1.ª instância. 

3. Num plano mais geral, importa concluir que, havendo uma cumulação de pedidos (seja por iniciativa do autor, seja por iniciativa do autor e do réu), a regra é a da autonomia de cada um deles para efeitos da interposição de recurso ordinário, não havendo nenhuma transferência do valor de um dos pedidos para o outro pedido para determinar a admissibilidade desse recurso.


A regra é, pois, a seguinte: só há cumulação de pedidos entre pedidos distintos e autónomos entre si; por isso, cada pedido cumulado vale per se para efeitos da aferição da admissibilidade da interposição de recurso ordinário da decisão que aprecia cada um deles.  

MTS