"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/10/2018

Jurisprudência 2018 (90)


Reconhecimento de sentença estrangeira;
ordem pública internacional


1. O sumário de RL 22/3/2018 (1933/17.OYRLSB-8) é o seguinte:

A decisão revivenda não pode ser confirmada, sempre que a mesma afrontar a condição de irrenunciabilidade e indisponibilidade, à luz dos artº/s 1882 e 2008, ambos do CC. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no art.º 980.º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que: 

a)- Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b)- A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c)- A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d)- Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e)- O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f)- A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. […] 

[...] a essência deste litígio reside na resposta a esta pergunta:

-- o reconhecimento desta decisão conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português?

Cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. Tal implica que a aplicação da lei estrangeira será recusada “na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local” [Conforme expende Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, pág. 406)].

Reatando a citação de Ferrer Correia (obra supra identificada, pág. 483), “não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja.”

No dizer do Supremo Tribunal de Justiça, [(acórdão de 21.02.2006, www.dgsi.pt, processo 05B4168)] “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação"

Tal significa que o controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro.

Ordem jurídica esta que é enformada pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internac
ional do Estado, e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem, entre outros, os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito [Cf Acórdão do STJ de 26-09-2017 ,in DGSI]

Voltando à análise do acordo, o que concluir?

O requerido renuncia às responsabilidades parentais, incluindo a prestação de alimentos, bem como à decisão de qualquer questão relativa às crianças:

”…para todos os fins e efeitos e a guarda de ambos os menores será sempre da requerente durante a sua menoridade e a mesma está autorizada a agir como tutora e tratar de todos os assuntos relativos aos dois menores (…), A custódia dos filhos menores, i.e., A…e R…deve permanecer e continuará a ser da responsabilidade da requerente durante a sua menoridade”.

Estabelece o artigo 36º, nº 5, da Constituição da República que os pais têm o direito e o dever de educação e de manutenção dos filhos. É um vínculo de direito-dever que se fixa na esfera de cada um dos pais e se traduz “na compreensão do poder paternal como obrigação de cuidado parental” envolvente, em particular quanto ao dever de manutenção, no vínculo “de prover ao sustento dos filhos, dentro das capacidades económicas dos pais, até que eles estejam em condições (ou tenham obrigação) de o fazer”. [Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, volume I, 4ª edição, página 565; Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa anotada”, tomo I, 2005, página 415.]

A lei civil complementa, neste particular, o quadro constitucional.

A filiação acarreta, para lá do mais, um dever de assistência, com o conteúdo da obrigação alimentar (artigo 1874º do Código Civil); do conteúdo das responsabilidades parentais, a que os filhos estão sujeitos até à maioridade ou emancipação, faz parte a obrigação de os pais, no interesse dos filhos, proverem ao seu sustento; desse dever apenas ficando desobrigados na medida em que os filhos se mostrem em condições de poder suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, os respectivos encargos (artigos 1877º, 1878º, nº 1, e 1879º, do Código Civil).

As responsabilidades parentais são irrenunciáveis (artigo 1882º do CC), bem como o direito a alimentos , que também é indisponível ( art.º 2008 CC). 


Daí que, perante esta condição de irrenunciabilidade e indisponibilidade, não pode a decisão ser confirmada, nos termos do art.º 980 al f) CC."

[MTS]