"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/10/2018

Jurisprudência 2018 (89)


Arresto; oposição,
substanciação


1. O sumário de RP 26/4/2018 (150/17.7T8PVZ-A.P1) é o seguinte:

I - A competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).

II - Não havendo coincidência entre os conceitos de legitimidade processual e legitimidade substantiva, para a determinação da primeira deve considerar-se a relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.

III - Afirmam-se como princípios fundamentais, estruturantes de todo o processo civil, os princípios do contraditório e da igualdade das partes.

IV - Não constitui violação de tais princípios a não inquirição de testemunhas indicadas em articulado de oposição a providência cautelar de arresto quando nele não são alegados factos susceptíveis de infirmarem os pressupostos que conduziram ao decretamento do arresto.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Sustentam os recorrentes que “A presente providência foi ainda decretada em total desrespeito ao principio da igualdade das partes e do contraditório” – artigo 25.º das conclusões de recurso.

O princípio do contraditório constitui pilar estruturante do direito adjectivo português, com expressa consagração constitucional. Assim:

O artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa reconhece a faculdade de participação dos interessados na tomada de decisões que lhes digam respeito, salvaguardando, deste modo, o seu direito de defesa ou o de serem ouvidos.

O mesmo princípio encontra ainda expressão na letra do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil ao estabelecer que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

A letra do preceito corresponde, no essencial, à do antecedente artigo 3.º, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, cujo preâmbulo justifica deste modo a relevância reconhecida ao princípio do contraditório: “significativo relevo foi dado à tutela efectiva do direito de defesa, prevendo-se que nenhuma pretensão possa ser apreciada sem que ao legítimo contraditor, regularmente chamado a juízo, seja facultada a oportunidade de deduzir oposição.

[...] Afirmam-se como princípios fundamentais, estruturantes de todo o processo civil, os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da cooperação e procuram deles extrair-se consequências concretas, ao nível da regulamentação dos diferentes regimes adjectivos.

Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição de prolação de “decisões surpresa”, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, e aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª instância mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos”. […]

Dispõe o n.º 1 do artigo 366.º do Código de Processo Civil, norma prevista para o procedimento cautelar comum, que “o tribunal ouve o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”. Ou seja: a própria lei consente a dispensa da audiência prévia ao decretamento da providência quando dela resulte sério risco para o fim ou eficácia do referido procedimento.

Em todo o caso, não ocorrendo a audiência do requerido nessa fase liminar, é o contraditório assegurado em momento subsequente ao decretamento da providência, nos termos do artigo 372.º do Código de Processo Civil, que faculta ao requerido dois meios distintos de defesa: o direito de recorrer, nos termos gerais, do despacho que decretou a providência, quando entenda que a mesma não devia ter sido deferida; ou deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução.

No caso específico do arresto, é a própria lei que determina que o mesmo é decretado sem a prévia audiência do requerido, dispondo o n.º 1 do artigo 393.º da lei processual civil que “examinadas as provas produzidas, o arresto é decretado, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais”.

Desta forma, a circunstância de, no caso aqui em debate, ter sido o arresto decretado sem a prévia audição dos requeridos não traduz qualquer desrespeito pela igualdade das partes ou violação do princípio do contraditório, já que é a própria lei que, privilegiando o fim e a eficácia da providência em causa, assim o determina.

Em todo o caso, o contraditório sempre se mostra assegurado, ainda que o seu exercício haja sido diferido para momento posterior, dispondo os requeridos, notificados da providência decretada, dos meios processuais previstos no n.º 1 do artigo 372.º do Código de Processo Civil para contra ela reagirem.

Optaram os mesmos por deduzir oposição, meio próprio para alegação de factos ou produção de meios de prova não tidos anteriormente em conta pelo tribunal que possam afastar os fundamentos que conduziram ao decretamento do arresto.

Nela, porém, limitaram-se os requeridos - sem verdadeiramente por em causa a factualidade em que se fundamentou o decretamento do arresto, contrapondo-lhe factos capazes de abalar esses fundamentos – a expor as razões porque genericamente divergem do decidido.

Como precisa a decisão aqui escrutinada, “com a oposição deduzida não contestam o uso do modelo de débitos directos SEPA B2B (Business to Business), a creditação da conta de que era titular a sociedade que representa o réu C..., o valor de 1.250.000,00 euros, valor esse que, não obstante a devolução solicitada pelo Banco Italiano, contratualmente prevista, aquela sociedade não procedeu, e não contestam que de imediato esgotaram o saldo de 1.250.000,00 euros. 

Tendo o tribunal concluído, em face da prova então produzida, que o comportamento adoptado em conjunto pelos requeridos C... e D..., em face de um negócio que envolveu mais de um milhão de euros sem qualquer suporte que tanto justificasse, era reveladora e indiciadora de uma conduta dolosa, na tentativa de defraudar a movimentação financeira e sistema bancário, em face do comportamento adoptado e descrito na factualidade então provada, o que fazia os mesmos incorrer em responsabilidade civil por factos ilícitos, à luz dos artigos 483º, 490º e 497º do CC, respondendo ambos solidariamente perante o banco requerente - certo é que nenhum facto foi agora trazido aos autos que o tribunal possa submeter a julgamento para infirmar o ali concluído. 

Não foi novamente justificado o negócio que esteve na base daquela transferência, limitando-se os requeridos a afirmar, de forma absolutamente conclusiva e genérica, que a sociedade E... negociou “a proposta de investimento que determinou a transferência do montante de 1.250.00,00 euros” (artigo 32º da oposição), sem que dêem qualquer justificação para a mesma, procurando sequer contrariar a conclusão do tribunal, tanto mais que o tribunal, na motivação da matéria de facto que sustentou a decisão de arresto fez constar que, da prova produzida, resultara que “o banco italiano, dera conta de não existir qualquer relação entre o requerido C... e o devedor, identificado que foi como sendo uma eléctrica italiana”. 

Sem tanto contestar ou impugnar, sequer dando a sua versão dos factos, explicando a razão do sobredito investimento, sem dar conta de que tinham autorização dos devedores, limitam-se, numa clara e confusa estruturação de ideias, a dizer apenas que no sistema subscrito aquela transferência jamais poderia ser anulada pelo requerente, que garantiu até ter um seguro que cobriria situações decorrentes da falta de crédito e erro dos operadores bancários, sendo que a devolução de tal quantia fora feita ao arrepio do contrato e com o desconhecimento e consentimento do requerido C..., ainda que, admitam, tenham sido alertados para o facto de os clientes poderem retroceder após a transferência dos fundos, solicitando a sua devolução, sendo nessa perspectiva e medo, que os requeridos levantaram tais importâncias (artigo 42º da oposição), o que fazem sem nunca explicar se, de facto, tinham a autorização do devedor para aquela cobrança, e se existia alguma relação de investimento ente o devedor e a sociedade do requerido C.... 

Ora a oposição deduzida, nos moldes em que é feita, não é pois susceptível de afastar ou modificar os fundamentos da providência, pois que, pese embora possa resultar uma discordância generalizada quanto à decisão do tribunal, não são aduzidos novos fundamentos que, de algum modo, possam interferir no juízo de probabilidade ou verosimilhança que estiveram na base do decretamento da providência. 

E pese embora a oposição possa também fundar-se em meios de prova que não foram considerados pela decisão que decretou a providência e que possam afastar os fundamentos da mesma, certo é que nada disso é dito nos autos, nada é esclarecido, não sendo verdadeiramente posta em causa a factualidade dada por provada, mas sim a conclusão a que o tribunal chegou, o que, em bom rigor, seria pois objecto de recurso e não fundamento para oposição. 

Optando os requeridos pela oposição à providência cautelar contra eles requerida, teriam então de alegar tudo aquilo que poderiam sustentar na sua defesa, se tivessem sido previamente ouvidos, reabrindo-se, assim, toda a discussão sobre as matérias que tivessem sido alegadas no requerimento inicial”. 

A providência cautelar requerida e decretada foi, no caso dos autos, o arresto, que consiste num meio de garantia patrimonial do credor, cuja regulamentação substantiva encontra acolhimento nos artigos 619.º e seguintes do Código Civil.

Prescreve o n.º 1 do artigo 619º do Código Civil: “o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo”.

Da conjugação deste preceito e do artigo 391.º do Código de Processo Civil extrai-se que a providência em causa depende da verificação cumulativa de dois requisitos [...]:

- A probabilidade da existência do crédito;

- Existência de justo receio da perda da garantia patrimonial.

Na providência em causa basta, quanto ao pressuposto da existência do direito de crédito, a prova do fumus boni juris, ou seja, a prova da aparência desse direito, não sendo necessário prévia decisão judicial a reconhecer a sua existência [ Neste sentido, A. dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ª Ed., pág. 622, e Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 1 ao artigo 407º, pág. 130].

Quanto ao “justo receio de perda da garantia patrimonial” esclarece Abrantes Geraldes [“Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, IV vol., pág.191 e seguintes] que tal requisito “pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”, acrescentando que “este receio é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares. Se a probabilidade quanto à existência do direito é comum a todas as providências, o justo receio referente à perda de garantia patrimonial é o factor distintivo do arresto relativamente a outras formas de tutela cautelar de direitos de natureza creditícia”, precisando ainda que “o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva".

Sendo o arresto requerido pelo credor contra o devedor, incumbe ao primeiro alegar e provar factos demonstrativos não só da existência do seu crédito, como também do justificado receio de perda da garantia patrimonial, consubstanciado, designadamente, na diminuição sensível do património do segundo, que constitui o garante do cumprimento das suas obrigações, como decorre do artigo 601.º do Código Civil. Essa diminuição pode resultar quer da delapidação desse património, quer mesmo da sua ocultação.

No caso em apreço, o requerente invocou factualidade passível de integração de qualquer dos apontados requisitos.

Também resultou demonstrada realidade factual enquadrável nos pressupostos legalmente exigidos para o decretamento do arresto.

Compete às partes a adução do material fáctico a utilizar pelo julgador para a decisão do litígio: “a estas é que corresponde proporcionarem ao juiz, mediante as suas afirmações de facto e as provas que tragam ao processo, a base factual da decisão” [ Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, págs. 374, 375].

Tendo como pressuposto a natureza disponível da própria relação material, através do princípio da auto-responsabilização das partes sobre elas se faz incidir o risco da condução do processo, no sentido de sobre elas recair o encargo da delimitação do seu objecto, com a alegação dos factos que as mesmas reputem essenciais à resolução do litígio, bem como a indicação das provas que devam ser atendidas para esse fim. 

Deixando-se à vontade dos interessados a formulação de pretensão processual e de defesa, também se justifica que sejam onerados com a comprovação da factualidade sustentada nas afirmações que assumem no processo. É nisso que consiste o ónus da prova.

E “daí os ónus da relação, afirmação ou dedução. Eles traduzem-se na necessidade em que se encontra cada uma das partes que quer ver vingar as suas pretensões, de cuidar que os factos, de que resulta a exactidão das suas afirmações jurídicas segundo as disposições do direito material, sejam levados ao tribunal mediante as afirmações de facto correspondentes, ou de afirmações desfavoráveis à contraparte (aquisição processual).

Com ele coincide substancialmente o ónus de prova, que se traduz, para a parte a quem ele compete, o encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova” [Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, págs. 157, 158].

Vigora na nossa lei processual civil o princípio da substanciação, do qual decorre que “…não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, antes sendo necessário a indicação específica do facto constitutivo desse direito. Recaindo sobre o autor, como corolário do princípio dispositivo, a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito, competindo-lhe alegar os factos essenciais e concretos que se inserem na previsão da norma ou normas jurídicas que acolhem o seu invocado direito.

Tendo tal princípio dispositivo, como reverso da medalha, o princípio da auto-responsabilidade das partes, vendo a que estiver onerada com o ónus da afirmação e prova, a acção julgada contra si se os factos alegados forem insuficientes para sua pretensão” [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 31.03.2011, processo nº 281/07.9TBSVV.C1.S1 […]].

No caso concreto, o requerente satisfez o ónus probatório que a lei impunha a seu cargo para que a providência do arresto pudesse ser decretada.

Pretendendo os requeridos opor-se ao arresto decretado, competia-lhes a alegação dos factos infirmadores dos pressupostos que conduziram àquele decretamento.

Não o fizeram, antes se limitando, e de forma nem sempre inteligível, a fornecer diferente roupagem para a interpretação dos factos nucleares que serviram de fundamento ao decretamento da providência requerida, de molde a atribuir à própria requerente a responsabilidade pela forma como actuou na intermediação financeira em que interveio.

Neste enquadramento, não tendo na oposição deduzida ao arresto sido alegada factualidade que, a demonstrar-se, pudesse contrariar os pressupostos que ditaram o seu decretamento, não se exigia, até porque se revelaria acto inútil, a produção da prova indicada pelos requeridos, nomeadamente a inquirição das testemunhas por eles indicadas, sem que tal possa traduzir qualquer violação do contraditório ou desigualdade de tratamento das partes."

[MTS]