"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/10/2018

Jurisprudência 2018 (86)

 
Arresto;
justo receio
 
 
1. O sumário de RC 6/3/2018 (1833/17.4T8FIG.C19) é o seguinte:

I - No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

II - Se a requerente alega, nuclearmente, que a requerida «por várias vezes assumiu a intenção de dissipação, ocultação ou extravio», termos jurídicos já do entendimento do homem comum, que «a requerida não possuiu quaisquer bens» e que «a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente» o requerimento não pode ser indeferido liminarmente, porque não é manifesta a improcedência do pedido já que com a prova de tais factos e de outros adjuvantemente alegados e provados, ele é susceptível de singrar.

III – Não obstante, em casos de dúvida quanto à bondade/suficiência dos factos invocados para a sustentação da pretensão, deve o juiz responsabilizar o requerente convidando-o a aperfeiçoar/completar/concretizar o alegado.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 
 
"No caso vertente o julgador decidiu não se encontrar presente o requisito do justo receio, com a seguinte fundamentação.

« …Segundo Abrantes Geraldes in “ Temas da Reforma do Processo Civil”, IV, pág.174, o justo receio “ pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”.

Por seu lado, observa Jacinto de Rodrigues Bastos, in “ Notas ao Código de processo Civil, vol.II, pág. 191 que “ o receio do credor, para ser considerado justo, há-de assentar em factos concretos, que o revelem à luz de uma de uma prudente apreciação; não basta o receio subjectivo, porventura exagerado, de ver insatisfeita a prestação a que tem direito”.

Na esteira deste entendimento, escreveu-se no Ac. Rel. Porto de 26/11/2001 in WWW.DGSI.PT, “Para haver justo receio da perda de garantia patrimonial não basta um temor subjectivo do credor, não objectivado em comportamentos que, à luz das regras da experiência comum, “in casu” negocial, sejam plausíveis; importa que ao credor seja razoável recear que o risco de perder o seu crédito tem elevada probabilidade, em função da situação e comportamento do devedor”.

No caso vertente…não resultaram alegados factos concretos que evidenciem que a devedora intente, pela sua actuação, frustrar a garantia patrimonial da requerente.

Isto porque, no que se refere à matéria alegado no art.º 54.º do RI, trata-se de um comportamento já ainda no tempo em que a requerida prestava serviços para a requerente e anterior à ruptura contratual, sendo certo que a requerente não alega, em qualquer momento, que se tratou de qualquer acto preparatório da requerida para se eximir ao seu crédito.

No que tange ao vazado no art.º 55,º do RI, estamos perante matéria de direito, não assente em qualquer facto susceptível de incidir produção de prova.

Quanto à matéria vertida no art.º 60.º de que “A requerida não tem qualquer património ou quaisquer outros bens, não sendo titular de imóveis ou de veículos ou quaisquer outros”, tratam-se de factos perfeitamente estéreis à integração do requisito de justo receio da perda garantia patrimonial do devedor, pois que nenhuma relação tem com actos de ocultação, dissipação ou outros.

Por seu turno, a alegação de que a requerente por várias vezes assumiu perante os sócios essa intenção de dissipação ocultação ou extravia, é contraditório com a alegação acima referida, isto é, de que a requerida não possuiu quaisquer bens, sendo ainda contraditória com a alegação vazada no art.º 63.º “ que a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente”, alegação esta que, por si só, e sem qualquer outro elemento adjuvante, é insusceptível de fundar o juízo- mesmo perfunctório de que a requerida pela sua actuação intente frustrar a garantia patrimonial do credor.

Por fim, e no que se refere a alegação do art.º 68.º do RI : “ Receia a requerente que aquela venha, entretanto a usar de alguma artimanha, para que não seja possível à requerente receber o seu crédito”, tal factualidade revela um temor meramente subjectivo não alicerçado em factos reais e concretos e, como tal, inidóneo a preencher o requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial.

Resumindo, para concluir, não se mostram alegada materialidade que revele qualquer comportamento que faça antever o justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito da requerente, como seja sonegação e ocultação de bens ou ocorrência de procedimentos anómalos, mas tão-só materialidade inidónea ou mero receio subjectivo, não se mostrando alegado factos, que após produção de prova, estimulem o requisito do justificado receio da perda da garantia patrimonial e sem o qual não pode ser decretada a providência requerida.»

Já a requerente pugna, nos termos constantes nas conclusões, pela verificação do justo receio, ou, ao menos, que seja produzida prova para se aquilatar se ele está presente.

Perscrutemos.

A recorrente tem razão.

Na verdade ela alega factos, que, com maior ou menor acuidade, acutilância ou concretização, uma vez provados, ou suficiente indiciados, assumem, ou podem assumir, virtualidade bastante para se concluir pelo justo receio.

São, nomeadamente, os factos ou alegações vertidas nos artºs 53º e segs.

«53.º Contudo, a Requerida não paga nem pagará á Requerente de forma voluntária e por iniciativa própria, qualquer quantia a títulos dos prejuízos que causou.

54.º Até porque ainda no tempo em que a Requerida prestava serviço para a Requerente, já a mesma havia passado para o nome de terceiros, os seus bens (viatura, cartões MB), que continuava, contudo, a utilizar.

55.º A Requerida oculta, dissipa e extravia propositadamente o seu património, com o intuito de se eximir ao cumprimento das suas obrigações, de forma a que se torne consideravelmente difícil promover a cobrança ativa de crédito.

56.º Algo que a mesma, alias, várias vezes assumiu perante os sócios da Requerente.

57.º Conforme anteriormente alegado, A Requerida está agora a trabalhar como angariadora imobiliária da F (…), na x (...) .

58.º Para além desta não tem qualquer outra atividade.

59.º O rendimento que a mesma recebe é incerto.

60.º A Requerente não tem em seu nome qualquer património ou quaisquer outros bens, não sendo titular de imóveis ou veículos ou quaisquer outros.

61.º O montante do crédito que a mesma virá a ser condenada pagar á. Requente é elevado.

62.º A Requerida sabe que deve entregar à Requerentes os valores que lhe subtraiu, com o desvio o dos clientes.

63.º No entanto foge a todos e quaisquer contactos com a Requerente.»

As observações desvalorizantes que o julgador opera relativamente a tais factos não se assumem totalmente adequadas.

Relativamente ao facto vertido no artº 54º, ele releva, quiçá até mais do que se fosse uma atuação actual e posterior à cessação do contrato.

Considerando que a requerente alega que a requerida já estava a violar o contrato quando este ainda vigorava e esta para ela trabalhava, tal pode, a final, depois de produzida a prova, fixados os factos e, ademais, analisado todo o circunstancialismo envolvente, clamar a conclusão de que ela estava já a transferir para terceiros bens, com vista a eximi-los de eventuais pagamentos ou indemnizações que tivesse de efectivar para à requerente.

É, aliás, o que a recorrente parece significar, em função do que já anteriormente tinha dito.

Destarte, e em todo o caso, a não alegação, adrede, por banda da requerente, de que tal constituiu um ato preparatório por banda da requerida para ulteriormente nada pagar, não justifica, porque não tem força e dignidade bastante, por si, ou, em função do que se dirá, em concatenação com os outros argumentos, o indeferimento liminar.

Assim.

Certo é que o alegado no artº 55 se assume, em pura tese dogmático-jurídica, como matéria essencialmente de direito.

Mas apenas em pura tese.

Efetivamente, como é consabido e aceite pela doutrina e jurisprudência, certos termos e conceitos jurídicos caíram já no domínio e no entendimento do homem comum pelo que, com algumas cautelas, não custa - a bem da realização da justiça e da dessacralização do direito e da sua interpenetração e intercomunicação com a sociedade para quem rege - admitir tal osmose e aceitá-los nas alegações argumentativas com o sentido que aquele cidadão, objectiva e materialmente, lhes concede.

Estão neste lote termos como «arrendar», e, convenhamos e no que para o caso releva, os termos alegados pela recorrente, «ocultar», «dissipar» e «extraviar».

Acresce que tal alegação é complementada/concretizada com a alegação - artº 60º - de que a requerida não tem em seu nome qualquer património ou quaisquer bens.

E aqui se discordando do entendimento do julgador de que o teor plasmado neste artigo se assume como estéril.

Pois que, ainda que este facto, só por si, não prove o extravio ou descaminho dos bens, pode, ao menos, maxime se concatenado/corroborado por/com outros, prová-lo ou indiciá-lo suficientemente.

Finalmente, não se alcança a contradição apontada pelo julgador.

Numa certa e possível definição, a contradição apenas emerge quando duas realidades ou quids não podem subsistir, simultaneamente, sem que uma, v g., por imperativos lógicos ou práticos, necessariamente, exclua a outra.

Ora não se vislumbra como e em que medida o facto de ser alegado que «a requerente (quereria dizer-se requerida) por várias vezes assumiu perante os sócios essa intenção de dissipação ocultação ou extravia» é contraditório, por incompatível, com a alegação de que «a requerida não possuiu quaisquer bens» ou que «a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente»

Antes pelo contrário.

Se a requerida, tinha referido, anteriormente, à requerente, que poderia extraviar os seus bens, tal até se mostra justificativo ou, pelo menos, fortemente indiciador, porque percussor, da posterior, e efectiva, ocultação ou dissipação.

Assim se concluindo que o pedido não é, «manifestamente», improcedente.

Este termo inculca uma ideia de exigibilidade no que concerne aos fundamentos do indeferimento.

Ou seja, não é uma qualquer deficiente alegação, nem uma alegação que, mesmo com alguma substância, possivelmente, possa acarretar o indeferimento do pedido, mas apenas uma alegação oca e vazia de factos consubstanciadores do mesmo, de tal sorte que seja inequívoco, sem margem para quaisquer dúvidas, que ele naufragará.

Em todo o caso, e como se viu, a meio caminho entre a admissão, pura e simples, de requerimento deficiente que, provavelmente, descambará no soçobramento da pretensão – com trabalho e despesa aqui sim estéreis –, e o radical, cerce e liminar indeferimento, sempre restará o tertium genus da sensata, razoável e responsabilizante (para o requerente) opção do convite ao aperfeiçoamento.

Decorrentemente, no caso vertente, e se o julgador tiver dúvidas quanto à bondade ou suficiência do invocado, deve ele, no cumprimento e substanciação do dever de colaboração e com vista à consecução da almejada justiça material, convidar a requerente e, assim, responsabilizando-a, a esclarecer, aperfeiçoar, completar ou concretizar o alegado.

Em todo o caso, certo é que a pretensão não se apresenta, v. g., por infundamentada, como manifestamente improcedente, pelo que, sobre a versão original do requerimento inicial, ou, se assim for entendido, sobre a versão aperfeiçoada, deve incidir a produção da prova apresentada e, depois sim, prolatada a decisão tida por ajustada aos factos apurados e à lei aplicável."
 
[MTS]