"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2018

Jurisprudência 2018 (95)


Insolvência; contrato-promessa; 
execução específica; efeitos


1. O sumário de RP 10/5/2018 (692/07.0TYVNG-B.P1) é o seguinte:

I - Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (art.º 759º, nº 1, do Código Civil). O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente (art.º 759º, nº 2, do mesmo código).

II - A mera declaração de insolvência do devedor, por regra, representa um incumprimento definitivo das obrigações a que está adstrito e relativamente às quais vêm a ser reclamados e reconhecidos os créditos.

III - A
traditio basta-se com a detenção material da coisa, não sendo necessária uma verdadeira posse. O art.º 754º do Código Civil limita-se a pressupor a detenção da coisa, sem curar de como a ela acedeu o detentor, só excluindo o art.º 756º o direito de retenção àqueles que tenham obtido conscientemente por meios ilícitos a coisa que devem entregar.

IV - O art.º 755º, nº 1, al. f), do Código Civil, na interpretação restritiva do acórdão uniformizador nº 4/2014, exige a qualidade de consumidor final do promitente-adquirente no contrato-promessa de transmissão ou constituição de direito real para que possa valer-se do direito de retenção.

V - Não é consumidor final e, por isso, não lhe assiste o direito de retenção, o promitente-adquirente que, em contrato promessa de permuta, entrega um terreno para vir a receber, em troca, no futuro, 14 frações autónomas a nele construir, sem que prove o destino que lhes vai dar, exceto quanto a uma delas, na qual instalou a sua habitação aquando da tradição da coisa. 

VI - O cumprimento pelo Administrador da Insolvência de um contrato-promessa celebrado anteriormente à declaração de insolvência (no âmbito do regime previsto nos artºs 102º e seg.s do CIRE), não consubstancia uma venda que se insira na liquidação do ativo do devedor, não tendo a virtualidade, em razão da sua realização, de extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos, designadamente a hipoteca, com fundamento no disposto no art.º 824º, nº 2, do Código Civil. 

VII - O crédito emergente de incumprimento de um contrato-promessa deixa de existir, extinguindo-se, por inerência, também o direito de retenção que recai sobre os bens prometidos, não podendo, por isso, ser reclamado e graduado no processo e insolvência, se o Administrador da Insolvência, no suposto cumprimento da promessa, celebra com o promitente-adquirente o contrato definitivo, investindo-o, por aquisição derivada, na titularidade dos mesmos bens. 

VIII - Pela sentença de execução específica que seja procedente, obtêm-se os efeitos constitutivos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida (art.º 830º, nº 1, do Código Civil).

IX - Se os promitentes assim adquiriram a propriedade dos bens prometidos, extinguiu-se o crédito que emergia do incumprimento do contrato-promessa --- e o (eventual) direito de retenção que sobre eles pudesse recair ---, não podendo ser reclamado e graduado no processo de insolvência.

X - A transmissão dos bens ao promitente-adquirente operada pela sentença de execução específica não extingue a hipoteca previamente constituída sobre os mesmos bens, podendo o credor hipotecário executá-los no património do transmissário.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 102º do CIRE consagra o princípio geral de que “(…) em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

É um direito potestativo que o Administrador da Insolvência exercerá ou não, tendo em consideração o interesse da massa insolvente e dos credores.

O contrato de compra e venda --- tal como o contrato de permuta --- é um contrato real quoad effectum, isto é, a transferência da propriedade ocorre por mero efeito do contrato, o que decorre expressamente dos artigos 408º, n.º 1, 879º, al. a) e 939º do Código Civil.

Sendo muito duvidoso --- não obstante a aplicação do regime da compra e venda ao contrato de permuta (art.º 939º do Código Civil) --- que a compra e venda celebrada no dia 6.6.2009 entre o Administrador da Insolvência e o F... represente o cumprimento do anterior contrato-promessa de permuta, e que o Administrador da Insolvência o pudesse celebrar ao abrigo do art.º 102º, nº 1, do CIRE [...], nem por isso o contrato efetivamente realizado deixou de transferir a propriedade das frações K, L, AL e AF da insolvente para aquele reclamante. À data do contrato-promessa de permuta as frações não estavam construídas, mas quando o contrato de compra e venda foi celebrado as frações eram já uma realidade atual e até já tinham entrado na posse do F... e mulher.

Assim, dada a bilateralidade do contrato, as recíprocas prestações envolvidas no contrato de compra e venda e o carácter simultâneo reportado a coisas determinadas, o efeito translativo da propriedade ocorreu no momento da sua celebração (nº 1 do art.º 408.º do Código Civil).

Já considerados proprietários das frações, os reclamantes lograram conseguir do tribunal uma certidão de cancelamento de hipoteca voluntária, deixando a recorrente despojada da sua garantia relativamente às 4 frações sobre as quais aquela ainda recaía.

A questão que se coloca é a de saber se esse cumprimento consubstancia uma venda equiparável a uma venda judicial, com a virtualidade de, atento o disposto no art.º 824º, nº 2, do Código Civil, extinguir os di
reitos reais de garantia que oneram os imóveis a vender ou uma outra qualquer realidade jurídica. 

No acórdão da Relação do Porto de 11.10.2017 [Proc. 8892/13.7TBVNG-B.P1in www.dgsi.pt] defendeu-se que no âmbito de um processo de insolvência, o cumprimento de contrato-promessa com tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido por parte do Administrador de Insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 106º do CIRE, não implica, necessariamente, que este deva proceder ao distrate dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender. Doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo, conforme decorre do art.º 686º, n.º 1, do Código Civil. Tal venda não pode ser vista como constituindo uma venda no âmbito da liquidação do ativo do devedor uma vez que o dito contrato foi celebrado anteriormente à declaração de insolvência e, por isso, não poderá assumir a virtualidade de extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos nos termos do disposto no art.º 824º, nº 2, do Código Civil.

A recorrente entende que a sua garantia de hipoteca sobre as quatro frações não podia ter sido extinta e citou o acórdão da Relação de Guimarães de 25.5.2016 [Proc. 472/12.5TBFAF-F.G1in www.dgsi.pt].

Aquele acórdão, ao menos na parte em que se dirige ao assunto, afigura-se-nos inteiramente correto, pelo que, com a devida vénia, passamos a transcrevê-lo, na certeza de que essa é a melhor forma de transmitir os fundamentos que nele se contêm e com os quais concordamos:

«Prescreve o artº. 106º, nº. 1 do CIRE que “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”.

Ora, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que, nomeadamente, se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artº. 1º do CIRE).

Assim, na insolvência os credores hipotecários visam obter o pagamento do seu crédito e, pelo tratamento preferencial que a hipoteca lhes confere, através do produto da venda do bem sobre o qual recai a hipoteca. Vale por dizer que com a venda dos bens, os credores hipotecários vêem extinguir-se a garantia dada pela hipoteca, transferindo-se a sua
preferência para o produto da venda. Por regra, mercê da sequela própria dos direitos reais, que permite ao titular do direito hipotecário invocá-lo onde quer que o bem se encontre, isto é, mesmo que tenha sido transmitido a terceiro após a constituição do direito, a hipoteca acompanha a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes e onde quer que ela se encontre (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed., pág. 122).

O que significa que os bens hipotecados podem ser transmitidos, mas o respectivo ónus acompanha-os, ou seja, transmitida a propriedade de um imóvel onerado com uma hipoteca, o mesmo permanecerá onerado até que o adquirente a expurgue, nos termos do artº. 721º do Código Civil (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 671).

Com a declaração de insolvência todos os poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente são transferidos para o administrador da insolvência (artº. 81º, nº. 1 do CIRE).

A actividade do administrador da insolvência é, pois, predominantemente dirigida à preparação do pagamento de dívidas do insolvente através da liquidação do património do devedor; é orientada para a satisfação dos interesses dos credores com vista à administração e liquidação da massa insolvente. E essa satisfação dos credores, sejam da insolvência ou da massa, concretiza-se pelo pagamento daquilo que lhes é devido (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 2013, Quid Juris, pág. 360). 

Como é sabido, a declaração de insolvência produz determinados efeitos jurídicos. 

Alguns deles repercutem-se nos negócios jurídicos celebrados pelo insolvente e que ainda estejam em curso, ou seja, relativamente aos quais ainda não houve cumprimento integral pelo insolvente e/ou pela contraparte.

Assim, estando em causa contratos bilaterais ainda não cumpridos, o respectivo cumprimento fica suspenso, conferindo-se ao AI o encargo de, agindo de forma criteriosa e ordenada, optar pela recusa ou pelo cumprimento do contrato, em função daquela que seja no caso concreto a melhor solução para a prossecução dos interesses da massa insolvente e para a satisfação dos créditos sobre a insolvência. É isso o que decorre, em termos gerais, do regime plasmado no artº. 102º, nº. 1 do CIRE. 

É neste âmbito que se insere o regime do cumprimento dos contratos-promessa. Relativamente a estes – com excepção daqueles aos quais tenha sido conferida eficácia real e em que tenha ocorrido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, que se enquadram na previsão do supra citado artº. 106º, nº. 1 do CIRE – cabe ao AI, no âmbito da administração da massa insolvente que lhe cumpre levar a cabo, ponderar se o interesse da massa aconselha o cumprimento dos contratos ou se, pelo contrário, impõe a recusa do cumprimento, agindo, então, em conformidade com a posição adoptada.

No cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, a acção do AI limita-se à substituição subjectiva da pessoa do promitente-vendedor (o insolvente) no acto translativo da propriedade do imóvel (a escritura pública de compra e venda).

Ora, questão diferente dos efeitos jurídicos da declaração de insolvência nos negócios em curso é a da liquidação da massa insolvente (que consiste na venda dos bens que integram o património do insolvente e repartição do produto obtido pelos credores, respeitando as preferências de pagamento de que estes possam gozar).

No caso do cumprimento de um negócio em curso à data da declaração de insolvência, estamos perante um acto do AI inserido na administração da massa insolvente e que deverá ser levado a cabo norteado pelos critérios de boa administração da massa. Como tal, tratar-se-á de um acto da exclusiva responsabilidade do Administrador e que deverá reger-se pelas regras do direito civil substantivo. 

No segundo caso, estamos perante um acto que diz respeito à liquidação do património do insolvente e, assim, à vertente executiva (de vocação universal) de que o processo de insolvência se reveste para prosseguir os seus fins, a levar a cabo no quadro do próprio processo de insolvência (em apenso próprio) e, portanto, com intervenção judicial.

A venda de um bem pelo AI em representação da massa insolvente, mas em cumprimento de um contrato celebrado anteriormente à declaração de insolvência é, assim, uma realidade distinta da venda de um bem pura e simplesmente apreendido para essa massa tendo em vista a obtenção de um produto a repartir pelos credores, de acordo com as preferências de pagamento de que beneficiem.

Partilhamos da posição defendida pelo Tribunal “a quo” na sentença recorrida no sentido de que o cumprimento, pelo AI, de um contrato-promessa celebrado anteriormente à declaração de insolvência (no âmbito do regime previsto nos artºs 102º e seguintes do CIRE), não consubstancia uma venda que se insira na liquidação do activo do devedor, não tendo a virtualidade, em razão da sua realização, de extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos com fundamento no disposto no artº. 824º, nº. 2 do Código Civil.

Como bem se refere na sentença recorrida «estando em causa a celebração de contratos com inteira observância do regime jurídico que o direito civil lhe impõe, a venda a realizar com esse fundamento implicará que qualquer ónus ou direito real de garantia que onere o bem objeto do negócio acompanhe esse bem, atento o princípio da “sequela” que norteia os direitos reais, cabendo depois ao adquirente, se o pretender, diligenciar pela extinção do ónus ou da garantia e sub-rogar-se nos direitos do titular da garantia sobre o devedor»."

[MTS]