"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/10/2018

Jurisprudência 2018 (101)


Princípio do juiz natural;
princípio da plenitude da assistência do juiz


1. O sumário de STJ 8/3/2018 (2723/04.6TBBRR.L1.S1) é o seguinte:

I. Se a acção postular litisconsórcio necessário activo, tendo havido habilitação dos herdeiros do demandante, entretanto falecido, está assegurada a legitimidade de todos e o recurso que um deles interpuser da sentença aproveita aos demais.

II. Na vigência do art. 668º do vCPC, tendo sido arguidas pelo recorrente nulidades da sentença, o juiz poderia supri-las, nos termos do nº 4, pelo que não lhe estava defeso, considerando-as procedentes, proferir nova decisão.

III. O princípio do juiz natural encontra consagração constitucional no processo penal, art. 39º, nº2, da Constituição da República, como garantia fundamental relacionada com a exigência de um julgamento justo e imparcial, sendo o juiz do processo aquele a quem couber a competência de harmonia com a lei.

IV. No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontra protecção, enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo. A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção: relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstractas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.

V. Não se podendo afirmar que a alteração das pessoas dos Magistrados, que intervieram na 1ª Instância e na Relação, no julgamento da acção e do recurso, respectivamente, visaram de forma ilegal, arbitrária e discriminatória, prejudicar os Recorrentes, ou quem quer que fosse, não se pode considerar ter havido violação do princípio do juiz natural. No processo civil tem aplicação o princípio da plenitude da assistência dos juízesconsagrado no art. 605º do Código de Processo Civil, que também comporta excepções.

VI. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado agora no art.605º do Código de Processo Civil (antes no art. 654º), só tem aplicação quando da fixação da matéria de facto, em ponderação dos princípios da imediação, da oralidade e concentração, conhecendo aplicação intransigente quando o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa é aquele que quem tem de proferir a decisão de facto: aí, salvo casos excepcionais, quem presidiu à recolha da prova é quem a julga e fixa.

VII. Em regra o contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, sem eficácia real, mesmo tendo havido traditio, não confere ao promitente comprador uma posse em nome próprio: inexistindo tal posse, a que é exercida pelo possuidor é em nome alheio e só é idónea para aquisição do direito real de propriedade ocorrendo inversão do título de posse e a verificação dos requisitos de posse usucapível, desde o momento da inversão.

VIII. Por estar reconhecido que os réus devem restituir o prédio reivindicado aos proprietários demandantes, e tendo os réus realizado obras no imóvel durante o largo período temporal da ocupação que subsiste, são tais obras benfeitorias, nos termos do art. 216º do Código Civil.

IX. As benfeitorias feitas pelos Réus, que não foram autorizadas pelo proprietário, e que visam apenas o interesse dos benfeitorizantes em função de diverso destino económico dado à coisa, que o reivindicante vencedor não pretende sequer utilizar por não serem prestáveis à afectação económica da coisa, apenas podem qualificadas como benfeitorias voluptuárias, porque não visaram evitar a perda ou destruição ou deterioração da coisa, nem lhe aumentam o valor por não serem indispensáveis.

X. O instituto do enriquecimento sem causa não se aplica às benfeitorias voluptuárias.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6ª questão: o juiz natural

Relacionada com as precedentes questões, suscitam os Recorrentes a violação do princípio do juiz natural, porquanto, aduzem, intervieram vários Magistrados no processo, enquanto pendente no Tribunal de 1ª Instância, não coincidindo quem presidiu à audiência de discussão e julgamento e quem proferiu a sentença apelada.

Aduzem, ainda os Recorrentes […] que, na Relação, o processo teve duas Relatoras: primeiro, por despacho de 21.4.2017, que, depois foi substituída.

Sobre a alegada violação do princípio do juiz natural se pronunciou o Acórdão recorrido, a fls. 4233/4244, enfatizando que a regra do juiz natural “com imutabilidade imperativa só está arvorada em princípio constitucional no processo penal, “ex vi” do nº9 do artigo 32.º da Constituição da República”, visando o princípio assegurar a imparcialidade e a isenção do julgador.

Nas garantias do processo penal a Constituição da República – no nº9 do antes referido art.32º consigna – “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Na “Constituição da República Anotada”, vol. I, pág. 525, os eminentes constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, escrevem:

“O princípio do juiz legal (n°9) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos. Note-se que a Constituição proíbe a existência de tribunais penais, para certas categorias de crimes. Mesmo que sem competência exclusiva (art. 209°-4).

Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.

A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa;

(c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).”

Sem dúvida que a predefinição da competência dos Julgadores, a divisão interna funcional e o carácter aleatório da distribuição dos processos, são garantias de um processo penal imparcial e justo, direitos fundamentais que são salvaguardados expressamente em processo criminal, que, nos termos do nº 1 da Lei Fundamental, “assegura todas as garantias de defesa.”

No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontram protecção enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo, equitativo, e ao seu julgamento imparcial.

A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção.

Relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstractas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.

O processo civil proporciona meios para a assegurar a imparcialidade dos julgadores, ainda que com feição diferente da protecção constitucional a que nos referimos, mormente, nos arts. 115º e 119º e 124º do Código de Processo Civil.

Assim, não se podendo afirmar que as alterações das pessoas dos Magistrados que intervieram na 1ª Instância e na Relação visaram, de forma ilegal e discriminatória, prejudicar os Recorrentes, ou quem quer que fosse, não se pode considerar ter havido violação do princípio do juiz natural. No processo civil tem aplicação o princípio da plenitude da assistência dos juízes consagrado no art. 605º do Código de Processo Civil, que também comporta excepções.

O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado agora no art.605º do Código de Processo Civil (antes no art. 654º), só tem aplicação quando da fixação da matéria de facto, em ponderação dos princípios da imediação, da oralidade e concentração, conhecendo aplicação intransigente quando o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa é aquele que quem tem de proferir a decisão de facto: aí, salvo casos excepcionais, quem presidiu à recolha da prova é quem a julga.

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra, de 18.3.2014 – Proc. 3721/11.9TBLRA.C1 (sumário) - Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt:

Dado que no Código de Processo Civil de 1961 o princípio da plenitude da assistência dos juízes só valia para os actos de produção da prova e de julgamento da matéria de facto – e, portanto, para a fase da audiência – e não também para a fase da sentença, o proferimento da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto não infringia aquele princípio – nem, aliás, qualquer outro princípio ou norma processual.

Uma vez que o NCPC concentrou o julgamento da questão de facto na sentença final, esta sentença só pode ser proferida pelo juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência ou audiências de discussão e julgamento.

Essa regra não é, porém, aplicável aos casos em que, antes do início da vigência do NCPC, a matéria de facto já se mostrava julgada pelo juiz que assistiu aos actos de produção da prova.
O proferimento da sentença final por juiz diferente do que decidiu a matéria de facto resolve-se, no NCPC, numa simples nulidade processual, inominada ou secundária, que não constitui objecto admissível do recurso.”

7ª questão 

- Ainda no elenco das nulidades, é assacada ao Acórdão a nulidade causada pela omissão de elaboração do sumário pelo Relator. Seria uma nulidade atípica, porque não consta do elenco taxativo do art. 615º do Código de Processo Civil aplicável por força do art. 684º.

O nº 7 do art. 663º do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz que elaborar o acórdão deve sumariá-lo. A elaboração e redacção do Acórdão é da responsabilidade do relator. A omissão do sumário em nada se repercute na essência da decisão, pelo que não pode ser considerada nulidade do processo, nem confere às partes qualquer prerrogativa de índole adjectiva."

[MTS]