"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/10/2018

Jurisprudência 2018 (83)


Deliberação social; invalidade;
renovação


1. O sumário de STJ 27/2/2018 (1860/08.2T8ABF.E1.S1) é o seguinte:

[...] A deliberação, tomada em assembleia geral da ré sociedade comercial, que renovou ex nunc a deliberação considerada inválida no acórdão recorrido – art. 62.º, n.º 2, do CSC, determina a revogação do acórdão recorrido, a absolvição da ré do pedido e a condenação da ré no pagamento das custas da acção.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Com as alegações, a Ré/recorrente juntou, a fls. 2431 a 241, um documento “Ata número 57”, datada de 2 de Março de 2017 do seguinte teor:

“No dia 2 de março de 2017, os sócios da CC, LDA., sociedade por quotas com o NIPC …, decidiram por unanimidade, nos termos previstos no artigo 54º, n°1, do Código das Sociedades Comerciais, que a assembleia geral da sociedade reunisse em assembleia geral universal, sem observância de quaisquer formalidades prévias e que deliberasse sobre o seguinte assunto: deliberar sobre a renovação da deliberação aprovada na assembleia geral da sociedade de 23 07 2008, de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.

Presidiu à assembleia o sócio-gerente Eng. MM. Tomou a palavra o sócio-gerente da sociedade HH, que explicou o seguinte:

Por Acórdão de 26 de Janeiro de 2017, o Tribunal da Relação de Évora decidiu anular a deliberação da Assembleia Geral da Sociedade de 23 07 2008, que decidira a “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.
O Tribunal da Relação de Évora considerou que a referida deliberação seria inválida porque os gerentes à época, Engs. MM e NN, estariam impedidos de a votar. Considerou ainda o Tribunal, que com a exclusão dos votos dos gerentes, a referida deliberação não teria sido aprovada pela necessária maioria, pelo que a mesma seria inválida.

Sem prejuízo de a gerência não concordar com esta decisão e de a sociedade ir interpor recurso da mesma para o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros motivos, por se entender que o denominado “teste da resistência” não foi feito correctamente, pela Relação de Évora, visto que o gerente KK podia votar a ratificação das remunerações auferidas pelos gerente JJ e o gerente JJ podia votar a ratificação das remunerações auferidas pelo gerente KK, coloca-se a questão da renovação da deliberação.

Assim, em face daquela decisão judicial e tendo em conta o disposto no artigo 62°, n°2, do Código das Sociedades Comerciais – “A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente” -, a sócia FF propôs que os sócios deliberassem renovar a deliberação aprovada na assembleia geral de 23 07 2008, de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até à presente data”.

Na votação da referida deliberação, não participaram o sócio Eng. KK, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, e os sócios OO, PP e QQ, sucessores hereditários na quota do Eng. JJ, com o valor nominal de € 20.783,25.

Submetida a votação, foi esta deliberação aprovada com os votos favoráveis dos sócios DD, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, EE Mexia, titular de uma quota com o valor nominal de € 20.783,25, FF, SGPS, S.A., representada por Miguel de Melo Mardel TT, titular de uma quota com o valor nominal de € 41.566,50, GG, SGPS, S.A., representada por Miguel Beltrão Ribeiro Ferreira, titular de duas quotas com o valor nominal de € 41.566,50, cada uma, e HH, titular de uma quota com o valor nominal de € 10.391,63, detentores de quotas correspondentes a 100% dos votos admitidos a votar esta deliberação.

Em todo o caso, os sócios deixaram expresso o seu entendimento de que o sócio Eng. KK sempre poderia ter votado a aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pelo gerente Eng. JJ, até ao dia 23 07 2008, e que os sócios OO, PP e QQ, sucessores hereditários na quota do Eng. JJ, sempre poderiam ter votado a aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pelo gerente Eng. KK, até ao dia 23 07 2008.

Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a assembleia, dela se lavrando a presente acta, que vai ser assinada pelos sócios presentes.” [...]

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a deliberação societária considerada nula foi validamente renovada, pela assembleia geral universal da Ré, de 2.4.2017, posterior à decisão do Acórdão recorrido; [...]
Os Autores/recorridos, enquanto sócios da Ré, pretenderam anular as deliberações da assembleia geral da Ré, de 23 de Julho de 2008 que aprovou: a) a ratificação das remunerações dos gerentes auferidas até 23.07.2008; b) as remunerações dos gerentes a vigorar a partir de 01.08.2008 c) a chamada de prestações suplementares.

O Acórdão recorrido revogou a sentença apelada, no que respeita à deliberação de aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência da Ré até à 23.7.2008. [...]

Pese embora a Recorrente assacar ao Acórdão recorrido nulidade por alegada contradição entre a decisão e os fundamentos – art. 615º, nº1, c) do Código de Processo Civil – designadamente por considerar que os sócios gerentes podiam votar na assembleia geral destinada também a aprovar os seus vencimentos, ponto 29 b) da matéria de facto, e a remuneração dos gerentes a partir de 1.8.2008 – mas já não poderiam votar a deliberação relativa à aprovação/ratificação de todas as auferidas pela gerência até à data da AG” – 23.7.2008 – e terem, ainda, pugnado pela revogação do Acórdão recorrido, por considerarem que enferma de erro de julgamento sendo abusiva do direito a pretensão dos Autores, crucial é considerar que pedem que se considere validamente renovada a deliberação que o Acórdão considerou nula revogando nessa parte a sentença da 1ª Instância, pelo que importa analisar se a deliberação renovatória superveniente é válida.

De referir que a Recorrente juntou a acta de tal deliberação com as alegações de recurso de revista, e que a os Recorridos, que não contra-alegaram, não questionaram a admissibilidade do documento superveniente em relação ao Acórdão recorrido, nem questionaram a validade da deliberação renovadora, pelo que apreciaremos de imediato essa pretensão e, apenas no caso de não se considerar válida a renovação, se apreciarão as questões elencadas como sendo objecto do recurso de revista.

Antes de mais, e como pressuposto lógico da apreciação da deliberação da Ré tomada na assembleia geral de 2 de Março de 2017, importa saber se é admissível a junção do documento da acta a que se refere a deliberação societária.

Sendo o documento a acta relativa à assembleia geral da Ré, posterior à data do acórdão recorrido e tendo sido junta com as alegações do recurso de revista, é patente a superveniência do documento e a sua novidade sendo óbvio que, pelo facto que documenta e os efeitos que a parte visa produzir, se admite a respectiva junção, nos termos do art. 680º, nº1, do Código de Processo Civil, a que não foi oposta nenhuma objecção.

O art. 62º do Código das Sociedades Comerciais dispõe:

1. Uma deliberação nula por força das alíneas a) e b) do nº1 do artigo 56.º pode ser renovada por outra deliberação e a esta pode ser atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiros.

2. A anulabilidade cessa quando os sócios renovem a deliberação anulável mediante outra deliberação, desde que esta não enferme do vício da precedente. O sócio, porém, que nisso tiver um interesse atendível pode obter anulação da primeira deliberação, relativamente ao período anterior à deliberação renovatória.

3. O tribunal em que tenha sido impugnada uma deliberação pode conceder prazo à sociedade, a requerimento desta, para renovar a deliberação.

Porque as deliberações sociais, pelo seu objecto e conteúdo, podem contender com a estrita legalidade ou, meramente, com os estatutos societários, o Código das Sociedades Comerciais (CSC) distingue as que são nulas – art. 56º - das que são anuláveis – art. 58º.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.5.1999, Relator Torres Paulo, no Proc. 99A333 [...] pode ler-se:

“Para distinguir os vícios que determinam a nulidade ou a anulação de uma deliberação viciada, há que surpreender se eles dizem respeito ao conteúdo (alíneas c) e d) do n.º1 do artigo 56º do Código das Sociedades Comerciais), ou ao processo de formação (alíneas a) e b) do mesmo artigo) da deliberação.

As “nulidades” resultantes dos vícios de formação (alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 56º) são sanáveis nos termos do n.º3 do mesmo artigo, pelo que estamos perante uma invalidade mista.

Se a deliberação colidir com normas dispositivas ou do pacto social - na disponibilidade dos sócios -, ela será só anulável (artigo 59º).

A dicotomia normas imperativas e dispositivas só têm relevância quando o vício ataca o conteúdo da deliberação; se ele ataca o processo de formação de deliberação, a consequência é a sua anulabilidade.

A alínea a) do n.º1 do artigo 58º do Código das Sociedades Comerciais é uma norma residual: residual por exclusão de partes, na medida em que abarca as hipóteses em que a deliberação continua a contrariar a lei em área não prevista no artigo 56º.

O n.º 2 do artigo 62º do Código das Sociedades Comerciais acolheu a doutrina que se pronunciava pela admissibilidade da renovação de deliberação nula por vício de formação e nunca quando ela se circunscrevia ao cerne do conteúdo.”

Atento o caso em apreço, do elenco das nulidades previstas no art. 56º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, vejamos a que, em princípio, poderá estar em causa afectando as deliberações tomadas.

É ela a da alínea a) que fulmina com anulabilidade as deliberações sociais que:

“Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos”.

“São anuláveis as deliberações sociais que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiro, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios.”- Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.4.1996, in CJSTJ. 1996, II, 23.

Ao contrário do regime previsto no Código Civil, onde a regra tendencial é a de considerar a nulidade dos actos que violem a lei – art. 280º do Código Civil – no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é mais benévolo, é o da anulabilidade.

Tal regime deve-se à intenção de “dinamizar a vida das sociedades comerciais, que ficaria embaraçada com uma multiplicação de situações de nulidade.” – Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, II Volume, 2001, pág. 244.

A deliberação societária abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa a função de servir a sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade do ponto em que apenas se relaciona com o interesse egoísta de sócio ou sócios que assim, através do voto, colhe(m) para si, ou para terceiros, vantagens que lesam a sociedade ou outros sócio(s).

Se com tal prática houver prejuízo para a sociedade ou outros sócios “a consequência é a anulabilidade”- cfr. Professor Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, pág.291.

“No fundo e em síntese, parece-nos não ser incorrecto reconhecer, apesar das reservas que alguns colocam ao entendimento que o critério decisivo para distinguir as deliberações nulas das anuláveis é o da imperatividade e interesse de ordem pública das deliberações viciadas. Sempre que esteja em causa a violação de normas do contrato de sociedade ou normas legais destinadas a integrar apenas a vontade dos associados na falta de regulamentação nos estatutos, a sanção será, por conseguinte, em princípio, a mera anulabilidade”- cfr. “Textos-Sociedades Comerciais - CEJ-CDOA”, pág. 128, Estudo da autoria do Dr. Joaquim Taveira da Fonseca.

Tendo os sócios gerentes direito a remuneração, nos termos do art. 255º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, e sendo reconhecido que não estão impedidos de votar a deliberação que os aprove, a menos que ela exprima um interesse directo colidente com os interesses da sociedade, ou seja, que haja conflito de interesses.

Este entendimento que era já o acolhido na vigência da lei de sociedades por Quotas, em face do art. 39º § 3º, preceito que foi interpretado pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 26.5.1992 - BMJ. 107-352, doutrinando que “O sócio está impedido de votar sobre os assuntos em que tenha um interesse imediatamente pessoal, individual, oposto ao da sociedade”.

Vaz Serra, in RLJ, Ano 108-244, em anotação favorável ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.6.1974, escrevia:

“O parágrafo 3º do art. 39º, falando em assuntos que lhe digam directamente respeito, e o assento, em assuntos em que tenha um interesse pessoal, individual, oposto ao da sociedade, mostram não bastar, para o sócio estar impedido de votar, um qualquer interesse seu, certo como é que ele tem sempre ou quase sempre algum interesse, embora indirecto ou mediato, na deliberação: é, pois, necessário para excluir a possibilidade de votação do sócio, que este tenha na deliberação um interesse directo, imediato, oposto ao da sociedade, isto é, tal que a boa fé e os bons costumes o inibam de votar.”

Raul Ventura, in “Sociedade por Quotas”, II, 296 e 297, refere que há conflito de interesses “quando estes são opostos, de tal modo que um deles não possa ser satisfeito sem sacrifício do outro ou quando existe possibilidade de a deliberação satisfazer o interesse particular do sócio em detrimento comum.” [...]

Não consta da acta que à deliberação renovatória tivesse sido atribuída eficácia retroactiva, ressalvados os direitos de terceiro, como prevê o nº1 do citado art. 62º.

Não tendo sido atribuída à deliberação renovatória eficácia retroactiva, tem ela efeito ex nunc, pelo que não determina a inutilidade superveniente da lide, mas antes determina a improcedência da acção.

Neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31.10.2006 – Proc. 06A3446 – Relator Urbano Dias – [...] “Se no decurso de uma acção de anulação de deliberações sociais, concretamente após a interposição de recurso, a sociedade Ré vier dar conhecimento ao processo de que as deliberações julgadas nulas foram renovadas, deve o Tribunal recorrido, desde logo, julgar a acção improcedente, mui embora com custas a serem suportadas pela referida Ré”. Na fundamentação da decisão pode ler-se “...Em caso de renovação, estamos em presença de uma nova e distinta deliberação, que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma acção que tinha sido dirigida exclusivamente contra a deliberação primitiva. A oposição que pretenda agora mover-se contra a deliberação renovadora envolve um novo e distinto pedido, voltado unicamente para esta e fundado, evidentemente, numa específica e diferente causa de pedir.

Ora, extinta a instância decorrente até aí (por impossibilidade do pedido, como se viu), não restará ao autor outra via que não seja, se para isso tiver fundamento, propor outra acção com esse objectivo” – Pinto Furtado, in “Deliberações Sociais”, pág. 636 e 637).

Segundo Oliveira Ascensão, a renovação difere da confirmação por haver uma nova deliberação, o que significa “que o título precedente é substituído, pois os efeitos serão fundados na nova deliberação” (in “Direito Comercial”, Volume IV, pág. 298) […]. Constituindo a renovação uma impossibilidade de procedência do pedido, mais do que uma inutilidade da lide, deve conduzir, não à absolvição da instância, mas “à absolvição do pedido, por facto extintivo posterior à propositura, nos termos do art. 663º-1 Código de Processo Civil e com a disciplina de custas do nº3 do mesmo preceito (pág. 635).”

Também o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.2.2009 – Relatora Maria dos Prazeres Beleza, Proc. 07B4311 [...] – considerou que existindo válida deliberação social renovatória, as custas ficam a cargo da Ré sociedade demandada na acção de onde dimana o recurso.

Assim, considerando válida a deliberação tomada na assembleia geral da Ré de 2 de Março de 2017 – “Ata número 57” – que renovou a deliberação considerada inválida no Acórdão recorrido, tal renovação acarreta a revogação do Acórdão recorrido e a absolvição da Ré do pedido relativo à apreciação da deliberação a que se reporta a deliberação sobre a deliberação da Assembleia Geral da Sociedade de 23.07.2008, que decidira nula a deliberação de “aprovação/ratificação de todas as remunerações auferidas pela gerência até apresente data”. 

[MTS, MPILU 28.9.2018]