Princípio dispositivo;
qualificação jurídica; poderes do tribunal
1. O sumário de RG 10/5/2018 (2637/16.7T8VCT.G1) é o seguinte:
“I – De acordo com o princípio do dispositivo, são as próprias partes que definem o âmbito do que ao tribunal cumpre conhecer, sendo elas que dispõem do processo, já que, pelo pedido e pela defesa, circunscrevem o thema decidendum, não cabendo ao juiz saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi.
II - Ainda que só tenha sido pedida a declaração de nulidade nada impede que seja decretada a ineficácia se o efeito prático pretendido pelo autor for a inutilização jurídica de uma venda celebrada pelo procurador já depois do óbito da representada, que ditou a extinção da procuração, porquanto o erro de qualificação jurídica que subjaz à formulação daquele pedido, pode ser corrigido pelo juiz.
III - Como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, foi intenção confessada do legislador reforçar os poderes da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, concedendo o primado ao apuramento da verdade material, pressuposto que é de uma decisão justa. Devendo a Relação formar a sua própria convicção, cumpre-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem que esteja sujeita às indicações que lhe sejam dadas pelo recorrente e pelo recorrido.
IV – A procuração é um negócio jurídico unilateral, que implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que ela produza os seus efeitos.
V – Não definindo a lei o que se deve entender por interesse do procurador ou de terceiro relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante, deve exigir-se que a irrevogabilidade encontre na relação jurídica que está na sua base uma causa justificada, como ocorre quando o procurador ou um terceiro pelo qual o procurador actua tem contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio a que a procuração o autoriza.
VI – Uma procuração conferindo poderes para “doar, comprar, vender, ou prometer comprar e vender permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou em parte, nos termos e condições que o procurador estime convenientes” é nula por indeterminabilidade do objecto, nos termos do art.º 280.º do C.C., e de qualquer modo, nunca poderia ser considerada irrevogável porquanto, abrangendo a universalidade dos bens, é excessivamente limitadora do exercício do direito de propriedade, quer na vertente da aquisição de bens, quer na vertente da sua disposição, direito que é constitucionalmente garantido, e, tendo natureza análoga aos «direitos liberdades e garantias», apenas pode sofrer as restrições previstas na lei - cfr. art.os 17.º e 18.º da Constituição”.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Os Apelantes começam por arguir a nulidade da sentença defendendo ter ela condenado em quantidade e objecto diverso do pedido, porquanto, alegam, “o pedido formulado pelos AA visava a nulidade das escrituras realizadas, a de compra e venda e de habilitação” e foi decidido declarar “ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 28 de Abril de 2015”.
II - Ainda que só tenha sido pedida a declaração de nulidade nada impede que seja decretada a ineficácia se o efeito prático pretendido pelo autor for a inutilização jurídica de uma venda celebrada pelo procurador já depois do óbito da representada, que ditou a extinção da procuração, porquanto o erro de qualificação jurídica que subjaz à formulação daquele pedido, pode ser corrigido pelo juiz.
III - Como ficou a constar da “Exposição de Motivos”, foi intenção confessada do legislador reforçar os poderes da Relação na reapreciação da decisão da matéria de facto, concedendo o primado ao apuramento da verdade material, pressuposto que é de uma decisão justa. Devendo a Relação formar a sua própria convicção, cumpre-lhe avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem que esteja sujeita às indicações que lhe sejam dadas pelo recorrente e pelo recorrido.
IV – A procuração é um negócio jurídico unilateral, que implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita apenas com uma declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que ela produza os seus efeitos.
V – Não definindo a lei o que se deve entender por interesse do procurador ou de terceiro relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante, deve exigir-se que a irrevogabilidade encontre na relação jurídica que está na sua base uma causa justificada, como ocorre quando o procurador ou um terceiro pelo qual o procurador actua tem contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio a que a procuração o autoriza.
VI – Uma procuração conferindo poderes para “doar, comprar, vender, ou prometer comprar e vender permutar e arrematar quaisquer bens móveis ou imóveis, no todo ou em parte, nos termos e condições que o procurador estime convenientes” é nula por indeterminabilidade do objecto, nos termos do art.º 280.º do C.C., e de qualquer modo, nunca poderia ser considerada irrevogável porquanto, abrangendo a universalidade dos bens, é excessivamente limitadora do exercício do direito de propriedade, quer na vertente da aquisição de bens, quer na vertente da sua disposição, direito que é constitucionalmente garantido, e, tendo natureza análoga aos «direitos liberdades e garantias», apenas pode sofrer as restrições previstas na lei - cfr. art.os 17.º e 18.º da Constituição”.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Os Apelantes começam por arguir a nulidade da sentença defendendo ter ela condenado em quantidade e objecto diverso do pedido, porquanto, alegam, “o pedido formulado pelos AA visava a nulidade das escrituras realizadas, a de compra e venda e de habilitação” e foi decidido declarar “ineficaz relativamente aos Autores o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública no dia 28 de Abril de 2015”.
Os fundamentos de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciados no n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
Trata-se de vícios formais, que, à excepção do da alínea a) (falta de assinatura do juiz), respeitam à estrutura e aos limites da sentença – referem-se à estrutura da sentença as alíneas b) e c), e aos seus limites as alíneas d) e e).
Como se extrai do disposto no art.º 608.º do C.P.C., o juiz, estando obrigado a resolver todas as questões que as partes lhe coloquem, quer as formais, quer as que respeitam ao mérito da causa, e estando ainda obrigado a conhecer de todos os pedidos que tenham sido formulados e de todas as excepções invocadas, por sua própria iniciativa apenas poderá conhecer das questões que lhe seja lícito conhecer oficiosamente.
Resulta da enunciação deste princípio que são as partes que dispõem do processo, sendo elas que, pelo pedido e pela defesa, circunscrevem o thema decidendum, não cabendo ao juiz “saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi”, como expressivamente escreveu MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 373-378).
Reafirmando esta ideia, escreve LEBRE DE FREITAS gozarem as partes “da liberdade de decisão sobre a instauração do processo, sobre a conformação do seu objecto e das partes na causa e sobre o termo do processo” ou seja, têm “a disponibilidade da instância” e “a disponibilidade da conformação da instância”, sendo, assim, “monopólio das partes a conformação da instância, nos seus elementos objectivos e subjectivos” (in “Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3.ª ed., págs. 155-165).
Ora, na situação sub judicio, o que, de essencial, pretendem os Autores é que “se declare o regresso do bem imóvel” à sua titularidade “na qualidade de únicos e legítimos herdeiros da falecida Cândida” (pedido e)), sendo certo que na petição inicial, invocando o disposto no art.º 268.º do Código Civil (C.C.), afirmam que o negócio que os ora Apelantes celebraram é “ineficaz”, e extraem a nulidade do contrato, não só qualificando-o de venda de bens alheios como invocando o conluio dos Réus no intuito de enganar “os herdeiros legítimos da falecida Cândida” (ou seja, eles, Autores).
O Tribunal a quo, considerou, e bem, que, não tendo o Apelante vendido o prédio em causa (à também Apelante, sua mãe), como se fora seu, não tem aplicação o regime da venda de bens alheios, estabelecido nas normas antecedentes, por força do disposto no art.º 904.º do C.C., e declarou ineficaz o negócio por ter sido celebrado em data posterior à da extinção da procuração em virtude do decesso da representada, nos termos do art.º 268.º do mesmo Cód..
Como refere o Ac. do S.T.J. de 27/09/1994 (numa situação com contornos semelhantes) ainda que só tenha sido pedida a declaração de nulidade “nada impedia que a declaração de ineficácia fosse decretada porquanto o efeito prático pretendido pelo Autor era a inutilização jurídica das doações, e um pedido assim formulado teria ficado a dever-se a isso na qualificação jurídica daquele efeito prático, sendo que os erros desta natureza … é ao Juiz que cumpre corrigi-los, sem a mais ligeira ofensa do princípio do dispositivo” (in C. J., Acs. do S.T.J., ano II – Tomo III-1994, pág. 68).
Que o segmento decisório, posto em causa, não condena em “quantidade diferente” torna óbvio o seu teor literal, e que também não condena em objecto diferente extrai-se da consideração do efeito prático que os Autores pretendem e está, inequivocamente, contido no pedido formulado sob a alínea e).
Improcede, pois, a arguição da nulidade."
[MTS]