"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
31/01/2019
Jurisprudência 2018 (166)
Articulado inadmissível;
aproveitamento; litigância de má fé
1. O sumário (corrigido) de RG 11/10/2018 (3507/16.4T8BRG-J.G1) é o seguinte:
I- Embora não seja admissível o articulado de “Resposta às exceções invocadas na Réplica”, não deverá ser ordenado o desentranhamento de tal articulado se dele constar a alegação de factos (e respectivas provas) demonstrativos da litigância de má-fé da A., caso em que apenas esses factos serão considerados e não os legalmente inadmissíveis.
II- Na Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 2004, o Estado Português já não se encontra vinculado a reservar aos tribunais eclesiásticos a apreciação da validade ou da nulidade dos casamentos católicos, contrariamente ao que sucedia com a Concordata de 1940.
III- Não obstante essa desvinculação, o legislador português continuou a manter em vigor o artigo 1625º do Código Civil, o qual, enquanto não for revogado ou alterado, impõe que a nulidade (e também a anulação, enquanto forma de invalidade) dos casamentos católicos só pode ser declarada pelos tribunais eclesiásticos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Ora, temos de concordar com a decisão recorrida, de que este novo articulado apresentado pelo A. não é legalmente admissível, podendo o A. responder às exceções invocadas pela A. na Réplica na Audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (artº 3º nº 4 do CPC).
A igualdade substancial das partes - que o recorrente considera violado com o desentranhamento do seu articulado –, fica assim assegurada, com a possibilidade dada à parte de se pronunciar sobre as exceções invocadas pela parte contrária no último articulado.
Aliás, o recorrente está bem ciente dessa possibilidade, ao referir no início do seu requerimento (desentranhado): “Ainda que á luz do disposto no nº 4 do artigo 3º do CPC se possa julgar ter o Reú/Reconvinte de aguardar pela Audiência para exercer o seu direito de contraditório e defesa às Invocadas excepções pela Reconvinda, sempre ficará consignada a sua posição processual para efeitos, pelo menos, de boa fé e colaboração processual com o tribunal para não vir arguir nulidades processuais ex vi artº 195º do CPC ainda tão ardilosamente usadas numa ultrapassada e indesejada postura processual em processo civil”.
Ou seja, é o próprio recorrente que, adiantadamente, admite a inadmissibilidade legal do seu articulado.
I- Embora não seja admissível o articulado de “Resposta às exceções invocadas na Réplica”, não deverá ser ordenado o desentranhamento de tal articulado se dele constar a alegação de factos (e respectivas provas) demonstrativos da litigância de má-fé da A., caso em que apenas esses factos serão considerados e não os legalmente inadmissíveis.
II- Na Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 2004, o Estado Português já não se encontra vinculado a reservar aos tribunais eclesiásticos a apreciação da validade ou da nulidade dos casamentos católicos, contrariamente ao que sucedia com a Concordata de 1940.
III- Não obstante essa desvinculação, o legislador português continuou a manter em vigor o artigo 1625º do Código Civil, o qual, enquanto não for revogado ou alterado, impõe que a nulidade (e também a anulação, enquanto forma de invalidade) dos casamentos católicos só pode ser declarada pelos tribunais eclesiásticos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Ora, temos de concordar com a decisão recorrida, de que este novo articulado apresentado pelo A. não é legalmente admissível, podendo o A. responder às exceções invocadas pela A. na Réplica na Audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (artº 3º nº 4 do CPC).
A igualdade substancial das partes - que o recorrente considera violado com o desentranhamento do seu articulado –, fica assim assegurada, com a possibilidade dada à parte de se pronunciar sobre as exceções invocadas pela parte contrária no último articulado.
Aliás, o recorrente está bem ciente dessa possibilidade, ao referir no início do seu requerimento (desentranhado): “Ainda que á luz do disposto no nº 4 do artigo 3º do CPC se possa julgar ter o Reú/Reconvinte de aguardar pela Audiência para exercer o seu direito de contraditório e defesa às Invocadas excepções pela Reconvinda, sempre ficará consignada a sua posição processual para efeitos, pelo menos, de boa fé e colaboração processual com o tribunal para não vir arguir nulidades processuais ex vi artº 195º do CPC ainda tão ardilosamente usadas numa ultrapassada e indesejada postura processual em processo civil”.
Ou seja, é o próprio recorrente que, adiantadamente, admite a inadmissibilidade legal do seu articulado.
*
Ora, mesmo seguindo esta tese, que perfilhamos, começamos por dizer que não vemos no articulado apresentado pelo A. qualquer resposta a documentos apresentados pela A na réplica. Nos artºs 26º e 27º daquele articulado o recorrente apenas impugna os factos alegados pela A. na resposta à contestação, nos arts. 9.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º e 16.º. Ou seja, o A. exerce apenas o contraditório relativamente a factos alegados pela A. na Réplica, o que é legalmente inadmissível.
O mesmo se não passa já, porém, com a dedução do pedido de condenação da A. como litigante de má-fé.
Como é por todos sabido, a litigância de má-fé (e o correspondente pedido indemnizatório a ela associado) traduz-se num incidente da instância, não tipificado, promovido por qualquer uma das partes, ou desencadeado oficiosamente pelo tribunal, a tramitar nos termos dos arts. 292° e ss. do CPC, sendo que à prolação da decisão do incidente aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 607° do CPC, nos termos do art. 295º do mesmo diploma legal (Abrantes Geraldes, “Temas Judiciários”, Vol. I, Almedina, p. 337 e Acs. STJ de 19/02/2008; Ac. RL de 17/02/2009; Ac. RC de 11/12/2012; e Ac. RP de 26/09/2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).
Assim, a fim de instruir o aludido incidente, cabe às partes a alegação dos factos respectivos e das provas dos mesmos (artº 293 e 294º), o que foi feito pelo A. no articulado apresentado e mandado desentranhar.
Ora, considerando o acima decidido – relativamente á tese defendida da preservação dos atos jurídicos válidos -, embora o articulado apresentado pelo A. seja legalmente inadmissível para os fins por ele visados primeiramente, deverá o mesmo ser atendido – e mantido nos autos - para efeitos da instrução e decisão do incidente da litigância de má-fé da A."
[MTS]
30/01/2019
Proposta de Lei n.º145/XIII/3.ª
1. A Proposta de Lei n.º145/XIII/3.ª, que altera a LOSJ e o DL 49/2014, de 27/3, pode ser consultada aqui.
2. a) Segundo o proposto, o n.º 5 do art. 82.º LOSJ passa a ter a seguinte redacção:
5 - As audiências de julgamento dos processos de natureza cível da
competência dos juízos locais cíveis ou dos juízos de competência
genérica são realizadas no juízo territorialmente competente de acordo
com as regras processuais aplicáveis, ainda que se trate de um juízo de
proximidade.
A redacção está longe de ser tecnicamente perfeita. As regras que constam do CPC sobre a competência territorial são regras sobre a competência jurisdicional. Essas regras determinam apenas o juízo local cível ou o juízo de competência genérica que é territorialmente competente, mas nunca atribuem competência territorial a um juízo de proximidade.
Procurando ser totalmente claro: não há nenhuma regra no CPC que atribua competência territorial a um juízo de proximidade, dado que essas regras respeitam à competência jurisdicional -- ou seja, ao tribunal com competência para apreciar a causa e, portanto, ao tribunal no qual a causa deve ser instaurada -- e os juízos de proximidade não têm competência jurisdicional, pois que nenhuma causa pode ser instaurada num desses juízos. Os juízos de proximidade apenas têm competência funcional para a prática de alguns actos processuais.
Sendo assim, o que se poderia ter estabelecido era simplesmente que, quando a causa pertença à competência de um juízo local cível ou de um juízo de competência genérica, as audiências de julgamento (melhor se teria dito, as audiências finais) são realizadas nos juízos de proximidade, aproveitando-se, para esse efeito, as regras sobre a competência territorial estabelecidas no CPC.
b) Se bem se percebe a regra que consta do art. 82.º, n.º 5, LOSJ, quando a causa seja da competência de um juízo local cível ou de um juízo de competência genérica (mas, não por exemplo, de um juízo central cível ou de um juízo de família e menores), a audiência final realiza-se num juízo de proximidade, se, pelas regras da competência territorial estabelecidas no CPC, o elemento de conexão determinativo dessa competência (como o domicílio do réu ou o lugar do cumprimento da obrigação) coincidir com a área da competência territorial desse juízo de proximidade.
Note-se, no entanto, que a aplicação da regra só é possível quando a área de competência territorial do juízo local cível ou do juízo de competência genérica abranger a área da competência territorial do juízo de proximidade ou, dito de outra forma, quando, na área da competência territorial do juízo local cível ou do juízo de competência genérica, houver um juízo de proximidade.
Vejam-se alguns exemplos, construídos de acordo com o estabelecido no Mapa III do Anexo ao DL 49/2014, de 27/3:
-- O tribunal competente é o juízo local cível de Beja (com competência nos municípios de Beja e Mértola), porque o réu tem domicílio em Mértola; a audiência final realiza-se no juízo de proximidade de Mértola;
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Almodôvar (com competência nos municípios de Almodôvar e Castro Verde), porque o réu tem domicílio no município de Castro Verde; a audiência final realiza-se em Almodôvar, porque em Castro Verde não há nenhum juízo de proximidade;
-- O tribunal competente é o juízo local cível de Tomar (com competência nos municípios de Ferreira do Zêzere e Tomar), porque o réu tem domicílio em Ferreira do Zêzere; a audiência final realiza-se no juízo de proximidade de Ferreira do Zêzere;
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Almeirim (com competência nos municípios de Almeirim e Alpiarça), porque o acidente ocorreu em Alpiarça; a audiência final realiza-se em Almeirim, porque em Alpiarça não há nenhum juízo de proximidade;
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Moimenta da Beira (com competência nos municípios de Moimenta da Beira, Penedono, São João da Pesqueira, Sernancelhe e Tabuaço), porque o réu tem domicílio em São João da Pesqueira; a audiência final realiza-se no juízo de proximidade de São João da Pesqueira;
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Moimenta da Beira (com a competência territorial acima definida), porque o réu tem domicílio em Penedono; a audiência final realiza-se no juízo de competência genérica de Moimenta da Beira, porque em Penedono não há nenhum juízo de proximidade.
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Moimenta da Beira (com competência nos municípios de Moimenta da Beira, Penedono, São João da Pesqueira, Sernancelhe e Tabuaço), porque o réu tem domicílio em São João da Pesqueira; a audiência final realiza-se no juízo de proximidade de São João da Pesqueira;
-- O tribunal competente é o juízo de competência genérica de Moimenta da Beira (com a competência territorial acima definida), porque o réu tem domicílio em Penedono; a audiência final realiza-se no juízo de competência genérica de Moimenta da Beira, porque em Penedono não há nenhum juízo de proximidade.
Os exemplos mostram que, porque a distribuição dos juízos de proximidade é relativamente aleatória, é igualmente bastante aleatória a possibilidade da realização de audiências finais num desses juízos. Tudo depende da circunstância, puramente acidental, de, por exemplo, no lugar do domicílio do réu ou no lugar do acidente haver um juízo de proximidade. A situação seria diferente (ou só poderia ser diferente) se houvesse uma distribuição dos juízos de proximidade conjugada com a dos juízos locais cíveis e dos juízos de competência genérica e se a competência funcional dos juízos de proximidade fosse determinada por critérios próprios da organização judiciária (e não por critérios próprios da competência territorial constante do CPC).
Na falta desta distribuição conjugada dos juízos de proximidade e de critérios próprios determinativos da sua competência funcional, tudo se torna muito aleatório e muito pouco compatível com o princípio da igualdade, dado que situações iguais terão soluções diferentes mesmo no âmbito de uma mesma comarca e até mesmo no âmbito de um mesmo tribunal. Se bem se compreende o regime legal, acções com o mesmo objecto, o mesmo valor, a mesma forma do processo e até pendentes no mesmo tribunal passam a ter, quanto à realização da audiência final, soluções completamente díspares.
Tudo ponderado, em vez de ter construído um regime rígido que conduz inevitavelmente a situações de desigualdade, talvez tivesse sido melhor solução ter atribuído ao juiz, no âmbito dos poderes de gestão processual e de adequação formal, a faculdade de, em função das especificidades do caso, determinar a realização da audiência final em qualquer um dos juízos de proximidade da comarca.
Na falta desta distribuição conjugada dos juízos de proximidade e de critérios próprios determinativos da sua competência funcional, tudo se torna muito aleatório e muito pouco compatível com o princípio da igualdade, dado que situações iguais terão soluções diferentes mesmo no âmbito de uma mesma comarca e até mesmo no âmbito de um mesmo tribunal. Se bem se compreende o regime legal, acções com o mesmo objecto, o mesmo valor, a mesma forma do processo e até pendentes no mesmo tribunal passam a ter, quanto à realização da audiência final, soluções completamente díspares.
Tudo ponderado, em vez de ter construído um regime rígido que conduz inevitavelmente a situações de desigualdade, talvez tivesse sido melhor solução ter atribuído ao juiz, no âmbito dos poderes de gestão processual e de adequação formal, a faculdade de, em função das especificidades do caso, determinar a realização da audiência final em qualquer um dos juízos de proximidade da comarca.
c) Por fim, cabe referir que, porque se mantém o disposto no n.º 1 do art. 82.º LOSJ, a realização da audiência de julgamento nos juízos de proximidade, mesmo quando possível, não é automática. Ela necessita sempre de uma decisão do juiz titular, depois de as partes serem ouvidas.
MTS
Jurisprudência 2018 (165)
Pessoa moral de direito canónico;
competência absoluta; consequências*
1. O sumário de RC 16/10/2018 (4680/08.0TBLRA.C2) é o seguinte:
I – Independentemente do quadro jurídico vigente à data dos factos – o CDC de 1917 – não consentir que se operasse qualquer distinção substantiva entre associações públicas ou privadas, o facto de a referida A. ter sido canonicamente erecta em 2 de Março de 1959 pelo então Bispo de ..., ainda que acedendo a uma solicitação privada, conferiu-lhe irrecusavelmente, não só o reconhecimento da ordem jurídica canónica como pessoa de direito canónico (como “pessoa moral” de direito canónico), mas a natureza de uma entidade pública de direito canónico, diante do quadro legal instituído pela mesma ordem canónica vigente.
II - Temos assim como adquirido que a A. PIA UNIÃO nasceu como uma associação pública de fiéis e, por via disso, deverá ser tratada como uma Associação Pública de Fiéis, agora no âmbito do actual CDC, estando por isso especificamente sujeita aos cânones 312 a 320 desse tipo de associações, para além de se lhe aplicarem as normas comuns dos cânones 298 a 311 do mesmo Código.
III - Independentemente da opção que se tome sobre a natureza da A. PIA UNIÃO como associação pública ouprivada – dicotomia inelutável à luz do Código de Direito Canónico de 1983 que não pode deixar de atravessar todas as entidade e associações criadas após a cessação da vigência do Código de 1917 –, certo é que sempre ela participará da característica essencial de uma entidade ou pessoa de direito canónico, por isso se submetendo inteiramente a essa específica ordenação jurídica em tudo quanto diga respeito à sua estrutura, organização e modo de funcionamento.
IV - Por conseguinte, não tinha o tribunal a quo – como não tem a Relação – fundamento para se pronunciar sobre uma relação de direito canónico como é aquela que se estabelece entre uma pessoa de direito canónico como é a 1ª A. e a autoridade eclesiástica corporizada no Bispo de ...
Com esse alcance, o dito pronunciamento seria mesmo indiscutivelmente violador da regra da separação jurisdicional consagrada no art.º 11 da Concordata em vigor.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A questão da nulidade/invalidade dos Decretos Bispais do Bispo de ... de 15 de Julho de 2008 e 13 de Julho de 2009 e respectivas consequências na actividade da A. Pia União.
Independentemente da opção que se tome sobre a natureza da A. PIA UNIÃO como associação pública ou privada – dicotomia inelutável à luz do Código de Direito Canónico de 1983 que não pode deixar de atravessar todas as entidade e associações criadas após a cessação da vigência do Código de 17 – certo é que sempre ela participará da característica essencial de uma entidade ou pessoa de direito canónico, por isso se submetendo inteiramente a essa específica ordenação jurídica em tudo quanto diga respeito à sua estrutura, organização e modo de funcionamento.
Como se ponderou no Ac. desta Relação de 23/06/2015 proferido na Apelação nº 2153/06.5TBCBR.C1, há um quadro normativo próprio que não permite pensar numa solução para o problema da representação da A. PIA UNIÃO fora do âmbito do direito canónico e, por via dele, da autoridade canónica competente.
Aí se escreveu a propósito de tal quadro normativo:
“O CDC regula a disciplina das Associações de Fiéis nos Cânones 298 e seg.s, ali se distinguindo entre associações privadas e públicas de fiéis; porém, todas elas, sejam públicas ou privadas, devem ter por finalidade a missão sobrenatural da Igreja, e ainda que louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, se chamam associações privadas (Cânones 298 e 299) ou públicas (estas a seguir explicitadas) – cf. Código de Direito Canónico, Edição Anotada da Universidad de Navarra Instituto Martin De Azpilcueta, Tradução Portuguesa a cargo de José A. Marques, Edições Theologica, Braga, 1984, a pág. 237, por contraponto às públicas que são erigidas pela autoridade eclesiástica competente. De acordo com o Cânone 301 (Cf. autores e ob. ora cit., a pág.s 238 e 239) entende-se por “associação pública aquela que foi erigida por acto formal da autoridade eclesiástica competente, ainda que talvez, na sua origem, a associação provenha da iniciativa privada dos fiéis. Sobre o alcance da qualificação de pública, o c. 116 Parágrafo 1.º, precisa que a pessoa jurídica dotada deste carácter actua em nome da Igreja dentro do âmbito para o qual foi instituída, acrescentando-se que só a autoridade competente pode erigir associações de fiéis para fins que, pela sua natureza, estejam reservados à hierarquia eclesiástica, o que implica que a associação assim erigida se deverá manter dentro dos limites para os quais foi constituída.
Todavia, independentemente da sua qualificação como pública ou privada, toda a associação de fiéis está sujeita à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar, como decorre do cânone 305.
As públicas devem obedecer ao estatuído nos cânones 312 a 320, designadamente, são erectas pela autoridade eclesiástica competente, tendo em vista a prossecução dos fins que se propõem realizar, carecendo os seus estatutos de aprovação da autoridade eclesiástica a quem compete a respectiva erecção, administrando os bens que possui em conformidade com os estatutos sob a superior direcção da autoridade eclesiástica respectiva, a quem devem prestar contas anualmente.
Assume especial relevância para o caso em apreço o disposto no cânone 318, Parágrafo 1.º, segundo o qual:
“Em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a autoridade eclesiástica referida no cân. 312 P. 1.º pode designar um comissário que em seu nome dirija temporariamente a associação.”.
Como se refere no CDC anotado já anteriormente citado, pág.s 247 e 248 “A nomeação de um comissário poderá ter lugar quando as circunstâncias aconselhem que a autoridade competente não só exercite a alta direcção (c. 315), mas que também assuma temporariamente o regime da associação, procurando ao mesmo tempo que cessem quanto antes os motivos que dão lugar a essa intervenção extraordinária.”.
Por seu turno, o regime das associações privadas encontra-se tipificado nos cânones 321 a 326, de onde resulta, no que aqui importa, que as mesmas são governadas pelos fiéis segundo as prescrições dos estatutos, com a ressalva de que se encontram sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, nos termos do cânone 305, acima já referidos.
Por último, de acordo com o cânone 325, confere-se às associações privadas o direito de administrarem livremente os bens que possuem, de acordo com as prescrições dos estatutos e sem prejuízo de a autoridade eclesiástica competente vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação.
De ater ainda ao disposto nas Normas Gerais das Associações de Fiéis, designadamente, nos seus artigos 7.º e 23.º, de acordo com os quais, todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, no caso o Ordinário do lugar e que possibilita a este, em circunstâncias especiais, quando razões graves o exigirem, a nomeação de um comissário que em seu nome dirige temporariamente a associação”.
Concordando com esta interpretação do regime de vigilância/intervenção da autoridade eclesiástica competente no sentido de que ele se também se estende às associações privadas de fiéis, indo ao ponto de ter como legítima a nomeação no respectivo âmbito de comissários temporários, verificada que seja a presença de uma razão grave, não está esta Relação – como não está nenhum outro tribunal não eclesiástico – legitimada a declarar a validade ou invalidade dos Decretos Bispais que, invocando precisamente o grave condicionalismo aludido na lei, nomearam os mencionados comissários para a 1ª A..
Há, portanto, um particular e grave condicionalismo para a intervenção do Ordinário nas associações de fiéis com reconhecimento canónico – no caso, foi a 1ª A. canonicamente erecta na vigência do anterior CDC – mesmo quando se trata da gestão e funcionamento de uma associação privada de fiéis.
Ora é esse particular condicionalismo que surge na motivação do primeiro dos Decretos Bispais agora atacado.
É que, na verdade, para além da invocação do governo corrente privado, também não há quaisquer normas de direito estadual civil que sejam questionadas pelos Decretos Bispais cuja declaração de nulidade vem pedida.
Para as Autoras, a nulidade em apreço assentaria num suposto desrespeito das regras de organização, estrutura, gestão e funcionamento de uma pessoa de direito canónico – para as Autoras constituída em associação privada defiéis, para nós integrando uma verdadeira associação pública de fiéis – segundo o regime e a disciplina previstos no Código de Direito Canónico.
Ou seja, as regras cuja infracção poderia ditar a nulidade dos Decretos Bispais pertencem exclusivamente à ordem jurídica canónica.
Por conseguinte, não tinha o tribunal a quo – como não tem a Relação – fundamento para se pronunciar sobre uma relação de direito canónico como é aquela que se estabelece entre uma pessoa de direito canónico como é a 1ª A. e a autoridade eclesiástica corporizada no Bispo de ...
Com esse alcance, o dito pronunciamento seria mesmo indiscutivelmente violador da regra da separação jurisdicional consagrada no art.º 11 da Concordata em vigor.
Sem afrontar o acórdão que anteriormente tomou partido pela competência dos tribunais estaduais para a presente causa, temos para nós que um hipotético pronunciamento visando aquilatar da validade ou invalidade de um acto com tal cunho ou origem representaria uma inaceitável intromissão na esfera que está reservada a essa autoridade e aos meios e formas de impugnação previstos pela ordem jurídica canónica."
*3. [Comentário] a) O acórdão levanta duas questões nada despiciendas.
A primeira é a seguinte: de acordo com o que consta do relatório e como é aludido na fundamentação, "por acórdão desta Relação de 31 de Maio de 2011 foi o despacho saneador revogado e, em função disso, declarada a competência dos Tribunais Estaduais Judiciais para a apreciação do litígio.". Quer dizer (segundo se pode depreender): no mesmo processo, há uma decisão que considera que os tribunais judiciais são competentes para apreciar o litígio. Por esta razão, tendo essa decisão força de caso julgado formal (art. 620.º, n.º 1, CPC), não podia o presente acórdão considerar que os tribunais judiciais não têm competência judicial para se pronunciarem sobre o litígio. Ao fazê-lo, o acórdão é, nessa parte, ineficaz (art. 625.º, n.º 2, CPC).
A segunda questão é a seguinte: o acórdão termina, de forma algo surpreendente, afirmando que "em suma, conhecendo embora do objecto do recurso, mas constatando que esta Relação não pode declarar a nulidade dos actos da referida autoridade eclesiástica – que, aliás, foram actos destinados a regular de forma excepcional a organização e funcionamento de uma pessoa de direito canónico com a apontada natureza (de associação pública de fiéis) – a sentença ora recorrida, ao julgar a acção improcedente e absolver os RR. do pedido, não poderá deixar de ser mantida."
A primeira é a seguinte: de acordo com o que consta do relatório e como é aludido na fundamentação, "por acórdão desta Relação de 31 de Maio de 2011 foi o despacho saneador revogado e, em função disso, declarada a competência dos Tribunais Estaduais Judiciais para a apreciação do litígio.". Quer dizer (segundo se pode depreender): no mesmo processo, há uma decisão que considera que os tribunais judiciais são competentes para apreciar o litígio. Por esta razão, tendo essa decisão força de caso julgado formal (art. 620.º, n.º 1, CPC), não podia o presente acórdão considerar que os tribunais judiciais não têm competência judicial para se pronunciarem sobre o litígio. Ao fazê-lo, o acórdão é, nessa parte, ineficaz (art. 625.º, n.º 2, CPC).
A segunda questão é a seguinte: o acórdão termina, de forma algo surpreendente, afirmando que "em suma, conhecendo embora do objecto do recurso, mas constatando que esta Relação não pode declarar a nulidade dos actos da referida autoridade eclesiástica – que, aliás, foram actos destinados a regular de forma excepcional a organização e funcionamento de uma pessoa de direito canónico com a apontada natureza (de associação pública de fiéis) – a sentença ora recorrida, ao julgar a acção improcedente e absolver os RR. do pedido, não poderá deixar de ser mantida."
Admite-se que, ao entender que os tribunais judiciais não têm competência para se pronunciar sobre a validade de Decretos Bispais e, ao mesmo tempo, ao confirmar a decisão de improcedência proferida pela 1.ª instância, tenha havido um mero lapso de escrita. Ainda que assim tenha sucedido, a verdade é que isso não evita a nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos (a incompetência dos tribunais judiciais) e a decisão (a confirmação de uma decisão de mérito) (cf. art. 666.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. c), CPC).
Como é óbvio, a decisão conforme aos fundamentos seria uma decisão de absolvição da instância por incompetência absoluta dos tribunais judiciais (art. 99.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, al. a), CPC). Se, no caso concreto, esta decisão era admissível, isso é, como acima se referiu, outra questão.
b) Embora a fundamentação do acórdão quanto à incompetência dos tribunais judiciais para apreciar a validade de Decretos Bispais mereça acolhimento, não pode deixar de se assinalar as duas imperfeições técnicas que o mesmo contém.
MTS
29/01/2019
Informações (242)
Regimes patrimoniais dos casais internacionais na Europa
Entram hoje em vigor os regulamentos da UE que clarificam as regras aplicáveis aos regimes patrimoniais dos casais internacionais que contraíram casamento ou uma parceria registada. Para mais informações clicar em IP/19/681.
Legislação (146)
"Direitos Humanos"
-- RCM 21/2019, de 29/1: Determina a adoção da expressão universalista «Direitos Humanos» por parte do Governo e de todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos seus poderes de direção, superintendência ou tutela
Bibliografia (767)
-- Odier-Contreras Garduno, D., Collective Reparations / Tensions and Dilemmas Between Collective Reparations with the Individual Right to Receive Reparations (Intersentia: Cambridge 2018)
Bibliografia (766)
-- D'Alessandro, E., Aiuti di Stato e giudicato nazionale: nella vicenda Klausner Holz il Landgericht di Muenster interpreta restrittivamente i limiti oggettivi del giudicato, RDP 73 (2018), 1612
Jurisprudência 2018 (164)
Embargos de executado;
excepções peremptórias; preclusão*
1. O sumário de RC 16/10/2018 (158/14.1TBCBR.C1) é o seguinte:
I – Constituindo petição duma ação declarativa e não contestação duma ação executiva, a dedução da oposição à execução não representa a observância de qualquer dos ónus cominatórios (ónus da contestação, ónus da impugnação especificada) a cargo do réu na ação declarativa: nem a omissão de oposição produz a situação de revelia nem a omissão de impugnação dum facto constitutivo da causa de pedir da execução produz qualquer efeito probatório, não fazendo sentido falar, a propósito, de prova de factos alegados pelo exequente ou de definição do direito decorrente do título executivo, o qual continua, após o decurso do prazo para a oposição como até aí, a incorporar a obrigação exequenda, com dispensa, em princípio, de qualquer indagação prévia sobre a sua real existência.
II - Mas, na medida em que a oposição à execução é o meio idóneo à alegação dos factos que em processo declarativo constituiriam matéria de exceção, o termo do prazo para a sua dedução faz precludir o direito de os invocar no processo executivo, a exemplo do que acontece no processo declarativo. A não observância do ónus de excecionar, diversamente da não observância do ónus de contestar ou do de impugnação especificada, não acarreta uma cominação, mas tão-só a preclusão dum direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso.
III - A preclusão do direito de invocar outras exceções opera no âmbito do processo executivo, sendo inadmissível a posterior dedução de nova oposição, salvo quando ocorra fundamento superveniente (art. 728º-2); mas não opera para além dele.
IV - A não utilização dos meios de defesa na execução não preclude a posterior invocação de excepções ao direito exequendo em outras ações (sendo que o efeito preclusivo só se verifica no processo executivo e relativamente aos meios de defesa específicos desse processo) e que, quando utilizados, as decisões de mérito nela proferidas formam caso julgado material apenas quanto às concretas excepções apreciadas, por inexistência na execução de ónus de concentração da defesa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"B) - Na sentença recorrida o Tribunal “a quo” assentou a decisão tomada quanto à preclusão, na fundamentação que, na sua essencialidade, é espelhada nos trechos dessa decisão que abaixo se transcrevem:
«[…] O Autor instaurou a presente acção alegando ter celebrado um contrato com a B..., por via do qual foram creditados valores pelo B... ao Autor e interveniente B..., sendo o contrato de mútuo celebrado em 15/10/2004, alterado em 1/9/2005, nulo, pretendendo que se reconheça que não são devidos os valores por força de tal contrato de mútuo celebrado e que considera nulo, pedindo que as Rés sejam condenadas a reconhecer que o Autor não é devedor às Rés de quantia alguma, a que se referem os créditos que sobre ele e as empresas que administrava foram debitados. Mais tomou posição expressa nos autos, em resposta às contestações, dizendo que a livrança não era nem nunca foi título executivo mas unicamente houve utilização abusiva da mesma por parte da P..., que sabia que a dívida não era a que fez constar na livrança nem poderia ser preenchida contra a verdade e com quantias nunca entregues ou pagas ou transferidas ao Autor.
Assim, é inequívoco que o pedido de reconhecimento da relação estabelecida entre Autor e B..., actualmente G..., e B... é apenas pressuposto do pedido declaração da nulidade do mútuo e inexistência de dívida.
Esse dito contrato, alegadamente nulo, encontrava-se garantido por livranças, e foi considerado resolvido em 29/8/2008, pelo que as livranças foram dadas à execução pelos processos ... (esta contra Autor e interveniente) e ... (esta unicamente contra o Autor) da Comarca de Coimbra, autos em que o Autor e interveniente foram devidamente citados tendo havido rejeição dos embargos apresentados por falta de pagamento da taxa de justiça e multa, em ambos os processos.
Na petição inicial actualmente apresentada, o Autor tem o intuito de reagir a factos (alegado preenchimento abusivo das livranças por inexistência do contrato de mútuo substanciador da dívida que as mesmas titulam) que se desenrolam no âmbito de acções executivas, as quais se encontram pendentes na Instância Central de Coimbra, Secção de Execução, ... e ... em que é exequente a Ré “P..., S.A.”.
Ora, o Autor foi citado nas referidas acções executivas para, querendo se opor às mesmas, nomeadamente através de embargos de executado, e bem assim a interveniente quanto aos autos ..., não tendo deduzido embargos de executado de forma regular, pelo que os mesmos foram rejeitados, estando tais sentenças transitadas em julgado, conforme resulta das certidões juntas.
Por isso, este comportamento negligente do Autor e interveniente, que não usou o contraditório para sua defesa na acção executiva, fez precludir, de todo, o seu alegado direito – de peticionar a declaração de que nada deve contra a ali exequente P..., aqui Ré – o qual pretendia fazer valer nesta acção declarativa. (...)
É precisamente para obviar à instauração de uma acção como a presente, com a causa de pedir e o pedido daquela que ora foi instaurada, que existe e se destina o processo de embargos de executado, a fim de permitir ao executado que se defenda, no âmbito da execução, pedindo a extinção da mesma e fazendo valer o seu direito perante o exequente.
O que o executado não pode fazer é deixar de se defender na sede própria, que é a execução, e, posteriormente, defender-se por via da acção.
Se assim fosse, então os embargos de executado não teriam qualquer função útil, porque, caso não embargasse, sempre o executado poderia reagir contra a execução, através de outro meio processual, noutra sede processual, quando bem entendesse.
Seria o desvirtuamento total dos embargos de executado na sua função e na sua estrutura, mais criando a insegurança jurídica decorrente de tal situação.
Assim sendo, forçoso é concluir que o aqui Autor e a Interveniente tendo disposto, em tempo útil (quando para tal foram citados), de um meio de defesa apropriado no âmbito da acção executiva (embargos de executado), a sua não dedução tem como consequência incontornável a preclusão de um direito à repetição do indevido, tornando inadmissível, por isso, a instauração da presente acção declarativa com o mesmo objecto. […]».
Ora, salvo o devido respeito, não podemos concordar com o efeito preclusivo que, do sucedido nas identificadas acções executivas, o Tribunal “a quo” retirou no que concerne aos direitos que na presente acção o Autor pretende ver reconhecidos.
Note-se, em primeiro lugar, que nos identificados autos de acção executiva não se chegou a conhecer do mérito dos embargos de executado aí deduzidos.
Por outro lado, o Professor Lebre de Freitas “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª edição, Coimbra Editora, Fevereiro 2014, págªs 214 e 215. salienta [..]:
«[…] Constituindo petição duma ação declarativa e não contestação duma ação executiva, a dedução da oposição à execução não representa a observância de qualquer dos ónus cominatórios (ónus da contestação, ónus da impugnação especificada) a cargo do réu na ação declarativa: nem a omissão de oposição produz a situação de revelia nem a omissão de impugnação dum facto constitutivo da causa de pedir da execução produz qualquer efeito probatório (51-A), não fazendo sentido falar, a propósito, de prova de factos alegados pelo exequente ou de definição do direito decorrente do título executivo, o qual continua, após o decurso do prazo para a oposição como até aí, a incorporar a obrigação exequenda, com dispensa, em princípio, de qualquer indagação prévia sobre a sua real existência.
Mas, na medida em que a oposição à execução é o meio idóneo à alegação dos factos que em processo declarativo constituiriam matéria de exceção (52), o termo do prazo para a sua dedução faz precludir o direito de os invocar no processo executivo, a exemplo do que acontece no processo declarativo. A não observância do ónus de excecionar, diversamente da não observância do ónus de contestar ou do de impugnação especificada, não acarreta uma cominação, mas tão-só a preclusão dum direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso (53). […]».
E mais à frente, em nota Nota 70, na pág. 220., observa [...]:
«[…] A preclusão do direito de invocar outras exceções opera no âmbito do processo executivo, sendo inadmissível a posterior dedução de nova oposição, salvo quando ocorra fundamento superveniente (art. 728-2); mas não opera para além dele (supra, n.° 12.4.2). […]».
Em sentido idêntico escreveu-se no Acórdão do STJ de 04/04/2017 (Revista 1329/15.9T8VCT.G1.S1):
Em sentido idêntico escreveu-se no Acórdão do STJ de 04/04/2017 (Revista 1329/15.9T8VCT.G1.S1):
«[…] De acordo com entendimento doutrinário corrente (assim, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed., pp. 190 e 191; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., pp. 303 a 305; e, de certa forma, Castro Mendes, Acção Executiva, p. 54), o executado não está sujeito a qualquer ónus de oposição à execução (aliás, não é citado ou notificado sob qualquer cominação para o caso de não deduzir oposição), e daqui que, não deduzindo oposição, tal não acarreta uma cominação, mas tão só a preclusão, no processo executivo, de um direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso, mas sem que se possa falar de caso julgado a impor-se noutra ação posterior ou de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo. Nesta medida, será de entender (e é o que, no fundo, significam os dois supra citados autores) que deixando o executado de deduzir oposição, nada impedirá que venha depois a invocar em outro processo (isto com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo exequente na execução) os fundamentos (exceções) que podia ter invocado na oposição. É esta também a visão, entre outra vária jurisprudência, do acórdão da RP de 6 de fevereiro de 2007 (processo nº 0720269, relator Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt), onde se sustenta que o decurso do prazo para a oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo, não existindo fundamento legal para que se possa entender que a respetiva preclusão produz efeitos fora do mesmo, e daqui que a não dedução de oposição à execução não impede o executado de propor ação declarativa que vise a repetição do indevido (no mesmo sentido a doutrina e jurisprudência aí citadas). Este ponto de vista assume toda a lógica desde que, como parece dever ser o caso, se encare a oposição à execução, não como uma contestação ao pedido executivo (e, assim, não se lhe aplica a regra do nº 1 do art. 573º do CPCivil), mas como uma petição de uma ação declarativa autónoma cujo objeto é definido pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causa de pedir). […]». Cfr., em sentido semelhante, o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23/10/2012 (P. nº 1247/09.0TBLRA.A.C1) [...].
E incisivamente, depois de se explanarem aí as posições doutrinárias existentes na matéria, diz-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/01/2018 (Apelação nº 1301/12.0TVLSB.L1-1) [...], tal como os restantes acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, que, sem referência de publicação, vierem a ser citados.:
«[…] a não utilização dos meios de defesa na execução não preclude a posterior invocação de excepções ao direito exequendo em outras acções (sendo que o efeito preclusivo só se verifica no processo executivo e relativamente aos meios de defesa específicos desse processo) e que, quando utilizados, as decisões de mérito nela proferidas formam caso julgado material apenas quanto às concretas excepções apreciadas, por inexistência na execução de ónus de concentração da defesa.
E aplicando tal entendimento ao caso concreto em apreço conclui-se, porque não foi proferida na execução qualquer decisão de mérito apreciando a liquidação dos juros na sua vertente de anatocismo [10], por não estar precludida a possibilidade de em acção posterior se discutir se foram ou não pagos juros em excesso e o consequente direito à repetição do indevido. […]».
Não se desconhecendo a existência de posições que divergem deste entendimento – cfr. v.g. a do Prof. Teixeira de Sousa“Preclusão e caso julgado”, que, na “Internet”, está disponível em https://www.academia.edu/24956415/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_05.2016_?auto=download. – afigura-se, todavia, que este traduz, com o respeito que nos merecem posições divergentes ao mesmo, a leitura que melhor se adequa aos preceitos legais que dispõem sobre a acção executiva e a função que aí desempenha a oposição à execução, por embargos, sobretudo, nas situações em que estes terminam – como sucedeu no caso “sub judice” - sem que seja proferida qualquer decisão quanto ao mérito dos mesmos.
Discordando, assim, da afirmação do efeito preclusivo que levou o Tribunal “a quo” a julgar a acção improcedente, revoga-se a sentença “sub judice” e determina-se que o Tribunal “a quo”, proferindo decisão quanto à restante matéria de facto sobre a qual ainda não emitiu qualquer juízo, aplique o direito à factualidade que vier a fixar, julgando da procedência ou da improcedência da ação."
*3. [Comentário] Agradece-se a consideração da citação, mas continua a defender-se o que se referiu em Jurisprudência 2018 (4).
Pode acrescentar-se que, se não houvesse um efeito preclusivo decorrente da não dedução de embargos de executado, ter-se-ia de admitir que, durante a pendência da execução, o executado poderia escolher entre embargar ou defender-se numa acção própria. Ora, o que impede esta escolha? Precisamente, o efeito preclusivo decorrente da não oposição em embargos. Efectivamente, estes embargos não são um meio facultativo de oposição à execução, mas o único meio para essa oposição.
MTS
28/01/2019
Jurisprudência 2018 (163)
Audiência prévia; dispensa;
nulidade processual; consequências*
1. O sumário de RL 23/10/2018 (1121/13.5TVLSB.L1-1) é o seguinte:
I. A dispensa, em contravenção dos critérios legais, da audiência prévia constitui nulidade prevista no art.º 195º do CPC.
II. Porque tal nulidade está coberta por decisão judicial o modo processual adequado de a denunciar é o recurso daquela decisão judicial.
III. A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se.
IV. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz.
V. Destinando-se a audiência prévia, entre outras finalidades, a facultar às partes a discussão de facto e de direito quanto ao mérito da causa e a proceder à delimitação do litígio, se necessário complementando e concretizando a alegação factual (art.º 591º, nº 1, als. b) e c) do CPC, há-de considerar-se compreendida nessa finalidade a actividade conducente à dedução de uma ampliação do pedido.
VI. Tendo a Autora invocado expressamente a sua intenção de formular ampliação do pedido na audiência prévia, não podia o Mmº juiz a quo dispensar a audiência prévia.
VII. Não contendendo a nulidade praticada com a decisão já proferida (verificação de caso julgado relativamente ao primeiro pedido e procedência do segundo pedido) esta haverá de manter-se intocada. O único efeito dessa nulidade será a determinação de realização de audiência prévia para formulação de ampliação do pedido e a prossecução do procedimento consequente a tal formulação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
I. A dispensa, em contravenção dos critérios legais, da audiência prévia constitui nulidade prevista no art.º 195º do CPC.
II. Porque tal nulidade está coberta por decisão judicial o modo processual adequado de a denunciar é o recurso daquela decisão judicial.
III. A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se.
IV. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz.
V. Destinando-se a audiência prévia, entre outras finalidades, a facultar às partes a discussão de facto e de direito quanto ao mérito da causa e a proceder à delimitação do litígio, se necessário complementando e concretizando a alegação factual (art.º 591º, nº 1, als. b) e c) do CPC, há-de considerar-se compreendida nessa finalidade a actividade conducente à dedução de uma ampliação do pedido.
VI. Tendo a Autora invocado expressamente a sua intenção de formular ampliação do pedido na audiência prévia, não podia o Mmº juiz a quo dispensar a audiência prévia.
VII. Não contendendo a nulidade praticada com a decisão já proferida (verificação de caso julgado relativamente ao primeiro pedido e procedência do segundo pedido) esta haverá de manter-se intocada. O único efeito dessa nulidade será a determinação de realização de audiência prévia para formulação de ampliação do pedido e a prossecução do procedimento consequente a tal formulação.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Os denunciados vícios de que padecerá a decisão recorrida não são seguramente integradores das nulidades da sentença previstas taxativamente no art.º 615º do CPC.
Eles traduzir-se-ão na omissão de um acto determinado na lei (realização de audiência prévia) e na prática de um acto proibido por lei (decisão surpresa); e como tal integraram as nulidades inominadas previstas no art.º 195º do CPC [nesse sentido cf. Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 1ª ed., 2014, pgs. 17 e 369].
Pelo que logo se levanta a questão de descortinar se a via recursiva – que foi a utilizada - é adequada para invocar tais nulidades, tendo em conta o princípio de que das nulidades cabe, por regra, reclamação perante o tribunal onde o vício se consumou.
A esse propósito Alberto dos Reis afirmava [Comentário ao Código de Processo Civil, II, pgs. 507-508] que “a arguição de nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.
Ensinamento esse reiterado por Manuel de Andrade (“se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: ’dos despachos recorre-se, contra a nulidades reclama-se’” [Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 183]), Antunes Varela (“se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão” [Manual de Processo Civil, 1985, pg. 393]) e Anselmo de Castro (“tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso” [Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, 134]).
E que tem sido acolhido na jurisprudência, como se pode ver, a título exemplificativo, nos acórdãos do STJ de 30JUN2011 (proc. 527/05.8TBVNO.C1.S1), da Relação de Lisboa de 04JUN2009 (Proc. 67/00.1DSTB-B.L1-2) e 11JAN2011 (Proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1), e da Relação do Porto de 24ABR2012 (Proc. 10336/11.0TBVNG-B.P1) e 24SET2015 (Proc. 128/14.0T8PVZ.P1).
No caso concreto dos autos é manifesto que as nulidades invocadas estão cobertas e sustentadas pela decisão recorrida, pelo que o recurso deduzido se mostra o meio processual adequado para contra elas reagir, sendo lícito a esta Relação delas conhecer."
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o acórdão -- bem como a jurisprudência nele citada -- não considera uma distinção que parece ser essencial. Efectivamente, são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso -- como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis --, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. Este caso merece, no entanto, os seguintes esclarecimentos:
i) No âmbito da passagem transcrita no acórdão, Alberto dos Reis refere a situação em que, perante a não aceitação da contestação pela secretaria por alegada apresentação extemporânea, o réu reclama para o juiz, que vem a aceitar a junção do articulado ao processo; Alberto dos Reis conclui -- e bem -- que, a partir do momento em que há uma decisão que nega o fundamento para a rejeição da contestação pela secretaria, o que o autor tem a fazer é recorrer dessa decisão (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 509);
ii) Em parte alguma Alberto dos Reis refere que há uma nulidade cometida através de uma decisão; o que Alberto dos Reis analisa é apenas o meio de reacção da parte contra uma decisão que, na óptica desta parte, é ilegal.
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.
Ao contrário do que fez, o acórdão devia ter considerado este terceiro caso, dado que o tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia e proferiu o despacho saneador, ou seja, proferiu duas decisões.
b) Neste enquadramento, parece ser demasiada temerária a afirmação peremptória constante do acórdão de que "os denunciados vícios de que padecerá a decisão recorrida não são seguramente integradores das nulidades da sentença previstas taxativamente no art.º 615º do CPC." Será que é mesmo impossível que uma decisão padeça de um vício de nulidade como consequência de uma outra decisão que dispensa a realização da audiência prévia?
A resposta à questão é esta: essa hipótese não só não é impossível, como até está consagrada expressamente na lei. Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).
Portanto, o que a RL deveria ter feito era verificar se:
-- A dispensa da realização da audiência prévia era admissível;
-- A dispensa indevida da audiência prévia implicava a nulidade do despacho saneador por excesso de pronúncia.
c) Atente-se ainda em que, contrariando a regra de que as nulidades são arguidas através de reclamação perante o tribunal a quo, o acórdão acabou por concluir o seguinte: "[...] a nulidade praticada em nada contende com a decisão já proferida, que se mantém intocada. O seu único efeito será a determinação de realização de audiência prévia para formulação de ampliação do pedido e a prossecução do procedimento consequente a tal formulação."
Quer dizer: a RL não conheceu de nenhum vício das duas decisões recorridas, mas, ainda assim, deu provimento ao recurso, por conhecer de uma nulidade processual. Como se disse, não era desta nulidade que a RL devia ter conhecido, mas antes da legalidade da decisão que dispensou a audiência prévia e das consequências de uma eventual ilegalidade dessa decisão para o despacho saneador.
O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida -- hipótese em que o recurso é procedente -- ou não há vícios da decisão impugnada -- situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula -- isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer -- ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual -- situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.
MTS
25/01/2019
Condenação do pagamento de custas da parte vencida a final
Jurisprudência 2018 (162)
Junção de documentos;
segredo profissional
1. O sumário de RP (decisão singular) 24/9/2018 (868/17.1T8PRT-B.P1) é o seguinte:
I - O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma que preveja uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
II - O nº 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
III - Na alínea e) do n.º 1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
IV - Na alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 92º o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos de que o Mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.
V - A junção ao processo de correspondência (não confidencial) trocada entre mandatários e onde consta apenas e só que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que o mesmo cheque pode ser reapresentado a pagamento pelo respectivo beneficiário não constitui violação do segredo profissional do advogado nos termos do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Como é pacífico, o dever de sigilo profissional que impende sobre o Advogado tem a sua razão de ser na necessidade de preservar o princípio da confiança, sendo que o exercício da advocacia assume reconhecido interesse público, dada a natureza social dessa função.
Como se consagra no n.º 2.3.1. do Código de Deontologia dos Advogados Europeus: “ É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado.
A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado.“
E como forma de salvaguardar e proteger esse dever de sigilo profissional, acrescenta-se no n.º 2.3.2 que “O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional.“ [...]
Neste sentido, como se refere no AC desta Relação de 7.07.2010 [AC RP de 7.07.2010, Processo n.º 10443/08.6TDPRT-A.P1, relator EDUARDA LOBO, disponível in www.dgsi.pt] “ Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de elevado interesse público. “ E, ainda, refere-se em outro passo do mesmo aresto que “ O segredo profissional é um direito e um dever do advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial.“ [...]
O nº 3 do citado artigo 92º apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.
Portanto, nem todos os factos estão abrangidos pelo sigilo profissional, mas apenas aqueles que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, ou, ainda, no âmbito de negociações que visem pôr termo ao litígio, tenham essas negociações obtido o almejado acordo de interesses (judicial ou extrajudicial) ou não tenham obtido esse acordo (negociações malogradas), pois que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, o mesmo não os revelaria a mais ninguém.
Por conseguinte é este, em nosso ver, o preciso e específico sentido do artigo 92º do EOA e é, logicamente, com tal interpretação que o mesmo deve, pois, ser aplicado o caso dos autos.
Ora, sendo assim, o documento n.º 3 ora em apreço – em função do seu conteúdo – não se integra em qualquer uma das hipóteses do n.º 1 do artigo 92º do EOA e, em particular, não se integra nas hipóteses contempladas nas suas alíneas e) e f).
Com efeito, o dito documento, ao contrário do que sustentam os recorrentes, pelo seu conteúdo, não dá a conhecer quaisquer factos que vieram ao conhecimento do Mandatário do embargante/recorrido no decurso de negociações entre ambos; Ao invés, o dito documento dá apenas nota de ter já existido entre ambos os Srs. Advogados contactos ou troca de correspondência prévia ao mail que constitui o dito documento n.º 3; Todavia, como é bom de ver, a simples troca de correspondência entre Advogados não significa, de per si, que tenham existido negociações entre ambos.
Nestes termos, o dito documento – em função do seu conteúdo (lido e interpretado segundo os cânones interpretativos que decorrem do preceituado no artigo 236º do Código Civil) – não dá conta da existência de quaisquer negociações entre os Srs. Advogados em representação dos respectivos clientes e, por maioria de razão, não dá conhecimento de quaisquer factos integrados e conhecidos, directa ou indirectamente, nesse (inexistente) processo negocial.
Destarte, a junção de tal documento aos autos e a sua admissão pelo Sr. Juiz a quo não comporta a violação do segredo profissional tal como o mesmo decorre da previsão das citadas alíneas e) e f) do artigo 92º do EOA, em contrário do que invocam os recorrentes.
Pode, no entanto, colocar-se a questão de saber se a possibilidade de tal junção infringir a mais genérica alínea a) desse mesmo n.º 1 do artigo 92º, onde se estatui que o advogado é obrigado a guardar segredo no que respeita a factos que vieram ao seu conhecimento no exercício da sua actividade, exclusivamente, por revelação do cliente ou que lhe foram revelados por ordem deste.
Não pode, contudo, ignorar-se que os factos cujo conhecimento advenha para o advogado em virtude do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços não são todos e quaisquer factos, mas apenas aqueles que tenham vindo ao seu conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada com o respectivo cliente, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação.
Acontece que não é de modo manifesto a situação dos autos.
Como já se assinalou, a documentação em causa corresponde tão só a um mail que foi enviado pelo Mandatário do recorrido ao Mandatário dos recorrentes em que aquele primeiro dá a conhecer a este último que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que esse cheque pode ser reapresentado a pagamento. Nada mais.
Como assim, a junção ao processo de um mail com tal conteúdo não envolve factos que tenham vindo ao conhecimento do advogado em contexto tal que torne a sua revelação como deontologicamente reprovável em face do seu cliente, que, naturalmente, lhe deu (ao seu Advogado) a conhecer esse facto para o comunicar à outra parte, através do seu Advogado, sendo certo que é corrente que tais assuntos, em vez de serem tratados directamente pelos clientes, sejam tratados pelos seus Advogados.
E sendo assim, em conclusão, nada obsta à luz do EOA à junção aos autos de tal documento e, consequentemente, nenhuma censura é possível dirigir ao despacho (ora recorrido) que o admitiu."
[MTS]
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