"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/07/2019

Jurisprudência 2019 (47)


Acção de demarcação;
título executivo*


1. O sumário de RP 24/1/2019 (21895/17.3T8PRT.P1) é o seguinte:

I - O relevante para efeitos do disposto na alínea a) do nº 1 do artº 703º do CPC é comando ou injunção contido na sentença dirigido ao obrigado, impondo a este uma conduta em termos tais que, sem necessidade da mediação de outro qualquer ato, o coloca no estado de sujeição à execução força da daquele comando.

II - Nas ações de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação - artº 1353º do C. Civil, pelo que a sentença que nelas é proferida não contém em si qualquer juízo de condenação para além do que se refere ao estabelecimento da demarcação nos termos decididos.

III - Por essa razão a sentença proferida em ação de demarcação não é título executivo bastante para execução de prestação de facto negativo e positivo por alegada violação por parte dos executados do direito de propriedade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

II – Mantém-se [...] a questão de saber se a sentença proferida em ação de demarcação apenas pode servir de título executivo no que concerne à imposição do dever de contribuir para a demarcação nos termos decididos, ou se também é título executivo bastante para que, em execução de facto, se vir requerer a fixação de sanção pecuniária compulsória por alegada violação das obrigações de facto negativo que da mesma possam decorrer para a executada.

Sendo o título executivo que delimita o fim e os limites da ação executiva – nº 5 do artº 10º do CPC - a questão não estará tanto em saber se a sentença dada à execução pode ou não servir como título executivo mas antes o alcance da decisão nela contida.

No caso das ações de demarcação o objeto da ação vai frequentemente além do que seria justificado pela sua finalidade. Com efeito o normal numa ação de demarcação seria os Autores apresentarem-se a tribunal, no exercício do direito de demarcação que a lei lhes reconhece - artº 1353º do CC - a pedir que fossem declarados os pontos que definem a linha divisória entre dois prédios confinantes cuja propriedade não discutem, e não pretender obter através dessa ação a declaração de um qualquer direito real ou a definição da sua amplitude - S.T.J. 29/6/00 Bol. 499/294. Na típica ação de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação - artº 1353º do C. Civil – já que o que se pede não é o reconhecimento do direito de propriedade, mas antes a definição da linha divisória, que se alega incerta, entre dois prédios confinantes.

No entanto, o que as partes, sob a capa de ação de demarcação, frequentemente visam não é apenas tornar visíveis os limites indisputados entre prédios contíguos, mas antes e indiretamente, a definição do conteúdo do seu direito de propriedade através da fixação das estremas de prédios cujos limites são objeto de litígio pré-existente. Nestes casos a sentença que venha a ser proferida poderá ter de apreciar a questão do direito de propriedade ou da sua extensão. Mas limitada que está à declaração do direito de propriedade apenas como pressuposto do estabelecimento da demarcação nos termos decididos, não contém em si qualquer juízo de condenação para além do que se refere ao estabelecimento da demarcação nos termos decididos, podendo nessa medida servir de título executivo para compelir coercivamente o demandado a contribuir ou consentir na demarcação assim decidida.

Diferentemente ocorrerá se as partes, perante um litígio sobre os limites dos respetivos prédios optarem por propor uma ação de revindicação típica, já que a sentença a proferir neste tipo de ações, em que há cumulação de ação de simples apreciação e ação de condenação, não se limita a declarar o direito e condena efetivamente no respeito pelo direito de propriedade concretamente afirmado e na abstenção dos atos que o possam ofender- cfr nº 1 do artº 1311º do CC.

O que vem de referir-se tem plena aplicação à situação em apreciação.

Com efeito, tendo a ora recorrente, perante atos ofensivos do seu direito de propriedade, optado por propor uma ação de demarcação em vez da normal ação de reivindicação, obteve nessa uma sentença que muito embora se tenha pronunciado sobre o âmbito do direito de propriedade referente a esses prédios, o faz apenas enquanto pressuposto da decisão que é proferida a estabelecer os termos em que deve ser estabelecida a linha divisória entre tais prédios.

E nessa medida não contém qualquer outra condenação para além da que impõe aos demandados nessa ação o dever de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos referidos.

E por isso a sentença apresentada pela recorrente não é de facto título executivo bastante para execução de prestação de facto negativo e positivo por alegada violação por parte dos executados do direito de propriedade, já que proferida no contexto e com a finalidade em que o foi, dela não resulta qualquer outra obrigação para os aqui recorridos que não as que se destinam à efetivação da demarcação nos termos decididos.

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a solução do acórdão é muito formalista.

É muito duvidoso que a decisão proferida na acção de demarcação não possa ser considerada título executivo quanto às obrigações de facto positivo e negativo que decorrem da própria demarcação dos prédios. Lembre-se que, na execução por eles proposta, os exequentes alegaram:

"- que a executada, já depois de proferida a sentença, continua a praticar em relação à parcela de terreno que na sentença dada à execução foi reconhecido integrar o prédio pertencente ao exequente (circula pela mesma a pé e de automóvel);

- Que mantém abertas, uma porta e janelas que deitam diretamente sobre a mesma, e um portão que permite a passagem para a mesma faixa de terreno;

- Que também já depois de proferida a sentença a executada abriu ao nível do primeiro andar da sua casa, junto à linha divisória dos prédios, uma passagem a descoberto, sem qualquer parapeito;

- Que igualmente já depois de proferida a sentença a executada colocou na parede da sua casa um tubo de escoamento de águas que invade o espaço aéreo correspondente à referida faixa de terreno".

Dado que a execução de facto negativo se inicia pela verificação da violação da obrigação de non facere (cf. art. 876.º, n.º 3, CPC), não é impossível que nessa execução se possa constatar a prática de actos incompatíveis com o definido numa sentença de demarcação.

A alternativa seria a imposição aos exequentes da propositura de uma acção declarativa para a verificação da prática de actos incompatíveis com a demarcação que foi anteriormente realizada. Mas é precisamente isto que é duvidoso perante a possibilidade de o mesmo ser realizado, com total respeito pelo direito ao contraditório do executado, na acção executiva.

Repare-se que esta orientação é defendida mesmo sem recorrer aos poderes de gestão processual e de adequação formal (cf. art. 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), que, como é evidente, não há nenhuma razão para não serem aplicáveis no âmbito do processo executivo sempre que tal se mostre necessário.

MTS