"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/07/2019

Jurisprudência 2019 (54)


Prova ilícita;
ponderação de interesses


1. O sumário de RE 28/2/2019 (4375/12.0TBPTM-B.E1) é o seguinte:

I - De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias».

II - Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.

III - Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.

IV - No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP.

V - Estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da sua progenitora é essencial para apurar da capacidade parental desta e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue.

VI - À semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

VII - No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a proteger o superior interesse da criança e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva da vida privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP.

VIII - Assim, a documentação clínica em apreço, que se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger, deve permanecer nos autos para aquele indicado fim que, em concreto, prevalece sobre o direito à reserva da vida privada da progenitora.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Pretende a Apelante por via do presente recurso que não seja admitida e consequentemente seja desentranhada a documentação clínica que a seu respeito foi junta aos autos pela sua mãe, sem que a mesma alguma vez os tenha tornados públicos ou prestado consentimento à sua progenitora para os divulgar, a qual constitui prova ilícita por violadora dos seus direitos fundamentais, já que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de proteção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada, verificando-se também violação do sigilo profissional clínico por parte da unidade hospitalar. [...]

No caso em apreço, o processo iniciou-se com a sinalização da situação da criança à CPCJ de Portimão, por parte de amigos da mãe, tendo pela Comissão sido realizadas as diligências tendentes ao conhecimento da vida familiar e sido proposta a medida de apoio junto da avó materna e companheiro, o que a mãe recusou, retirando o consentimento para a intervenção da CPCJ, o que determinou a remessa dos autos para o Ministério Público.

Como é sabido, atenta a natureza subsidiária da intervenção judicial, expressa no artigo 4.º, alínea j), da LPCJP, a mesma só ocorreu neste caso precisamente porque, existindo informações que suportam a sinalização efectuada, a mãe recusou o consentimento para a intervenção da CPCJ. 

Ora, em face da ilustrativa materialidade decorrente do processo da Comissão que o Tribunal teve em consideração no despacho inicial, não restam quaisquer dúvidas de que a intervenção efectuada em benefício da criança, teve como finalidade imediata o afastamento da situação de potencial perigo em que a mesma foi colocada pela progenitora. [...]

No caso, decorre ainda dos elementos recolhidos pela CPCJ, e tal foi corroborado pelas inquirições efectuadas pelo Tribunal, que a mãe não permite a avaliação da situação de saúde real do filho e o tem sujeitado a um número interminável de exames médicos desnecessários e confinado a uma cadeira de rodas, que lhe atrofia o desenvolvimento, em virtude de perturbação psicológica grave de que esta evidencia padecer, que se agravou consideravelmente, estando a atravessar uma crise psicótica, e necessitando de tratamento médico urgente. 

Ou seja, existe uma correlação directa entre a situação de saúde em que a mãe coloca a criança e a sua situação de saúde psicológica, que a avó materna e o padrasto daquela relataram ao tribunal ter já sido evidenciada na adolescência da progenitora, que igualmente dizia padecer de doenças de que não sofria, tendo sido por essa razão que o tribunal determinou a junção aos autos dos elementos clínicos de que aqueles dispusessem, para serem apreciados na perícia médica que foi determinada para avaliação do estado de saúde da ora Apelante, do qual, tudo indica que dependerá a determinação da sua capacidade para, por si só, exercer as suas responsabilidades parentais. [...]

Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.

Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.

Importa ainda ter presente a força jurídica atribuída pelo artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa [...] aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, e às regras ali vertidas quanto à respectiva restrição, directamente aplicáveis e vinculativas para as entidades públicas e privadas, havendo consequentemente que sopesar, em face de dois direitos constitucionalmente consagrados que colidam, qual dos dois deve prevalecer, à luz do sobredito e devidamente enquadrados pelo princípio da proporcionalidade.

Com efeito, estabelece o n.º 2, do indicado preceito que a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Conforme sublinha o Ministério Público, «a restrição desses direitos terá que ser feita numa ponderação de interesses conflituantes e através da "avaliação comparativa dos interesses ligados à confidencialidade e à divulgação". (…)

Só através de uma casuística ponderação, com vista a uma possível harmonização dos direitos em causa conflituantes, deverá, portanto, ser solucionado cada caso».

Efectivamente, à semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP, cujo n.º 2 estabelece que «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições». Ora, quando é da própria família que a criança tem de ser protegida, ainda que transitoriamente, e esta recusa a intervenção das CPCJ, a proteção da criança compete ao Tribunal de Família e Menores, por força das disposições conjugadas do artigo 123.º, n.º 1, alínea g), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e nomeadamente dos artigos 1.º, 2.º, 3.º 6.º e 100.º e ss. da LPCJP.

Na situação em apreço, e conforme refere o Ministério Público, na sequência das diligências inicialmente efectuadas pela CPCJ e das inquirições realizadas pelo tribunal, tendo resultado fortemente indiciado que a progenitora da criança, ora Apelante, padece de graves problemas psiquiátricos, designadamente de síndrome de Münchhausen por procuração - doença definida como uma forma de abuso infantil, em que os cuidadores provocam de forma deliberada, ou informam falsamente, a existência de alguma doença em crianças como forma de chamarem atenção para si mesmos – foi determinada a realização de uma perícia psiquiátrica à mesma, tendo sido solicitado ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) a indicação de perito médico para o efeito.

Concomitantemente foi solicitada à avó materna da criança e ao companheiro desta, médico reformado, a junção aos autos dos elementos clínicos que tinham acerca da patologia da progenitora da criança a fim de ser remetidos ao perito médico-legal para realização da perícia.

De acordo com o preceituado no artigo 341.º do Código Civil [...] que rege sobre a função das provas, estas visam a demonstração da realidade dos factos.

Conforme temos vindo a sublinhar [Designadamente no Acórdão desta conferência, proferido em 13.07.2017, no processo n.º 1860/15.6T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt], estando em causa a admissão de um meio de prova, em primeiro lugar, importa verificar se o mesmo é ou não relevante para a prova dos factos, porquanto tal é o critério essencial para aferir da respectiva admissibilidade [Cfr. no mesmo sentido, Ac. TRP de 19-09-2011, proferido no processo n.º 6074/09.1 TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt]. [...]

Ora, estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da mãe é essencial para apurar da sua capacidade parental e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue, se necessário, após tratamento prévio que seja considerado adequado, pelo que só com a devida avaliação médico-legal o tribunal terá o necessário enquadramento para uma tomada de decisão consciente sobre a situação de vida familiar em presença, já que somente as provas são o substrato da formação da respectiva convicção quanto à base factual do litígio, e sobre o juiz impende a obrigação de julgar, prevista no artigo 8.º do CC, não podendo abster-se de o fazer invocando dúvida insanável acerca dos factos objecto de controvérsia.

Assim sendo, e observando agora o que vimos de dizer à luz do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, podemos estabelecer como ponto de partida que o direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração [...], atendendo ainda, no âmbito do direito civil, ao facto de a referida garantia constitucional de acesso aos tribunais, se encontrar desde logo plasmada no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, de acordo com o qual a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.

Ademais, a perícia é um meio de prova técnico/científica que visa a comprovação por pessoa, com reconhecida competência e idoneidade na matéria em causa, conforme expressa previsão do artigo 467.º, n.º 1, do CPC. Logo, está sempre salvaguardado carácter confidencial de tal documentação clínica, devendo também notar-se que a Senhora Juíza teve o cuidado de sublinhar o carácter confidencial da mesma, e que esta se destina a fornecer ao perito médico elementos clínicos, cuja valia e relevância para a situação clínica da ora Apelante, o mesmo avaliará e verterá no relatório médico-legal a elaborar.

Portanto, na vertente situação a reserva da vida privada da Apelante, apesar de comprimida, é-o dentro de uma esfera de reserva profissional que assegura igualmente a confidencialidade dos elementos clínicos no âmbito de um processo de natureza urgente e confidencial.

Assim, se atento o preceituado no já citado artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa, importa desde logo atentar no que a respeito da tutela da vida privada estabelecem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cujos artigos 12.º e 8.º regem sobre esta matéria, estatuindo respectivamente que «ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada» e que «toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada», não podendo «haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito», a qual não tem protecção absoluta, porque logo ali se refere também «senão tanto quanto esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades dos outros» (o sublinhado é nosso). Estando consequentemente protegida a vida privada dos indivíduos mesmo da ingerência das autoridades públicas, a lei, a constituição e os instrumentos internacionais ressalvam a possibilidade de intromissão na mesma, quando for necessária, para o que ora importa, à protecção dos direitos de outros, no caso, à protecção do seu filho. 

Ora, a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos princípios orientadores vertidos no artigo 4.º da LPCJP, de cuja alínea a) resulta logo que a intervenção, judiciária e não judiciária, deve atender prioritariamente, aos direitos e interesses da criança ou jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, ou seja, tem como primeiro princípio orientador e estruturante do direito das Crianças e Jovens, o interesse superior da criança e jovem em perigo, correspondente «aos interesses e direitos supremos da criança ou jovem, internacional, constitucional e legalmente consagrados» [...].

Efectivamente, este princípio mostra-se internacionalmente consagrado no artigo 3.º, n.º 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança o qual prevê que «[t]odas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança»; constitucionalmente protegido nos artigos 36.º, n.º 6, de acordo com o qual, os filhos não podem ser separados dos pais (presume-se ser esse o seu superior interesse), salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles, e sempre mediante decisão judicial - artigo 69.º, n.º 1, que estabelece o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, designadamente contra todas as formas de abandono de exercício abusivo da autoridade na família; e legalmente consagrado quer no já citado preceito, quer ainda no n.º 2 do artigo 1978.º do Código Civil, onde se refere que na verificação das situações previstas no número anterior o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.

Portanto, na ponderação dos dois interesses em presença, afigura-se-nos fora de dúvida que deve prevalecer o interesse do filho da Apelante, designadamente a estar com a mãe se e quando se comprovar que a sua situação de saúde o permita. [...]

Em suma, afigura-se-nos ser prevalecente a ideia de que mesmo a prova ilícita deve admitir-se desde que num juízo de proporcionalidade e de ponderação dos interesses em presença, se conclua que a mesma é a única existente ou a determinante para provar os factos controvertidos, e o bem jurídico a ser protegido seja de maior relevância do que aquele que com a sua produção se venha a sacrificar [...].

Revertendo ao caso em apreço, e louvando-nos no que impressivamente se refere nas contra-alegações, ao contrário do que alega a Apelante, não é só em matéria de direito processual penal, em que a finalidade última é a descoberta da verdade dos factos e, consequentemente, a realização da justiça, que em determinadas circunstâncias e verificados determinados pressupostos o direito à reserva da vida privada e de acesso a dados pessoais de terceiro pode validamente ceder perante o princípio da investigação, pois também no direito processual civil, se prevê o “dever de colaboração para a descoberta da verdade” (cfr. art. 417.º do CPC), aplicando-se inclusivamente, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, as disposições do processo penal quando estejam em causa a dispensa do dever de sigilo, e permitindo-se, ainda, o acesso a determinada informação pessoal, limitando embora a utilização da mesma ao “estritamente indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objeto de ficheiro de informações nominativas” (cfr. art. 418º nº2, do CPC).

Ora, no caso em apreço, como antedito, havendo fundadas suspeitas em como a progenitora da criança padece de graves transtornos psiquiátricos, designadamente do síndrome de Münchausen por procuração, já que de acordo com os depoimentos dos técnicos, médicos e testemunhas já ouvidas e dos elementos juntos aos autos pela avó materna da criança, a ora Apelante, de uma forma persistente e reiterada terá inventado sintomas de doenças no filho e até forjado comunicações e documentos de médicos para que a criança fosse considerada doente, colocando em perigo a saúde e vida deste, afigura-se-nos essencial e justificado para uma eficaz promoção dos direitos da criança e protecção efectiva da mesma (e também da própria progenitora) o apuramento cabal dos problemas psiquiátricos de que a apelante padeça, para possibilitar o tratamento dos mesmos, sendo, do nosso ponto de vista, de capital importância o conhecimento dos seus antecedentes clínicos para a investigação da sua doença e realização da perícia psiquiátrica determinada.

Daí que no confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, se nos afigure, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a alcançar tal desiderato e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP, e a documentação clínica em apreço se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger.

Pelo exposto e ponderando os valores e interesses em presença, concluímos pela proporcionalidade e necessidade da manutenção de tais documentos clínicos nos autos, porque se nos afiguram essenciais para a realização da perícia psiquiátrica à progenitora da criança, que, aliás, já se encontra designada."

[MTS]