"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/07/2019

Jurisprudência 2019 (48)


Junção de documentos; omissão; 
impossibilidade da prova; inversão do ónus da prova;
providência cautelar;
caducidade; responsabilidade do requerente


1. O sumário de STJ 7/3/2019 (5744/15.0T8VNG.P1.S1) é o seguinte:

I - A inexistência de justificação para a falta de junção de documentos requeridos para demonstração de factos invocados pela contraparte pode justificar a inversão do ónus da prova se aquela ficar impossibilitada de provar esses factos ou, pelo menos, em grande dificuldade para o lograr.

II - Não resultando dos factos provados que os aluimentos de terras – invocados como causa dos danos a ressarcir – resultaram das intempéries participadas como sinistro à seguradora e tendo-se, ao invés, demonstrado que os mesmos tiveram origem em erros técnicos de construção, é de concluir pelo preenchimento da cláusula de exclusão de um contrato de seguro segundo a qual este não abrange o pagamento de indemnizações por perdas ou danos em edifícios assentes em fundações que não observem as pertinentes regras técnicas; revela-se, para tanto, despiciendo averiguar se os erros construtivos em causa eram do conhecimento do recorrente

III - A previsão da al. c) do n.º 1 do art. 373.º do CPC concede ao requerido a possibilidade de ser ressarcido pelos danos causados por providência cautelar que tenha sido julgada injustificada ou que venha a caducar; porém, o exercício desse direito – que tem como requisitos o trânsito em julgado e a verificação da culpa ou da falta de diligência normal do requerente do procedimento – depende da propositura da correspondente ação em que se invoquem os pertinentes factos, não sendo viável a sua apreciação na própria ação de que a providência depende.

 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I - Quanto á nulidade resultante do excesso de pronúncia ou pronúncia indevida relativamente à alteração da matéria de facto:

3) Relativamente à inversão do ónus da prova:

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 429º, 430º e 417º do CPC, quando se pretenda fazer uso de determinado documento em poder da parte contrária e esta, notificada para o efeito, não proceder à sua junção, “o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 344º do Código Civil” (nº 2 do art. 417º do CPC), sendo que o nº 2 do artigo 344º do C. Civil estabelece por sua vez que “há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo…”

Os factos em questão que a 1ª instância deu como não provados sob as als. g) i), j) e k) correspondem à factualidade alegada pela ré/recorrida, nos artigos 9º, 12º e 46º da contestação.

Conforme resulta dos autos e se salienta no acórdão recorrido, para a prova dos ditos factos que foram dados como não provados, a ré, na contestação, requereu a notificação do autor, ao abrigo do disposto no art. 429º do CPC, para juntar aos autos “todas as atas das assembleias gerais de condóminos, desde a constituição até à mais recente, a fim de apurar o ano em que foi pela primeira vez abordado o problema das estruturas do edifício” Na sequência do deferimento de tal pretensão, o réu veio a juntar aos autos, em 17.02.2016, apenas e tão só as atas nºs 1 a 5 (referentes às assembleias de condóminos que foram realizadas entre outubro de 2000 e janeiro de 2002) – anteriores à celebração do contrato de seguro em causa nos autos.

Em face dessa insuficiência, a ré veio a requerer que o autor fosse notificado para juntar as atas das assembleias de condóminos posteriores a janeiro de 2002 – requerendo ainda que o autor juntasse cópias dos documentos referidos nas atas nºs 1 e 2, nas quais é feita alusão a documentação elaborada e enviada à empresa construtora relacionada com deficiências na construção entretanto detetadas.

Em resposta, veio o autor dizer que não tinha em seu poder mais atas e requereu concessão de prazo (30 dias) para pesquisar a existência dos ditos documentos.

Todavia, conforme se salienta no acórdão recorrido, não só não veio juntar tais documentos como nem sequer justificou essa omissão.

Perante tal situação, a Relação, considerando inexistir qualquer justificação válida para a não junção de tais documentos, considerou que, com base nas disposições conjugadas dos artigos 430º e 417º, nº 2 do CPC e 344º do C. Civil, supra transcritas, se mostram verificadas as condições legais de que depende a inversão do ónus da prova a que alude esta última mencionada disposição.

E, no seguimento disso, e para além de considerar que o autor não logrou demonstrar que as patologias do edifício seguro tivessem sido causadas por um acontecimento fortuito, súbito e imprevisto, considerou que até ficou provado o inverso, ou seja, que os danos no edifício não resultaram de qualquer evento com essas características – e daí que tenha procedido à alteração da matéria de facto, nos termos supra mencionados.

4) Sendo inquestionável que o autor não justificou a não apresentação dos documentos que lhe foram solicitados (uma vez que, após solicitar prazo para o efeito nada fez), ou seja as atas das assembleias de condóminos posteriores a janeiro de 2002 e os documentos referidos nas atas anteriores, nºs 1 e 2, que apresentou – é manifesto que, pelo menos estes documentos (que, nos termos desta atas, respeitavam a documentação enviada à empresa construtora do edifício neles se fazendo referência à existência de deficiências de construção) seriam de extrema relevância para a prova da factualidade em questão, que a 1ª instância deu como não provada (e que a Relação alterou) - sendo até natural que nas atas relativas às posteriores assembleias, não apresentadas, se fizesse referência ao mesmo tema, designadamente à eventual resposta da construtora e consequentes desenvolvimentos sobre a resposta ou não resposta.

Assim, a não junção injustificada dos documentos implicava, para efeitos probatórios, a livre apreciação dessa recusa e, porventura ainda, a inversão do ónus da prova.

Pode-se discutir, conforme o faz o recorrente, se a não apresentação da referida documentação por parte do autor ora recorrente, apenas podia ter por consequência a inversão do ónus da prova no caso de, em resultado disso, a ré ter ficado impossibilitada de fazer a prova da factualidade em questão e se, in casu, tal impossibilidade se verificou.

O recorrente diz que não mas não indica qual a prova de que a recorrida se podia socorrer para o efeito.

E o certo é que, tendo-se em atenção as características dos danos e o tempo entretanto decorrido, é a nosso ver manifesto que a recorrida, se não ficou de todo impossibilitada ficou pelo menos numa situação de grande dificuldade em fazer a prova da factualidade em questão – sendo certo que a 1ª instância até veio a considera-la como não provada.

E, neste âmbito, estamos de acordo com a posição defendida no acórdão da Relação de Guimarães de 04.12.2014 (proc. nº 572/09.4TBFAF.G1, in www.dgsi.pt) no sentido de que “se a parte tiver culposamente tornado impossível a prova à contraparte onerada com a prova, o ónus correspondente inverte-se: a parte que impossibilitou a prova passa a ficar onerada com a demonstração da não verificação do facto”.

Ora, atentas as circunstâncias do caso – e sem descurar que era sobre o autor recorrente que recaía o ónus de provar que os danos cujo ressarcimento pretende resultaram de sinistro abrangido no contrato de seguro e que não de outra causa anterior – não nos merece assim censura o entendimento da relação relativamente à existência de inversão do ónus da prova em relação à matéria factual ora em questão. [...]

III – Quanto ao enriquecimento sem causa:

"1) Mostra-se provado que, por decisão proferida no âmbito de procedimento cautelar requerido pelo autor ora recorrente, à ré seguradora ora recorrida foi determinado que suportasse “(…) de imediato o custo com a reparação da sapata do pilar no aparcamento automóvel referido no facto provado 3ª3, com a reparação do reforço de fundação dos pilares, consolidação do solo sob as sapatas e reparação de elementos de betão armado que estejam fissurados do edifício, na zona onde ocorreu o aluimento e onde se verifique ser necessário realizar tais obras, até ao valor máximo de EUR 126.000,00” e que ainda que, em cumprimento de tal decisão, esta pagou ao autor as quantias referidas nos nºs 51 e 52 dos factos provados.

E, na sequência da revogação da sentença recorrida, a Relação, julgando procedente a reconvenção deduzida pela ora recorrida, condenou o ora recorrente a pagar àquela tais quantias, acrescidas dos respetivos juros moratórios, com fundamento na caducidade da providência, nos termos do artigo 373º, nº 1, al. c) do CPC e bem assim no invocado enriquecimento sem causa.

Isto, sem mais desenvolvimentos, em termos de fundamentação jurídica.

2) É também contra tal decisão que se manifesta o recorrente, que defende a tese da inexistência de enriquecimento sem causa, invocando para o efeito a sua natureza subsidiária e por considerar como não verificado um dos respetivos requisitos: a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

E isto, ainda segundo o recorrente, pelo facto de tal pagamento ter sido determinado numa providência cautelar – havendo causa justificativa baseada na existência do contrato de seguro.

3) Nos termos do artigo 373º, nº 1, al. c) do CPC, sob a epígrafe “caducidade da providência”, o procedimento cautelar extingue-se “se a ação vier a ser julgada procedente por trânsito em julgado”, dispondo-se por sua vez no nº 1 do artigo seguinte que “se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal”.

Verifica-se pois que o legislador, nos termos desta última disposição, concede ao requerido no procedimento cautelar um meio de se ver ressarcido dos danos resultantes da providência vir a ser julgada injustificada ou a caducar – danos esses nos quais se inclui, naturalmente, aquilo que o mesmo suportou em cumprimento do decretamento da providência cautelar.

Ou seja, resulta que a lei concede ao requerido do procedimento cautelar, por esta via, um meio de obter o ressarcimento ou restituição do que prestou.

E, assim sendo, é manifesta a inadmissibilidade do recurso à figura do enriquecimento sem causa, atenta a respetiva natureza subsidiária, que resulta do disposto no artigo 474º do C. Civil, nos termos do qual “não há lugar à restituição por enriquecimento sem causa, quando a lei faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou ressarcido…”

Para obter a restituição das quantias pagas, a recorrida (reconvinte) terá que o pedir à luz do disposto no referido nº 1 do artigo 374º do CPC, que não com fundamento no enriquecimento sem causa.

Todavia, tal ressarcimento depende da verificação de determinados requisitos, não dependendo apenas, e sem mais, da caducidade da providência em resultado da improcedência da ação principal. Com efeito, depende, desde logo, do trânsito em julgado da ação, nos termos da al. c) do nº 1 do artigo 373º do CPC – de onde resulta que a Relação não podia decidir como decidiu no âmbito da sua própria decisão, na qual a ação veio, como consequência da procedência da apelação da ré, a ser julgada improcedente. E isto, pela simples razão de que naquele momento (e mesmo neste momento, em que é proferido acórdão a conhecer da revista) ainda não havia trânsito em julgado (neste sentido, vide A. Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (in CPC Anotado, Vol. I, Parte Geral de Processo de Declaração, pag. 440).

Mas, para além disso, a lei não se basta com o trânsito da decisão que vem a julgar improcedente a ação principal, exigindo ainda, nos termos do nº1 do artigo 374º do mesmo diploma, que o requerente da providência tenha agido culposamente ou sem a prudência normal.

Desta forma a questão da restituição das quantias pagas não podia ser objeto de apreciação e decisão no âmbito desta ação principal (ou mesmo do procedimento cautelar) mas apenas e tão só no âmbito de ação a intentar para o efeito, após o trânsito em julgado da decisão final desta ação, e na qual têm que ser invocados, como integrantes da respetiva causa de pedir, os supra mencionados requisitos, relativos à atuação culposa ou sem a prudência normal.

Neste sentido, vide A. Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 2ª edição, pag. 298, onde se diz que a norma em questão (fazendo-se ali referência ao correspondente artigo do anterior CPC) “deve ser encarada fundamentalmente como norma de direito substantivo, contendo uma das formas de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito ou aquiliana… É indubitável que a correspondente pretensão não cabe no procedimento cautelar ou mesmo no incidente de oposição. Julgamos até que nem sequer a ação de que o procedimento depende tem a estrutura exigida para a suportar”.

E no mesmo sentido, ou seja da necessidade de instauração de ação com base na responsabilidade civil, nos termos do artigo 390º (correspondente ao 374º do CPC atual), vide ainda o acórdão da Relação do Porto de 05.03.2013 (proc. nº 2754/12.2TBVCD-C.P1, in www.dgsi.pt)."

[MTS]