Presunções judiciais;
poderes do STJ*
I. O sumário de STJ 7/3/2019 (248/17.9T8BRG.G1.S2) é o seguinte:
1. Está fora das atribuições do Supremo, enquanto Tribunal de revista, sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação ou fez uso de presunções legais [sic; rectius: judiciais], fora dos estreitos limites do art. 674º, nº 3, do CPC.
2. Em face do art. 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/07, de 21-8, procede a ação de regresso numa situação em que se apurou que o veículo segurado abalroou uma viatura que se encontrava parada e devidamente sinalizada numa via que formava uma reta numa localidade, estando o condutor daquele veículo com uma taxa de 0,92 gr/l e sob influência do álcool, e seguindo a uma velocidade superior a 90 kms/h.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"1. O R. insurge-se contra a manutenção na decisão da matéria de facto relacionada com a condução sob alcoolemia, considerando, por um lado, que a colheita de sangue só ocorreu duas horas depois do acidente e, por outro, que, não estando provado o grau de alcoolemia que detinha na ocasião em que ocorreu o acidente, não poderia considerar-se provada, mediante presunção judicial, a existência de um nexo de causal entre o acidente e a alcoolemia.
Pretende, na realidade, que este Supremo Tribunal de Justiça sindique a decisão da matéria de facto que foi enunciada pela 1ª instância e, depois, confirmada pela Relação que para o efeito procederam à apreciação e reapreciação de meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
No precedente recurso de apelação pretendeu o R. que se considerassem não provados os seguintes factos que a 1ª instância inscrevera na sentença:
- Que o R. conduzia sob o efeito do álcool;
- Que após o embate, foi recolhido sangue ao R., tendo sido detetada a presença de álcool no sangue de 0,92g/litro;
- E que a presença de álcool no sangue causou ao R. perturbação dos reflexos e da coordenação motora, diminuição da atenção e concentração, bem como lentidão na capacidade de reação e perceção, determinando o embate.
Cada um destes factos foi verificado pela Relação que procedeu à reapreciação dos meios de prova produzidos, concluindo, também por via de presunções judiciais, pela sua manutenção.
Tal decisão, na medida em que envolve a formulação de juízos sustentados na livre apreciação dos meios de prova, não está, por regra, submetida a recurso de revista, nos termos do art. 662º, nº 4, do CPC. Por outro lado, atento o disposto no art. 674º, nº 3, são limitados os poderes que o Supremo Tribunal de Justiça detém relativamente à matéria de facto que as instâncias considerem provada e não provada, o que apenas pode ocorrer em casos em que o erro de apreciação das provas decorra da violação de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que determine a sua força legal.
No aspeto formal, as instâncias procederam à ponderação dos meios de prova que foram produzidos num processo contraditório. Em termos materiais, nenhum dos factos relacionado com a condução sob efeito do álcool estava sujeito a prova tarifada ou resultou do não atendimento de algum meio de prova com valor vinculativo para as instâncias.
Tendo a Relação feito uso de presunções judiciais, não existe motivo para recusar a legitimidade de tal atuação, na medida em que, mais uma vez, se trata de factos que não rejeitam o uso de tal mecanismo decisório.
Ademais, os factos a que o recorrente e reporta nem sequer se enquadram na estreita faixa de situações em que porventura poderia justificar-se a ação cassatória do Supremo Tribunal de Justiça que, segundo a jurisprudência corrente, está reduzida a casos em que a base das presunções não apresenta qualquer logicidade (neste sentido cf. o Ac. do STJ de 4-11-16, relatado e subscrito pelos ora adjuntos, relativamente a um caso de alcoolemia).
No caso, quer a reapreciação dos meios de prova, quer o uso de presunções judiciais inscrevem-se na esfera de influência do princípio da livre apreciação das provas, não havendo razão alguma para sindicar e alterar a decisão da Relação.
Assim, quer o facto de a recolha de sangue ter ocorrido depois do acidente (o que é normal), quer a afirmação de que o R. conduzia sob efeito do álcool e que se verificava um nexo de causalidade entre a alcoolemia existente e o acidente não podem ser objeto de qualquer modificação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.
2. Questiona também o recorrente a interpretação que foi feita do regime jurídico aplicável ao caso. Considera que para que proceda a ação de regresso recai sobre a Seguradora a demonstração de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, o que não se verificaria em face da matéria de facto.
No caso concreto, provou-se que:
- Momentos antes do acidente ambos os veículos seguiam no sentido ... e o QH encontrava-se parado, junto à berma direita, atento o seu sentido, com os faróis traseiros e dianteiros ligados e com um farolim intermitente ligado sobre o tejadilho, sendo visível a mais de 200 metros;
- O lesado seguia de pé sobre a plataforma traseira do QH, local próprio para o transporte dos trabalhadores que fazem a recolha dos resíduos sólidos urbanos e os introduzem no camião, altura em que o veículo conduzido pelo R embate na parte traseira onde aquele seguia, provocando-lhe as lesões.
- O R. seguia a mais de 90 kms/h, ainda que dentro dos limites da cidade de ..., num local bem iluminado por potentes candeeiros de iluminação pública, junto a um cruzamento e a uma zona comercial, com circulação de peões.
- Depois do acidente foi feita a recolha de sangue no organismo do R., tendo sido detetada a presença de álcool no sangue de 0,92 gr/litro.
- Ademais, o R. conduzia sob o efeito do álcool cuja presença no seu organismo lhe causou uma perturbação dos reflexos e da coordenação motora, uma diminuição da atenção e concentração, bem como uma lentidão na capacidade de reação e perceção, determinando o embate.
*III. [Comentário] O STJ decidiu bem o caso concreto, apesar de ter enunciado mais uma vez a mais que discutível tese sobre a impossibilidade de o STJ controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias.
O acórdão contém a seguinte declaração de voto: "Votei o acórdão com fundamento no facto de a Relação ter dado como provada, no uso de presunções judiciais, a verificação de nexo de causalidade". No contexto da decisão e, em especial, da sua fundamentação, a declaração não é totalmente compreensível, mas presume-se que a mesma tenha a ver com a discussão havida entre os subscritores do acórdão.
MTS