"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/07/2019

Jurisprudência 2019 (50)


Transacção judicial;
sub-rogação legal; título executivo*


I. O sumário de RE 12/6/2019 (3342/18.5T8LLE.E1) é o seguinte: 

1 - Uma sentença homologatória de transação e de confissão constitui título executivo, desde que seja condenatória.

2 - Mesmo admitindo-se “condenações implícitas”, a sentença, para constituir título executivo, tem de ser suficiente para a constituição da obrigação.

3 - Por força do disposto no art. 54.º, n.º 1 do D/L n.º 291/2007, de 21.08, o Fundo de Garantia Automóvel adquire, na medida da satisfação dada ao direito do lesado, os poderes que a este competiam, ou seja, satisfeita a indemnização pelo Fundo de Garantia Automóvel nasce automaticamente, por força da lei, na esfera jurídica do lesante, ou da sua seguradora, a obrigação de pagamento ao FGA do valor que ele pagou ao lesado e ainda das demais quantias previstas naquele normativo.

4 - Nos termos do referido art. 54.º, n.º 1, para que haja sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado não basta a transação celebrada e homologada judicialmente, sendo também necessário o pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel da indemnização ao lesado.

5 - Não sendo o pagamento da indemnização anterior nem contemporâneo da formação do título executivo, ocorrendo, nos termos do acordado, num momento posterior àquela, o referido pagamento não está abrangido pelo caso julgado da sentença homologatória dada à execução a qual, por isso, não é exequível. 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A única questão suscitada no presente recurso consiste em saber se a sentença homologatória com o teor supradescrito constitui título executivo que permita ao exequente/recorrente substituir-se nos direitos do lesado [...] e assim obter do executado/recorrido o valor que pagou ao primeiro.

Defende o recorrente que «é irrelevante que a douta sentença homologatória do acordo na ação declarativa contemplasse o direito de regresso/sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel pois tal direito adquire-se automaticamente com o pagamento da indemnização ao terceiro lesado». Invoca o art. 54.º, n.º 1, do D/L n.º 291/2007, de 21.08, o qual dispõe o seguinte:

«Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso».

Liminarmente se dirá que não lhe assiste razão.

O título dado à execução consiste numa sentença homologatória de uma transação e de uma confissão firmadas no âmbito de um incidente de liquidação movido por CC contra o Fundo de Garantia Automóvel e BB, mediante a qual o tribunal, após homologar o acordo, condenou as partes a cumpri-lo «nos seus precisos termos».

De acordo com o disposto no art. 10.º, n.º 5, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.

O título executivo confere ao direito exequendo o grau de segurança que o sistema considera suficiente para a admissibilidade da ação executiva, através dele se determinando o tipo de ação, o seu objeto, a legitimidade ativa e passiva para a execução, sendo também através dele que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível [...].

As sentenças condenatórias, isto é, as decisões com valor de caso julgado material proferidas num processo contraditório pelas quais um tribunal impõe um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu, são títulos executivos, conforme art. 703.º, n.º 1, al. a), do CPC. Nelas incluem-se as sentenças homologatórias de confissão de pedido e de transação, desde que sejam condenatórias [...].

No caso vertente, através da presente execução, o recorrente Fundo de Garantia Automóvel pretende efetivar a sub-rogação que se encontra prevista no art. 54.º, n.º 1 do D/L n.º 291/2007, de 21.08. Este normativo em causa é expressão de uma sub-rogação legal (cfr. art. 592.º, do Código Civil), mediante a qual o Fundo de Garantia Automóvel adquire, na medida da satisfação dado ao direito do lesado, os poderes que a este competiam. Ou seja, satisfeita a indemnização pelo Fundo de Garantia Automóvel, nasce automaticamente, por força da lei, na esfera jurídica do recorrido a obrigação de pagamento ao FGA do valor que ele pagou ao lesado (e ainda das demais quantias previstas no normativo em análise).

Como referimos supra, a sentença, para constituir título executivo, tem de impor um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu.

No caso sub judice a sentença homologatória (condenatória) da transação e da confissão apresentada à execução não se pronuncia expressamente sobre a constituição, na esfera jurídica do executado/recorrido, da obrigação de reembolsar o exequente/recorrente do montante que este se obrigou a pagar ao lesado, no prazo de 8 dias a contar da data da data do acordo/confissão. Ou seja, não condena expressamente o recorrido no cumprimento da prestação pecuniária que a recorrente reclama por via da presente execução.

Não se ignora haver quem defenda que a fórmula condenatória não precisa de ser explícita e que a expressão “sentenças condenatórias” utilizada na legislação processual civil abrange todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade, designadamente, certas sentenças constitutivas [...].

Mas, mesmo admitindo-se “condenações implícitas” a sentença, para constituir título executivo, tem de ser suficiente para a constituição da obrigação. Como defende Lebre de Freitas, [
A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª edição, GestLegal], em nota de rodapé, p. 50, «[…] a ideia da condenação implícita é aceitável quando pela sentença haja sido constituída uma obrigação cuja existência não dependa de qualquer outro pressuposto».

Resulta do art. 54.º, n.º 1, do D/L n.º 291/2007, de 21.08 que aquele que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor/lesado quando for satisfeita a indemnização. Isto é, para que haja sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel nos direitos do lesado não basta a transação celebrada (e homologada judicialmente) é necessário também o pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel da indemnização ao lesado. 

Pagamento que, no caso vertente, não é anterior nem contemporâneo da formação do título executivo (cfr. cláusula 3.ª), não estando, por isso, abrangido pelo caso julgado da sentença homologatória dada à execução. E, por isso mesmo, daquela sentença nunca se poderia retirar uma condenação implícita do recorrido na obrigação de pagamento ao FGA do valor que este pagou ao lesado. Refira-se, aliás, que o próprio recorrente reconhece nas suas alegações a falta de exequibilidade do título dado à execução ao concluir que «[…] todas os elementos da causa de pedir estão judicialmente apreciados, com exceção do pagamento ao lesado, cuja prova conferirá exequibilidade ao título executivo» [...].

De acordo com o disposto no art. 726.º, n.º 2, al. a), do CPC, o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título. É o caso.

Em face do exposto, a decisão sob recurso não merece censura, impondo-se a sua confirmação e, consequentemente, a improcedência da presente apelação."

*III. [Comentário] a) Depois do comentário que se fez em Jurisprudência 2019 (47), volta-se, muito pouco tempo depois, à problemática da falta de título executivo.

Na linha do afirmado no comentário anterior, a discordância perante o presente acórdão da RE assenta na mesma justificação: a solução encontrada neste acórdão é demasiado formalista e desconsidera totalmente as consequências dessa solução.

Lembre-se o que estava em causa: através de uma transacção judicial devidamente homologada, o FGA e o lesante foram condenados a pagar uma indemnização ao lesado; o FGA pagou essa indemnização e, com fundamento no regime legal aplicável, instaurou uma acção executiva para obter do lesante a quantia paga ao lesado. Perante, isto as instâncias entenderam que não há título executivo que justifique a acção proposta pelo FGA contra o lesante.  

Já noutro contexto se chamou a atenção para que ninguém ganha nada em duplicar o uso dos meios processuais quando tudo pode ser resolvido num único processo. O caso em análise convoca o mesmo argumento: o que é que se ganha em recusar que a transacção constitua título executivo para o FGA obter do lesante a restituição a que tem direito e obrigar o FGA -- primeiro -- a obter uma condenação do lesante e -- depois -- a instaurar a acção executiva contra esse mesmo lesante? 

É claro que o FGA nada ganha em ter de utilizar dois meios processuais em vez de um só. Reflexamente, o sistema judicial também nada ganha, porque se verifica uma utilização inútil dos seus escassos recursos.

E -- cabe agora perguntar -- o lesante perde alguma coisa em ser demandado na acção executiva, sem primeiro ter sido demandado na acção condenatória? A resposta é necessariamente esta: o lesante nada perde, porque não se vislumbra que os fundamentos que o lesante pudesse eventualmente invocar na acção declarativa para oposição ao pedido do FGA não possam ser alegados em embargos de executado. 

É claro que a circunstância de o direito do lesante ao contraditório ser dificultado ou mesmo impossibilitado seria um argumento decisivo para rejeitar a admissibilidade da acção executiva e impor a propositura de uma prévia acção declarativa contra esse lesante. A verdade é que, no caso concreto, a única matéria que pode vir a ser controvertida entre o lesante e o FGA é a realização do pagamento ao lesado (o fundamento do pagamento é, naturalmente, indiscutível). Não se vislumbra que a demonstração pelo lesante de que, contra o afirmado pelo FGA, afinal ainda não houve nenhum pagamento pelo FGA ao lesado não possa ser realizada na acção executiva. 

Acresce que, no caso em análise, é quase seguro que o lesante também sai beneficiado com a propositura directa da acção executiva, sem a necessidade de uma prévia acção declarativa. Não sendo fácil imaginar que o lesante tenha algum fundamento de contestação ao pedido de condenação formulado pelo FGA na acção declarativa, esta acção vai necessariamente proceder e aquele lesante vai ser condenado em custas (actualmente, nada despiciendas) numa acção que, muito provavelmente, não tem sequer nenhum interesse em contestar. 

Isso só não sucederá se se puder entender que o lesante não deu causa à acção e que, por isso, o FGA fica responsável pelas custas da acção declarativa, apesar de a ter ganho (art. 535.º, n.º 1, CPC). Mas, como é claro, esta é uma hipótese que a RE não pode sequer admitir, dado que a mesma entende que, sem uma prévia acção declarativa, o FGA não pode executar o lesante. Dito de outro modo: a RE considera indispensável que o FGA proponha uma acção condenatória contra o lesante, pelo que nunca pode aceitar que esse lesante não tenha dado causa à acção e que, por isso, não tenha de pagar as custas da acção na qual venha a ser condenado. 

Assim, segundo a orientação defendida pela RE, não só o FGA tem o ónus de propor uma acção condenatória contra o lesante, como este lesante vai mesmo ter de suportar as custas dessa acção, ainda que, em termos objectivos, se possa concluir que o lesante não tem sequer interesse em contestá-la. 

Na linguagem da teoria dos jogos, pode concluir-se que a solução propugnada pela RE conduz a uma no-win situation, porque nenhuma das partes ganha nada com ela. Em concreto:

-- O FGA perde, porque tem de utilizar dois meios processuais, quando podia utilizar apenas um;

-- O lesante também perde, porque tem de suportar todas as despesas (incluindo as custas) de uma acção declarativa em que as possibilidades de contestação são apenas teóricas.

Aliás, não é sequer de excluir que a circunstância de o lesante (agora recorrido) não ter apresentado resposta às alegações de recurso tenha precisamente tido por base a evidência de que essa parte nada ganha com a remessa das partes para uma prévia acção declarativa. Certo é que, quando a situação é vista pela perspectiva do lesante, a procedência do recurso também em nada o beneficia.

b) Em conclusão: 

-- É totalmente justificado admitir que a transacção judicial celebrada entre o FGA e os demais interessados constitui título executivo para aquele obter do lesante a quantia paga ao lesado; a alternativa a esta solução (que implica a propositura de uma acção condenatória do FGA contra o lesante) não é do interesse nem do FGA, nem do lesante, nem do sistema judicial;

-- Na acção executiva ter-se-á, em todo o caso, de fazer prova desse pagamento; esta circunstância não pode constituir obstáculo ao afirmado anteriormente, como o demonstra o lugar-paralelo regulado no art. 707.º CPC.

c) Ainda uma reflexão suplementar, mas, segundo se crê, importante. 

Se o FGA, em vez da acção executiva, tivesse escolhido propor uma acção condenatória do lesante e se este não a tivesse contestado, será que se poderia dizer que estava preenchida a previsão da regra constante do art. 535.º, n.º 1, CPC e que o FGA, apesar de autor vencedor, viria a ser responsabilizado pelas custas da acção?

Não parece que, nesse hipotético caso, se pudesse responder que o réu lesante não tinha dado causa à acção condenatória proposta pelo FGA. Afinal, ele próprio poderia ter tomado a iniciativa de pagar a indemnização ao lesado, evitando a necessidade do pagamento pelo FGA, e ele próprio também poderia disponibilizar-se a pagar voluntariamente ao FGA a quantia a que este tem direito, evitando a necessidade de qualquer acção. Portanto, uma eventual acção condenatória proposta pelo FGA contra o lesante não seria uma acção inútil (na acepção do art. 535.º, n.º 1, CPC). 

Disto decorre que não se pode dizer que, no caso em análise, o FGA não pudesse ter instaurado uma acção condenatória contra o lesante. No entanto, o que o caso em análise mostra claramente é que isto não impede que o FGA também pudesse escolher a via da acção executiva. 

Além de outros aspectos, o especial interesse do caso sub iudice reside em demonstrar que era admissível uma outra via (ou a dupla via da acção declarativa e da posterior acção executiva), mas que a propositura da acção executiva era não só uma via admissível, mas afinal a via mais conveniente para o FGA, para o lesante e para o sistema judicial. Quer dizer: tanto a dupla via da acção declarativa e da posterior acção executiva, como a via da acção executiva são suportadas pelo ordenamento jurídico, mas esta última via é a que é mais vantajosa para o FGA, para o lesante e para o sistema judicial.
 
O que o acórdão da RE acabou por fazer foi afastar a melhor das duas soluções que, à partida, eram possíveis e impor às partes e ao sistema judicial a pior dessas soluções. É por isto que se tem de discordar da solução propugnada no acórdão da RE. 

d) Do exposto talvez resulte o seguinte mote: é preciso ponderar as consequências de todas as decisões e, em especial, das decisões de forma!

MTS