"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/07/2019

Jurisprudência 2019 (65)


Deferimento da desocupação de imóvel;
transacção; terceiros; inoponibilidade

1. O sumário de RG 7/3/2019 (195/10.5TJVNF-A.G1) é o seguinte: 

“I. A obrigação do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação (art. 930º-C do CPC; actual, art. 864º do NCPC) não pode resultar de transacção estabelecida entre as partes, homologada por sentença, onde apenas se preveja o diferimento da desocupação e, inclusivamente, se estabeleça que o pagamento das rendas, durante aquele período, ficava a cargo da executada.

II. Na verdade, tal obrigação só pode ser imposta àquela entidade se, na sequência do correspondente pedido de diferimento da desocupação, forem apresentadas provas da verificação dos respectivos requisitos, e sobre ele incida uma decisão judicial que, no seu prudente arbítrio, julgue os pressupostos de que depende o diferimento da desocupação verificados”.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s) - no caso, a posição das partes -, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, é a seguinte a questão que importa apreciar:

- Saber se a sentença que homologou a transacção estabelecida entre as partes, nos presentes autos de oposição à execução, pode constituir título executivo perante o “Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social” (ISS) – no sentido de obrigar aquela entidade a efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação (art. 930º-C do CPC).
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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Como factualidade relevante interessa aqui ponderar apenas os trâmites processuais e o teor da decisão proferida que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais.

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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta do relatório elaborado, a questão que, no fundo, importa decidir é a de saber se o Tribunal não devia ter alterado a decisão inicialmente proferida no sentido de notificar o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social para efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cfr. art. 930º-C do CPC) (Dispositivo legal entretanto revogado, mas cujo regime foi acolhido, no essencial, nos arts. 864º e 865º do novo CPC). [...]
Cumpre decidir.

A questão colocada no presente Recurso deve ser resolvida no âmbito de dois níveis diferentes de apreciação.

Por um lado, em sede de interpretação da transacção (e da respectiva sentença homologatória) e do âmbito da sua eficácia executória (exequibilidade do título dado à execução – art. 10º, nº 5 do CPC).

E, por outro lado, em sede de verificação dos requisitos do pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cf. art. 930º-C do CPC).

Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, em qualquer um destes dois níveis de apreciação, não se pode reconhecer ao Recorrente qualquer razão. [...]
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Uma vez esclarecidas estas regras interpretativas, importa, então, proceder à interpretação do clausulado da transacção estabelecida entre as partes,

Tratando-se de um documento escrito, a interpretação deve, pois, começar com a interpretação do texto do acordo que foi subscrito pelas partes.

Ora, dessa análise interpretativa é fácil constatar que, da transacção estabelecida entre as partes, não decorre para o Recorrido, Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, qualquer obrigação, que possa determinar a notificação ordenada pelo Tribunal Recorrido.

Na verdade, procurando no texto do acordo, não se logra encontrar nele qualquer elemento interpretativo textual que permita acolher, no seu âmbito, a interpretação defendida pelo Recorrente.

Com efeito, do texto das cláusulas atrás transcritas apenas decorrem obrigações para a executada Marta (…).

Assim, decorre da transacção estabelecida que o exequente e a executada limitaram-se a acordar:

- “o diferimento da desocupação do imóvel” em causa nos autos, até 31 de Dezembro de 2010, “data em que a executada se obriga a entregar o imóvel ao exequente ou a quem legalmente o representar livre e devoluto de pessoas e bens, com excepção dos móveis que pertencem ao arrendado”.

- e que “ as partes acordam que o valor locativo do imóvel em questão é correspondente ao valor da renda fixada, ou seja €250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, valor este que a executada reconhece (em) estar em divida, desde Março de 2010 e ser devido até 31 de Dezembro de 2010, data da entrega do imóvel no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), quantia essa que a executada se compromete a pagar até ao dia 31 de Dezembro de 2010, data da entrega do imóvel”- ponto III da transacção.

Ou seja, decorre da transacção estabelecida que a executada e o exequente acordaram que a primeira, para além do pagamento de rendas relativas a período anterior, realizaria também o pagamento das “rendas” devidas no alegado período de diferimento acordado, isto é, até 31 de Dezembro de 2010.

Não há, assim, dúvidas que da transacção estabelecida não ficou estabelecida qualquer obrigação para o Recorrido, Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social,

Ora, se isto é assim, não pode também defender-se que essas obrigações possam resultar da sentença que veio a homologar a referida transacção estabelecida entre as partes.

Na verdade, nestes casos, “… a sentença homologatória incorpora, então, as cláusulas do contrato de transacção, como que delas se apropriando, e nessa medida impondo às partes a vinculação ao respectivo cumprimento.

Como se escreveu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2004 (Proc. 03B4074 ITIJ), a sentença homologatória, “que inicialmente arranca da transacção lavrada no processo (…), acaba assim por ganhar ou adquirir, pelo princípio da absorção, valência a se.

Tal sentença não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transacção, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. E, uma vez transitada em julgado, como que corta, e definitivamente, o cordão umbilical que a ligava à transacção de que nascera.

No caso, não vem arguido qualquer vício do contrato de transacção que não seja a insuficiência de forma, nem posta em causa a validade e efeitos da sentença homologatória transitada em julgado” [...] - cf. artºs. 290º e 291º do CPC (nem isso constitui o objecto do presente litígio).

Assim sendo, entende-se que a transacção e a sentença homologatória que sobre ela for proferida poderão constituir título válido e suficiente para, com fundamento nela, serem executadas qualquer uma das obrigações que dela decorram.

Sucede que, no caso concreto, contrariamente ao defendido pelo Recorrente, não decorre do respectivo teor – conforme se julga já ter demonstrado – qualquer obrigação, que tenha ficado estabelecida, que recaia sobre o aqui Recorrido.

Nesta conformidade, fica inevitavelmente afastada a hipótese de a decisão proferida, que ordenou a notificação do Recorrido, ter tido por fundamento a sentença homologatória da transacção, já que desta, como já por mais de uma vez referimos, não decorre a obrigação que constitui o objecto daquela decisão – o que significa que, por esta via, a decisão homologatória proferida não constituía título exequível susceptível de ser dado à execução. [...]

Ora, como já vimos, tendo em conta o teor da transacção aqui estabelecida entre as partes, fica claro que, nem mesmo de uma forma implícita, resulta da mesma, que o aqui Recorrido tenha sido condenado em qualquer prestação patrimonial, nomeadamente, naquela que o Tribunal Recorrido (inicialmente) (e o Recorrente) lhe pretendia(m) imputar - obrigação do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de efectuar o pagamento da quantia correspondente às rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento (art. 930º-C do CPC).

Com efeito, e contrariamente ao defendido pelo Recorrente, além dessa obrigação não ter ficado estabelecida na transacção (nem na sentença que a homologou), também não se vislumbra que o Tribunal Recorrido, ao homologar a transacção, se tenha pronunciado sobre os requisitos de que dependeria a intervenção do Recorrido (como já se referiu, o Tribunal ao fazê-lo, não conheceu “do mérito da causa”). Daí que também não se possa aceitar a afirmação do Recorrente de que tal obrigação constará expressamente na transacção (ou seja, que deve ser o “Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, a pagar ao Exequente, pelo menos o montante de € 3.000,00 (três mil euros), correspondente aos meses do diferimento da desocupação).

Improcede, pois, esta argumentação.

Aqui chegados, importa verificar se tal obrigação poderá decorrer do segundo nível de apreciação atrás enunciado.

Como se referiu, este segundo nível contenderia com a eventual afirmação da obrigação que alegadamente seria imposta ao Recorrido, por via da verificação dos requisitos do pedido de diferimento da desocupação do imóvel arrendado (cf. art. 930º-C do CPC).

Como é sabido, nos termos deste dispositivo legal (nº 1 e 2), no caso de imóvel arrendado para habitação, o executado, dentro do prazo de oposição à execução, podia requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, desde que alegasse algum dos fundamentos aí previstos (interessando-nos só a al. b)):

“(...) b) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do executado, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego ou de rendimento social de inserção”.

Em tal hipótese, caberia ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social indemnizar o exequente pelas rendas não pagas, acrescidas de juros de mora, ficando sub-rogado nos direitos daquele, devendo a decisão ser-lhe oficiosamente comunicada (n.º 3 do mesmo artigo) [...].

Mas, para tanto, será necessário que seja formulado o correspondente pedido de diferimento da desocupação, sejam apresentadas provas da verificação dos respectivos requisitos e sobre ele incida uma decisão judicial que julgue os pressupostos de que depende o diferimento da desocupação verificados.

Trata-se de decisão que o Tribunal tem de proferir de acordo com um juízo de “prudente arbítrio”, depois de analisados os critérios indicados no citado artigo 930º-C do CPC.

Com efeito, o legislador impõe, nestas situações, que o julgador, perante as provas juntas ao processo - e que devem ser correlacionadas com as circunstâncias mencionadas no n.º 2, alínea b) daquele dispositivo - proceda à respectiva análise, de forma a concluir pela verificação de razões sociais imperiosas que permitiriam o diferimento da desocupação do locado.

Sucede que, no caso concreto, nada disto se verifica.

Com efeito, o diferimento da desocupação ficou estabelecido por transacção das partes (e não por decisão judicial).

Nessa transacção, contrariamente ao que decorreria do regime legal invocado, ficou mesmo estabelecido que, durante o período de diferimento da desocupação, o pagamento das rendas ficava a cargo da executada.

Além disso, como bem intuiu o Tribunal Recorrido, nunca poderiam as partes estabelecer em termos de transacção, sem intervenção do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, que era esta a entidade que ficaria responsável pelo pagamento daquelas rendas (sem que precedentemente se julgassem verificados os respectivos pressupostos de reconhecimento do pedido formulado).

Aliás, tal obrigação nunca poderia ficar estabelecida por transacção, uma vez que, como decorre do exposto, o seu reconhecimento depende de decisão judicial, onde se reconheça a verificação dos pressupostos legais expressamente previstos no art. 930-C do CPC.

Tal decorre, também, do facto de se tratar de prestações sociais públicas indisponíveis ao eventual acordo das partes, pelo que tal pretensão, a nosso ver, atenta aquela natureza, só poderá ser reconhecida se os aludidos pressupostos forem provados – o que, no caso concreto, obviamente, tendo em conta a transacção estabelecida não ocorreu (a celebração da transacção teve por efeito justamente a desnecessidade de discutir aqueles pressupostos que se mantêm, assim, e aliás, controvertidos – até porque foram expressamente impugnados na contestação).

Nesta conformidade, também por esta via não se pode reconhecer a pretensão do Recorrente, uma vez que, como se referiu, da transacção (e da sentença que a homologou) apenas resulta a obrigação de a executada pagar tais rendas; e, por outro lado, não estava na disponibilidade das partes decidir no âmbito da transacção estabelecida, a imputação de responsabilidades a um terceiro, o identificado Fundo, ainda que tal pudesse decorrer da aplicação do art. 930º-C do CPC (actual, art. 864º do NCPC), uma vez que se verificassem (provassem) os respectivos pressupostos legais.

Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, julga-se totalmente improcedente o Recurso interposto, exactamente com os mesmos fundamentos aduzidos pelo Tribunal Recorrido."

[MTS]