"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/07/2019

Jurisprudência 2019 (55)


Prescrição presuntiva;
ónus da prova

 
I. O sumário de RE 28/2/2019 (110356/17.4YIPRT.E1) é o seguinte:

1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão, como flui do art.º 313.º do C. Civil.

2. Nos termos do art.º 314.º do C. Civil, essa confissão poder expressa ou tácita: a primeira consiste em o devedor declarar que não pagou; a segunda deduz-se de certos comportamentos que o devedor tome em juízo: recusar-se a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar atos incompatíveis com a prescrição.

3. Invocando o réu a prescrição presuntiva, inverte-se o ónus da prova, competindo ao autor ilidir a presunção, por confissão do devedor, de que o pagamento da dívida não ocorreu – art.º 344.º/1 do C. Civil.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A [autora] recorrente discorda da matéria de facto que foi dada como não provada, pretendendo que se considere provado que “O Réu não procedeu ao pagamento da quantia referida no ponto 3”, tendo em conta os depoimentos de Joaquim …, que confirmou saber apenas o que estava na ata de tomada de posse, mas que tudo o que se paga tem de ter obrigatoriamente recibo, e o que não está pago o réu não tem o recibo; de Telma …, a qual referiu que quando tomaram posse não tinham conhecimento nem de dívida nem de fatura, pelo que a consideraram paga por não terem esse conhecimento; e Vera …, que disse expressamente que relativamente a estas faturas e estes fornecimentos não tem conhecimento nenhum.

Porém, tal pretensão não pode ser atendida.

Na verdade, importa atender que na distribuição do ónus da prova subjetivo, àquele que invoque um direito compete fazer a prova dos factos constitutivos desse direito, competindo à parte contrária a invocação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, sendo que em caso de dúvida os factos devem ser considerados constitutivos – art.º 342.º do C. Civil.

Decorrentemente, para fazer valer o seu direito de crédito, referente ao fornecimento das refeições ao réu, compete ao Autor, enquanto credor, alegar e provar como factos constitutivos do seu direito de crédito, a existência do contrato de venda das refeições mencionadas nas faturas e a sua entrega ao réu, bem como o prazo acordado para o seu pagamento ( art.º 342.º/1 do C. Civil).

Ao Réu competia, enquanto devedor, a prova dos factos modificativos, impeditivos ou extintivos desse direito de crédito, mais concretamente o pagamento dessas refeições - art.º 342, n.º2, do C. Civil.

Todavia, o réu, na sua oposição, invocou a prescrição presuntiva de cumprimento, nos termos dos art.ºs 316.º e 317.º, alegando que a sua razão de ser “ é a de proteger o devedor contra a dificuldade da prova do pagamento e tem em vista as dívidas que, de acordo com as regras da experiência comum, se pagam em curtos prazos, sem que o devedor exija documento de quitação (…)” – cf. art.º 20.º da oposição.

E mais alegou que essa dívida teria sido paga, porque não tinham conhecimento da sua existência quanto tomaram posse dos corpos dirigentes, nem estava na lista dos credores, pois a existir teria de constar dessa lista.

Ora, decorre do art.º 317.º, al. b) do C. Civil, que o crédito decorrente do fornecimento das refeições em causa prescreve no prazo de dois anos.

Este preceito legal reporta-se à prescrição presuntiva do pagamento do crédito, ou seja, o devedor beneficia da presunção do cumprimento, no caso, do pagamento dos bens fornecidos e descritos nas duas faturas em causa (art.º 312.º do C. C).

E flui expressamente do art.º 313.º que “A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão”.

E acrescenta o art.º 314.º, sob a epígrafe “Confissão tácita” que “Considera-se confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

E beneficiando o réu de presunção legal de cumprimento, inverte-se o ónus da prova, competindo ao autor demonstrar a existência da dívida, isto é, ilidir essa presunção mediante a prova, por confissão do devedor, de que esse cumprimento não ocorreu ( cf. Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 12.ª edição, pág. 1026. [...]

Ora, a respeito da não demostração, por banda do autor, do não pagamento da dívida, ilidindo a presunção de cumprimento, exarou-se na decisão recorrida:

No que respeita à factualidade dada como não provada, constante do ponto 1., relativamente à falta de pagamento do preço, por parte do Réu, entendeu-a dessa forma o Tribunal por considerar que não realizou o Autor a prova de tal falta, pela única forma possível, confissão do devedor.

De facto, tendo prestado depoimento de parte Joaquim …, Telma … e Vera …, inexistiram por parte destes representantes do Réu qualquer admissão do não pagamento, ao Autor, das quantias em dívida. 

Efetivamente, não só inexistiu uma confissão expressa, como não se verificou uma recusa em depor ou, tão pouco, foi alegada factualidade incompatível com a presunção de pagamento”.

Para daí se concluir:

“Compulsados os autos, verifica-se que resultou demonstrado a prestação dos serviços parte do Autor, correspondentes aos montantes peticionados e cuja prova a si competia, atenta a falta de impugnação do Réu. 

No entanto, e como supra referido, cabia ao Autor provar o não pagamento, pelo Réu, das quantias peticionadas, estabelecendo os artigos 313.º e 314.º as formas de iludir a presunção de prescrição, estabelecida no artigo 312.º, todos do Código Civil. 

Não ocorreu, não caso em apreço, confissão do Réu, seja expressa ou tácita, pelo que, não se tendo provado a falta de pagamento das referidas quantias, sendo tal pagamento presumido pelo funcionamento da prescrição, terá necessariamente de improceder a presente ação, por funcionamento da prescrição”.

Assim, não podemos de deixar de acompanhar este raciocínio, face ao citado regime jurídico da prescrição presuntiva, pois o autor não ilidiu essa presunção de cumprimento, pelas únicas formas legalmente admissíveis (confissão), sendo que a prescrição foi invocada pelo réu na sua contestação, afirmando ter sido efetuado o pagamento (art.º 19.º da contestação).

Na realidade, sendo o réu uma pessoa coletiva, o seu representante afirmou quando tomou posse a nova direção e a cessante prestou contas e deu a conhecer as dívidas existentes, não constavam as do autor e que tais faturas terão sido pagas por não constarem do passivo e lista de credores, pois se assim não fosse teriam de constar da lista de credores ( artigos 18.º, 19.º e 21.º). 

Perante estas afirmações, não pode suscitar dúvidas que o réu invocou claramente esse pagamento. 

E como se reafirma no Acórdão do STJ de 22/02/2004, CJ/STJ, 2004, T-II, pág. 41, “Para poder beneficiar de prescrição presuntiva, o réu não poderá negar os factos constitutivos do direito de crédito contra ele arguido. Para poder beneficiar da invocada prescrição presuntiva, o demandado terá de afirmar claramente que o pagamento reclamado já foi efetivamente feito. Essa afirmação, por conseguinte, não pode considerar-se necessariamente implícita na simples invocação da prescrição”.

Resumindo, não ocorrendo confissão judicial expressa ou tácita, por banda do réu, de não ter sido pago o crédito reclamado, pois não se recusou a depor, ou a prestar juramento, nem praticou em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento, não pode dar-se como assente esse não pagamento."

[MTS]