Litisconsórcio passivo;
revelia inoperante*
1. O sumário de RP 26/2/2019 (172/18.8T8OVR-A.P1) é o seguinte:
I - Quando, havendo vários réus, somente um deles contestar, os factos impugnados pelo réu contestante consideram-se impugnados a favor dos demais qualquer que seja a sorte da ação em relação ao contestante.
II - A situação de revelia e os seus efitos aferem-se à data da contestação e perduram até à decisão final do processo, razão pela qual fica vedado o desentranhamento da contestação, ainda que sob requerimento do seu apresentante.
III - Se o autor desiste do pedido que formulou contra o réu contestante e ele é, por isso, absolvido do pedido, a situação de revelia não operante do réu não contestante subsiste, tendo o autor de provar, em sede de audiência de julgamento, os factos que lhe imputa.
IV - Não é admissível a homologação da desistência do pedido sob condição de desentranhamento da contestação apresentada pelo réu contestante, pois, constituindo a desistência um ato jurídico unilateral, ele é incondicionável, viciado por nulidade.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Estatui o artigo 567º/1 do CPC que se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor. É a denominada revelia operante ficta confessio, por efeito da qual são considerados confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial. Há, porém, exceções a esta previsão legal, como sucede, no que ao caso importa, quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar [artigo 568º, a), do CPC], apelidada de revelia inoperante, a significar que, não obstante o réu, regularmente citado, não ter apresentado contestação, não se consideram confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial e que o contestante ou contestantes tenham impugnado, o que significa que o réu não contestante aproveita da impugnação dos réus contestantes.
Como vemos, os Autores demandaram as duas companhias de seguro para obtenção de indemnização pelos danos sofridos em consequência do furto de que a sua casa de habitação foi alvo. Para tanto invocaram, relativamente à Ré D... o contrato de seguro, do ramo multi-riscos/habitação, titulado pela apólice n.º ..........., e quanto à Ré E... o contrato de seguro de habitação “E1...”, titulado pela apólice n.º .../......../..., sendo que ambas as apólices têm como local de risco a casa de habitação dos Autores, sita na Rua ..., n.º ..., ..., Ovar. Donde deriva que os Autores vieram exercitar, na mesma ação, a responsabilidade contratual das demandadas, porque ambos os contratos de seguro contemplam a cobertura de furto na sua residência e cobrem os prejuízos por eles sofridos. Trata-se de uma situação de litisconsórcio voluntário passivo, porque a relação material controvertida, embora reconduzida a um pedido único, respeita às duas demandadas (artigo 32º/1 do CPC). E a regra, em processo civil, é a do litisconsórcio voluntário, pois se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal nesse caso, conhecer apenas da respetiva quota parte do interessado ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade (artigo 32º/1 do CPC). É certo que o litisconsórcio exige uma pluralidade de sujeitos e também, segundo uns, uma única relação jurídica material (artigo 32º do CPC) e, segundo outros, uma unidade de pedidos (artigo 36º do CPC), neste ponto residindo o critério de distinção da figura jurídica da coligação, pese embora a lei adjetiva pareça usar indistintamente estes dois critérios.
No caso, não obstante a dedução de um pedido único, não era necessária a demanda das duas seguradoras, pois admite-se «a possibilidade de, nas relações plurais, a acção ser instaurada apenas por algum ou alguns dos seus titulares, ou contra algum ou alguns deles. Essencial é que a decisão a proferir em tais circunstâncias possa regular definitivamente as pretensões formuladas pelas partes» [Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 117º, pág. 383].
Revisitada a situação em causa, ambas as Rés foram regularmente citadas e apenas a Ré E... apresentou contestação, impugnando especificadamente muitos dos factos alegados na petição inicial. Já a Ré D... não contestou. Ora, a opção dos Autores por esta via de demanda única transporta a convocação das regras processuais que especificámos quanto ao aproveitamento da contestação do impugnante pelo réu revel, a denunciar que a Ré D..., apesar de não ter contestado, aproveita da impugnação efetuada pela Ré E....
Só que a Ré contestante requereu o desentranhamento da sua contestação e a Ré não contestante opôs-se a que tal sucedesse, por pretender aproveitar da impugnação feita pela Ré E..., naturalmente pretendendo gozar da eficácia impugnatória relativamente aos factos do seu interesse. Regra de que beneficia o Réu não contestante, quer se trate de litisconsórcio necessário, quer de litisconsórcio voluntário [Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª ed., pág. 12]. O mesmo é dizer que não se apaga globalmente o efeito da revelia em relação ao demandado que não contestou; apenas a afasta em relação aos factos que o contestante impugnar e, quanto aos demais, considerar-se-ão confessados os factos articulados pelo autor. Resolução legal que encontra justificação na intenção de afastar a solução chocante de os mesmos factos se terem, na mesma ação, como provados em relação a um dos réus e não provados em relação a outro, mas ainda o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos [Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 348].
Aqui chegados, cremos que não assiste ao Réu contestante o direito a ver desentranhada a sua contestação, porque o Réu não contestante aproveita da sua impugnação qualquer que seja a sorte da ação em relação ao contestante. Isto é, ainda que a ação venha a improceder, por qualquer razão que beneficie apenas o contestante, os factos por si impugnados permanecem controvertidos e a impugnação aproveita ao Réu não contestante. Doutro modo, colocar-se-ia em crise o princípio da confiança, pelo que a impugnação dos factos permanece válida não obstante a homologação da desistência do pedido, ou seja, os factos alegados em sede de petição inicial, uma vez impugnados, não podem, mais tarde, considerar-se confessados, se a ação veio, por qualquer motivo, a ser julgada improcedente contra o réu contestante. A impugnação dos factos feita pelo Réu contestante é como se tivesse sido efetuado pelos demais réus, na medida em que estes tiram proveito da contestação apresentada, relativamente aos factos que o contestante impugnar [In www.dgsi.pt: Acs. RC de 10/03/2009, processo 517/08.9TBCBR.C1; RP de 21/09/2010, processo 474/04.0TBOAZ-I.P1 (embora tirados no domínio do CPC revogado, é idêntica a redação do artigo 568º, a), do atual regime adjetivo)].
Neste sentido a unânime decisão da jurisprudência, sempre defendendo que, em caso de pluralidade de réus, contestando um dos demandados, a ineficácia da revelia relativamente aos factos por este impugnados deverá subsistir, ainda que a instância venha a extinguir-se, relativamente ao único réu contestante, em consequência da homologação de desistência do pedido por parte do autor [In www.dgsi.pt: Acs. RC de 16/09/2014, processo nº 3495/10.0TBLRA.C1; 07-10-2014, processo 257058/11.5YIPRT.C1]. Importa, portanto, revogar o ordenado desentranhamento da contestação e substituir o despacho proferido pelo indeferimento desse desentranhamento.
Esta solução é também mobilizada pelo princípio geral da segurança jurídica, no âmbito do qual os indivíduos têm o direito de poder confiar que aos seus atos se ligam os efeitos jurídicos previstos no ordenamento jurídico e também pela ponderação concreta dos interesses em jogo, desde logo, porque não vislumbramos que resulte para os Autores qualquer agravamento sensível da sua posição processual pelo facto de ser inoperante a revelia da Ré não contestante [Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7.ª ed., pág. 258]. Ao instaurarem a ação não poderiam os demandantes deixar de contar com o ónus da prova que sobre eles impende quanto à demonstração dos factos constitutivos do direito a que se arrogam."
*3. [Comentário] A RP decidiu bem. Depois de o acto de contestação por um dos réus ter produzido efeitos em relação ao réu não contestante através do regime da revelia inoperante (art. 568.º, al. a), CPC), esse acto deixou de poder ser revogado pelo réu contestante.
Note-se também que não há nenhuma incompatibilidade entre a desistência do pedido relativamente ao réu contestante e a permanência da contestação deste réu no processo.