"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/07/2019

Jurisprudência 2019 (60)


Prova documental; junção de documentos;
economia processual


I. O sumário de STJ 7/3/2019 (32063/15.9T8LSB.L1.S1) é o seguinte:

1. Os documentos demonstrativos dos factos alegados devem ser juntos, em princípio, com os respetivos articulados, sendo ainda admitida a sua junção até 20 dias antes da audiência final (art. 423º, nº 2, do CPC).

2. Fora do condicionalismo previsto no art. 651º do CPC, a fase de recurso de apelação não é adequada à junção de documentos, sem embargo de a Relação, mesmo oficiosamente, ordenar a produção de novos meios de prova perante fundada dúvida sobre a prova produzida (art. 662º, nº 2, al. b)).

3. Em ações sustentadas na ocorrência de factos sujeitos a registo, como ocorre com a ação declarativa fundada na caducidade do arrendamento celebrado pelo usufrutuário entretanto falecido, a falta de junção do documento deve determinar a prolação de despacho de convite (art. 591º, nº 3, do CPC).

4. Não tendo sido proferido este despacho e mantendo-se a falta da certidão de óbito da usufrutuária, esta pode ser suprida mediante intervenção oficiosa do tribunal, ao abrigo do princípio do inquisitório (arts. 411º e 436º do CPC).

5. Julgada procedente a ação, apesar de não ter sido junta a certidão de óbito da usufrutuária, nem ter sido inserido na sentença esse facto, a Relação, no âmbito do recurso de apelação interposto pelo réu, deveria, em princípio, determinar a ampliação da matéria de facto (art. 662º, nº 2, al. c), do CPC).

6. Porém, tendo sido junta pelo A. a certidão de óbito, ainda que fora do condicionalismo previsto no art. 651º do CPC, nada obsta a que a Relação atenda desde logo ao facto que por essa via se encontra documentalmente demonstrado, tendo em conta quer os poderes que detém como tribunal de instância, quer o princípio da economia processual, assim obviando à desnecessária remessa dos autos à 1ª instância para o fim referido em 5.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Insurge-se a 1ª R. unicamente contra a opção da Relação de aditar à matéria de facto provada que “BB, usufrutuária do prédio descrito no art. 1º da petição inicial, faleceu em 15-1-15”, com base na certidão de óbito junta pelo A. com as contra-alegações do recurso de apelação. Considera que tal documento é intempestivo, nos termos do art. 651º do CPC, e que, por isso, não poderia ser considerado pela Relação para aquele efeito. [...]

2. Começaremos por dizer que não é inteiramente líquido que, em situações como a presente, seja indispensável a junção de certidão de óbito para se considerar verificado o facto alegado.

Posto que o óbito, como facto sujeito a registo, careça, em regra, de prova documental, mediante junção da respetiva certidão (art. 364º do CC), a jurisprudência não deixa de fazer uma distinção consoante a natureza da ação em que factos de semelhante natureza são invocados.

Inequivocamente que a demonstração documental de factos sujeitos a registo, maxime ao registo civil, deve ocorrer em ações de estado, como sejam as relacionadas com a investigação da paternidade, adoção ou divórcio. Pela sua importância para a constituição da lide, assim deve ocorrer também com o óbito do de cujus em processo de inventário. Já quando o facto seja invocado em ações cujo objeto seja exclusivamente patrimonial, como ocorre com as ações de despejo, será possível distinguir os casos em que tal facto é questionado pela contraparte - caso em que a junção documental será imprescindível – dos demais em que tal facto nem sequer é questionado, ou seja, em que o litígio está centrado em facto diverso daquele que a lei sujeita a registo.

São estas as razões pelas quais em ações intentadas contra ambos os cônjuges, em que é pedida a sua condenação solidária no pagamento de dívida contraída apenas por um deles, se tem considerado demonstrado o casamento (factos sujeito a registo) independentemente da apresentação da respetiva certidão, nos casos em que nenhum dos RR. questione tal facto, como se decidiu, por exemplo, nos Acs. do STJ de 15-3-05, CJ, t. I, p. 132 e de 12-1-06, 05B3227, em www.dgsi.pt.

Em tais situações, bem pode afirmar-se que o cerne do litígio não será propriamente a existência ou não de casamento, fonte da responsabilidade solidária, mas os motivos que levam o credor a alegar a comunicabilidade da dívida.

Tal argumentação pode também ser transposta para ações, como aquele de que emerge este recurso de revista, em que o proprietário de prédio arrendado pela usufrutuária pretende efetivar o despejo do arrendatário com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento por óbito do locatário que era usufrutuário.

Posto que tal pretensão seja sustentada na caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do art. 1051º, nº 1, al. c), do CC, é legítimo distinguir os casos em que esse facto é questionado pelo R., a carecer de demonstração documental, dos casos, como o presente, em que tal facto não é posto em causa, discutindo-se simplesmente se deve ou não deve ocorrer a desocupação do prédio arrendado com alegação de factos diversos daquele.

Com efeito, no caso concreto, a recorrente jamais questionou o óbito da usufrutuária, facto que, aliás, lhe foi referido em comunicações que o A. lhe remeteu, aceitando-o inequivocamente, limitando-se a impugnar, por outros motivos, o pedido de desocupação do prédio.

Terá sido a convergência das partes a esse respeito que levou o Mº Juiz de 1ª instância a considerar desnecessária a junção de prova documental, questão que apenas veio a ser suscitada em sede do recurso de apelação.

3. De todo o modo, ainda que outra – mais formal – fosse a solução a dar a tal questão, sempre o resultado redundaria na improcedência da revista.

Observemos:

Os documentos devem ser apresentados, em princípio, com os articulados em que são alegados factos, embora ainda possam ser juntos, sem outros entraves, até 20 dias antes da audiência final, sujeitando-se a parte apenas ao pagamento de uma multa (art. 423º, nº 2, do CPC).

O recurso de apelação não é, por regra, propício à junção de documentos, como o prescreve o art. 651º, apenas se admitindo quando se revele necessária em função do julgamento proferido em 1ª instância ou por motivos de superveniência objetiva ou subjetiva (arts. 651º e 425º do CPC).

Estas regras visam disciplinar a prática dos atos processuais e atenuar os efeitos negativos decorrentes de atuações ao nível da celeridade processual, embora devam ser concatenadas com o que se dispõe no art. 662º, nº 2, al. b), do CPC, que prevê que a própria Relação possa ordenar a produção de meios de prova, designadamente de prova documental, “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”.

Esta opção da Relação não está circunscrita a depoimentos, podendo incidir sobre quaisquer meios de prova, desde que se confronte com uma fundada dúvida sobre a prova realizada que seja suscetível de sanação mediante a produção de novos meios de prova. Em tal preceito estão abarcados quaisquer meios de prova, designadamente a prova pericial ou testemunhal, mas será seguramente na prova documental (dotada de maior objetividade) que se encontrarão com mais frequência potencialidades para sanar aquelas fundadas dúvidas sobre factos essenciais, as quais poderão ser superadas em certos casos mediante a requisição de documentos na disponibilidade de alguma das partes ou de terceiros (v.g. entidades públicas).

Como critério orientador para a aplicação deste preceito, cremos que a Relação deverá colocar-se num plano semelhante àquele em que se encontrava o juiz de 1ª instância aquando da realização da audiência de julgamento que precede a sentença. Então, atento o disposto no art. 411º do CPC relativo aos poderes de averiguação oficiosa, poderá a Relação suprir a dúvida fundada sobre certo facto essencial através da requisição, mesmo oficiosa, de algum documento que seja relevante para o caso. Ou seja, a respeito da “produção de novos meios de prova” em sede de recurso de apelação, a Relação deverá confrontar-se com a prova que foi ou deveria ter sido produzida na 1ª instância, orientando-se por um critério objetivo para superação de dúvidas que deveriam ser resolvidas, e não foram, pelo juiz de 1ª instância.

A situação dos autos não preenche, contudo, os requisitos da aplicação deste preceito. Não nos situamos propriamente no plano da verificação de alguma dúvida fundada sobre certo facto essencial, mas simplesmente em face da falta de junção de um documento que, numa determinada perspetiva, seria necessário para a prova de um facto singelo e ainda na falta de integração no leque dos factos provados da verificação do óbito da usufrutuária que o A. alegou.

O que se mostra verdadeiramente decisivo para rejeitar a argumentação da recorrente nesta revista encontra-se noutra área que nem sequer foi substancialmente afetada pela referida reforma do processo civil. Ainda assim, a alusão ao mecanismo que, ex novo, consta do art. 662º, nº 2, al. b), do CPC, em resultado da última reforma processual, serve, no entanto, para alertar para a amplificação dos poderes da Relação em sede de matéria de facto, reforçando a sua intervenção no que concerne ao apuramento da matéria de facto que melhor corresponda à verdade material. [...]

5. Cotejando os preceitos referidos com os princípios que lhes subjazem, com destaque para o da prevalência de razões de mérito e para o princípio da economia processual, fica mais clara a legitimidade que esteve subjacente à consideração pela Relação do óbito da usufrutuária a partir da certidão que, ainda que fora de tempo, foi junta pelo A. com as contra-alegações do precedente recurso de apelação.

Afinal, a alternativa que se colocava à Relação, em face da não integração no leque de factos provados do óbito da usufrutuária do prédio arrendado, passaria pela anulação da sentença para efeitos de se proceder à ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c), do CPC.

Seguindo um tal percurso sinuoso, atingir-se-ia, afinal, o mesmo resultado que, de forma direta e imediata, foi alcançado pela Relação, com poupança de tempo e de meios.

A opção da Relação de aproveitar o documento extemporaneamente junto pelo A. com as suas contra-alegações de recurso traduziu, na realidade, a assunção dos poderes que detém como tribunal de instância, fazendo jus à ideia cada vez mais presente de que os argumentos formais devem ceder perante os resultados que melhor conjuguem a verdade formal com a verdade material e que, além disso, aportem ao processo mais-valias no campo da celeridade e economia processual.

Era tudo isso que estava em causa quando a Relação, obviando à anulação da sentença, estabeleceu o imediato confronto com um documento que se revelava essencial para a decisão de mérito e que, afinal, já estava acessível, sem necessidade de intermediação do tribunal de 1ª instância.

Uma vez que a Relação, a partir de tal documento autêntico, aditou aos factos provados o óbito da usufrutuária que considerou imprescindível para a apreciação do litígio e que resultava de prova documental que já se mostrava acessível, não existe motivo algum para desconsiderar esse facto nem para modificar o resultado que foi declarado".
 
[MTS]