"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/07/2019

Jurisprudência 2019 (66)


Citação; nulidade;
convolação oficiosa


I. O sumário de RG 7/3/2019 (2305/17.2T8VNF-A.G1) é o seguinte:


1 - Ocorrendo erro no meio processual utilizado pela parte impõe-se a convolação, oficiosa, para os termos processuais adequados - cf. nº3, do art. 193º, do CPC.

2 - Tal convolação, com os limites naturais - pois que não pode operar caso existam obstáculos intransponíveis, como é o caso de ter já decorrido o prazo previsto para o ato convolado -, visa evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo, em prejuízo da justa composição dos litígios.

3 - Arguida na oposição à execução por embargos de executado a nulidade da citação efetuada na execução, o tribunal, oficiosamente, convola os embargos de executado em reclamação de nulidade (a tramitar na execução, onde foi praticado o ato), meio processual próprio.

4 - E cabe ao Tribunal
a quo apreciar e decidir a reclamação, fazendo as adequações formais que repute necessárias, nunca podendo, contudo, julgar “por erro no meio processual adequado, sem efeito o pedido de declaração de nulidade da citação para a execução”, não constituindo razões meramente formais limites naturais intransponíveis;

5 - Arguida a nulidade da citação num verdadeiro e próprio articulado de oposição à execução, por embargos de executado, com invocação de fundamentos para tal, a arguição da nulidade não pode ser apagada e esquecida, a pretexto da existência destes, sempre tendo de ser apreciada, para o que, na parte respetiva e na medida do necessário à correção do erro no meio processual empregue, se opera a referida convolação;

6 - Não se revelaria legítimo nem equitativo deixar de apreciar a reclamação, sempre podendo o Tribunal ultrapassar entraves formais e, para a tramitar, efetuar as necessárias adequações formais (como seja ordenar a extração de cópias do articulado em causa para serem juntas à execução e aí ser, tão só, apreciada a reclamação da nulidade da citação).

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Da convolação oficiosa da arguição da referida nulidade processual efetuada pela executada na oposição à execução por embargos de executado para o meio próprio - reclamação (na execução) - e dever da sua apreciação.

Pretende a apelante ver apreciada a questão, por si suscitada, da nulidade da citação por falta de envio dos documentos, legíveis, referentes às invocadas cessões de crédito, sendo que o que pretende é obter a anulação de todo o processado desde o requerimento executivo, isto é, o reconhecimento de uma nulidade, que prejudicou o exercício, por si, do contraditório e que inquina todo o processo, à exceção daquele requerimento, defendendo não existir impedimento de exercer o seu direito de arguir a nulidade em causa no próprio articulado de oposição à execução que apresentou.

O Tribunal a quo considerou que a nulidade da citação para a execução não configurando fundamento para a oposição à execução, nos termos dos arts. 729.º e 731.º do CPC, devia ter sido arguida através de reclamação a deduzir na própria execução, de acordo com art. 851.º do CPC, afirmando que seria possível convolar o articulado apresentado se a embargante se tivesse limitado a apresentar o pedido de declaração de nulidade da citação para a execução usando, erroneamente, o meio processual de embargos de executado, fazendo-se seguir o meio correto, mas que, no caso, uma vez que a embargante, para além da declaração de nulidade da citação, apresentou fundamentos e pedidos relativos a verdadeiro articulado de oposição à execução, não é possível efetuar tal convolação. Entende que, face aos pedidos apresentados pela embargante, se verifica uma situação de “cumulação de pedidos e ocorrendo erro na forma de processo quanto a um deles, a solução é considerar sem efeito o pedido para o qual o processo não é adequado, como se infere da solução dada a uma questão paralela no n.º 4 do art. 186.º, do C.P.C., onde, para o caso de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis se estabelece que «a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito, por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo». Reconhecendo, contudo, não se estar perante um caso de pedidos substancialmente incompatíveis, ainda assim, aplica aquela regra e determina o prosseguimento do processo para a apreciação dos fundamentos dos embargos, dando sem efeito o pedido e declaração de nulidade da citação, por erro no meio processual.

Vejamos o que expressamente estabelece a lei quanto à questão, o que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo sobre a mesma, a orientação a seguir no caso concreto e se a arguição da nulidade deve deixar de ser apreciada só pelo facto de ter sido incorporada no articulado de oposição à execução, em vez de seguir num requerimento, separado, de reclamação.

Na verdade, para o processo executivo, sendo o que temos em mãos, estatui, expressamente, o artigo 851.º, com a epígrafe “Anulação da execução, por falta ou nulidade de citação do executado” que:

“1 - Se a execução correr à revelia do executado e este não tiver sido citado, quando o deva ser, ou houver fundamento para declarar nula a citação, pode o executado invocar a nulidade da citação a todo o tempo.
 
2 - Sustados todos os termos da execução, conhece-se logo da reclamação e, caso seja julgada procedente, anula-se tudo o que na execução se tenha praticado.
 
3 - A reclamação pode ser feita mesmo depois de finda a execução.
 
4 - Se, após a venda, tiver decorrido o tempo necessário para a usucapião, o executado fica apenas com o direito de exigir do exequente, no caso de dolo ou de má-fé deste, a indemnização do prejuízo sofrido, se esse direito não tiver prescrito entretanto”.
[...]

No caso, a nulidade da citação foi arguida na própria oposição à execução, tempestivamente apresentada, sendo, por isso, também tempestiva tal arguição – nº2, do art. 191º.

Vejamos, agora, se, adjetivamente, a reclamação da nulidade da citação podia ser efetuada nos embargos de executado, integrando, até, um fundamento dos mesmos, como pretende a apelante, ou, não o devendo ser, sendo esse o meio processual errado para o pedido de declaração de nulidade da citação, se, ainda assim, não podia, uma vez apresentada tempestivamente, deixar de ser apreciada (com produção da prova oferecida) e decidida.

Na verdade, suscitou a executada a pertinente questão, para decisão pelo Tribunal a quo, após apreciar da verificação dos factos a ela relativos, que a demonstrarem-se poderão, na verdade, contender com o pleno exercício do contraditório.

As questões que se levantam são a de saber se os embargos de executado são o meio processual próprio para reclamar a nulidade da citação e, não o sendo, por haver meio especificamente consagrado, se, ainda assim, a arguição da nulidade da citação efetuada no próprio articulado de oposição, devia ter sido apreciada, como solicitado, e se dela pode conhecer este Tribunal. [...]

Apesar de não se poder considerar a arguição de nulidade da citação um fundamento de embargos de executado, pois que nenhuma defesa relativamente à execução está em causa, sequer questão prévia daqueles, pois consagrado está meio próprio para o exercício do direito de arguir a nulidade da citação - a reclamação -, a deduzir no processo onde foi praticado a ato - a execução -, entendemos que sempre o Tribunal a quo tinha de conhecer da arguida nulidade, nenhum sentido fazendo distinguir os casos em que, não obstante a existência de prejuízo para o exercício da contraditório, apenas é arguida a nulidade da citação daqueles em que, para além disso, é invocado fundamento de oposição à execução. Seria tratar de modo diferente o que é igual.

Com efeito, mesmo suscitada a questão nos embargos, meio processual errado, sempre o Tribunal poderia ordenar a junção de cópia do articulado em que foi arguida à execução por ser aí que devia ser tramitada a reclamação da arguida nulidade e apreciá-la.

O que não podia era passar por cima do pedido formulado, com o fundamento invocado, e dá-lo sem efeito, sem nada apreciar, afirmando dar tratamento diferente ao que é, essencialmente, igual, por razões meramente procedimentais, estando, até, o processo onde foi arguida a nulidade na dependência da execução, constituindo um apenso seu e, por isso, facilmente acessível ao julgador, para o que for necessário.

Tal decorre do que dispõe o nº 3 do artigo 193º, do CPC, que consagra “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”, podendo estabelecer-se relações entre este artigo e a adequação formal (art. 547º, do CPC) pois, “podendo o juiz adotar uma forma divergente da legal, é-lhe também possível limitar a adequação à forma legal preterida no âmbito do que, tidas em conta as especificidades do caso, lhe parecer razoável ([José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, 3ª Edição Coimbra Editora, pág 372])”. [...]

Tal preceito foi “introduzido pelo CPC de 2013, já não respeita ao erro na forma de processo, antes ao relacionado com o meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato. Em tais circunstâncias, em lugar do decretamento puro e simples da nulidade do ato, impõe-se ao juiz o dever de proceder à sua correção oficiosa, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados. O sentido desta previsão é claro: evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo” ([António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, Almedina, pág 233 - v. exemplos aí citados de erro no meio processual e de limites naturais à convolação imposta pelo referido preceito])

E, como decidiu o Tribunal da Relação do Porto de 5/3/2015 “Se o executado deduz embargos de executado, mas o que invoca é uma nulidade processual – falta de citação – os embargos devem ser convolados numa reclamação por nulidade (art. 193.º, nº. 3, do CPC), se os embargos tiverem sido intentados no prazo da reclamação” ([Ac. de 5/3/2015, processo 3788/13.5YYPRT-A.P1 [...]]).

Cita o referido Acórdão Miguel Teixeira de Sousa, em comentário a um Ac. do TRE, na entrada de 08/02/2015 no blog do IPPCsob nulidade da citação; convolação de meio processual, que diz “atendendo a que o objecto do recurso era a nulidade da citação do requerido e que, segundo parece, a RE entende que o requerido, em vez de ter interposto o recurso, devia ter arguido a nulidade da citação depois de ter sido notificado da sentença que decretou a providência cautelar, verifica-se um erro no meio processual utilizado pelo requerido. O meio processual escolhido pelo requerido para invocar a nulidade da sua citação não é o adequado: devia ter sido a reclamação contra a nulidade, não a apelação interposta. Mas se assim é, então o que a RE deveria ter feito era analisar a aplicação ao caso sub iudice do (novo) art. 193/3 do CPC” [...].

Ora, na situação em que a executada deduz embargos de executado, com determinados fundamentos, e aí invoca, também, nulidade da citação, não se mostra legítimo, nem proporcional e equitativo, deixar de apreciar a nulidade, sempre podendo o Tribunal ultrapassar entraves formais e tramitar a reclamação deduzida, efetuar as necessárias adequações formais, como ordenar a extração de cópias do articulado em causa para serem juntas à execução e aí ser, tão só, apreciada a arguição da nulidade da citação, considerando convolado tal pedido de declaração de nulidade da citação em reclamação.

Assim, mesmo sendo invocados nos embargos de executado fundamentos de oposição à execução, nunca a arguida nulidade processual podia ser dada sem efeito e ficar por apreciar, como conclui a apelante na conclusão VI, que procede."

[MTS]