"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/07/2019

Jurisprudência 2019 (51)


Impugnação pauliana;
título executivo*
 

1. O sumário de RG 21/2/2019 (5588/15.9T8GMR-A.G2) é o seguinte:

I. A sentença proferida no âmbito de uma acção de impugnação pauliana não constitui título executivo que permita fundar a instauração de uma acção executiva para pagamento de quantia certa relativamente ao crédito do Autor, nela reconhecido, porque tal referência ao crédito destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel que o referido devedor havia doado ao filho.

II. Se tiver sido instaurada acção executiva fundada na sentença referida no ponto 1, devem os Embargos de executado, que tenham sido deduzidos com esse fundamento, ser julgados procedentes, por verificação da situação prevista na al. a) do art. 729º do CPC (inexistência ou inexequibilidade do título).

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do art. 10º, nº 5 do CPC toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

No caso concreto, o título da acção executiva é a sentença dada à execução que o exequente entendeu que teria natureza condenatória, e que poderia fundamentar a realização coactiva do seu direito de crédito (art. 703º, nº 1, al. a) do CPC).

Dispõe o art. 704º do CPC, na parte aqui aplicável, que a sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, o que se verifica logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou reclamação, nos termos dos artigos 615º e 616º do CPC (art. 628º).

Transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida passa a ter força obrigatória dentro do processo (art. 619º do CPC), constituindo a sentença caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (art. 621º do CPC).

Ora, fundando-se a execução em sentença, dispõe o art. 729º do CPC que a oposição só pode ter algum dos fundamentos que vêm concretamente especificados nas suas várias alíneas, entre os quais se conta a inexistência ou inexequibilidade do título (al. a)). [...]

Por outro lado, entende-se que o título é inexequível se a sentença não for condenatória, se não tiver transitado em julgado e ao recurso tiver sido fixado o efeito suspensivo, ou, tendo havido condenação genérica nos termos do art. 609º, nº 2 do CPC, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, não se tiver procedido a liquidação no processo declarativo (art. 704º do CPC). [...]

No fundo, e como refere Rui Pinto [In “Manual da acção executiva e do despejo”, págs. 401 e 402. No mesmo sentido, Marco Gonçalves, in “Lições de Processo civil executivo”, págs. 58 a 64] a inexequibilidade coincide com “a não verificação dos pressupostos dos artºs. 703º a 708º do CPC (…). Assim, “será inexequível a sentença que:

a. Não contenha uma ordem de prestação ou condenação;

b. Não esteja assinada pelo Juiz;

c. Esteja pendente de recurso com efeito suspensivo (artºs. 704º, nº 1 e 647º, nº2 a 4 do CPC)

d. Tenha sido revogada em recurso, ordinário ou extraordinário;

e. Sendo estrangeira não tenha sido revista e confirmada pela Relação (artºs. 978º, nº1 e 979º do CPC) ou não obedeça aos artºs. 38º e ss. Reg. (CE) 44/2011…”.

*

Aqui chegados, e revertendo para o caso concreto, constata-se que o título dado à execução é uma sentença proferida nos (presentes) autos de Impugnação pauliana em que se decidiu o seguinte:

“Condenar os 1ºs e 2°s Réus à restituição do identificado prédio na medida do interesse do Autor, podendo este executá-lo no património dos 2.ºs Réus para satisfação do seu referido crédito, mantendo-se, contudo, a hipoteca constituída por escritura pública de 22/1212003, referida em 11) dos factos provados (…)”.

Como já se referiu, de acordo com o art. 10º do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da respectiva acção. [...]

Ora, no caso concreto, como de uma forma lapidar referiu o Supremo Tribunal de Justiça (pronunciando-se sobre o anterior Recurso deduzido nos presentes autos), a sentença dada à execução não condenou ninguém no cumprimento de qualquer direito de crédito (pelo que, como decorre do exposto, é inexistente e/ou inexequível,porque “não contém uma ordem de prestação ou condenação” quanto ao alegado crédito exequendo).

Com efeito, como aí ficou dito (Pág. 9), “é patente que a sentença transitada em julgado – junta aos autos como título executivo – nada decidiu acerca de qualquer crédito, nem condenou ninguém no cumprimento do mesmo, posto que tal sentença foi proferida em sede de uma acção pauliana, em que o seu objecto é apenas a da reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante, embora na medida do interesse do Autor naquela acção.

Significa isto que a referida sentença, proferida em 15-07-2009, comprova que existiu uma dívida de € 42.547, 47, do falecido José (…) para com o ora Exequente/ Embargado José (…).

Nas esclarecedoras palavras de Menezes Leitão, «a impugnação pauliana consiste assim numa acção pessoal, que visa restituir ao credor, na medida do seu interesse, os bens com que ele contava para garantia do seu crédito. Nesse âmbito, a procedência da impugnação pauliana constitui um direito de crédito à restituição, que em relação ao adquirente tem por objecto os bens em espécie ou o seu valor, se estiver de má fé, ou o seu enriquecimento se estiver de boa fé. Nessa medida, a impugnação pauliana faz surgir uma pretensão à restituição do enriquecimento por desconsideração de património» (Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 2012- 33 edição, Almedina, pg. 88).

É de ter em atenção, contudo, que o termo restituição ou a expressão direito à restituição, como salienta Cura Mariano «não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios», isto é, «não significa reentrada dos bens alienados no património do devedor, mas tão-somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante» (Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2° edição, Almedina, pg. 242/3)

Em conclusão - ainda segundo o mesmo e distinto autor - «com a impugnação pauliana não se obtém a restauração do património do devedor, mas sim a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante» (idem, ibidem).

Por isso, na referida sentença da acção pauliana, após a declaração da ineficácia em relação ao Autor, na medida do valor do seu crédito de € 42.547,47 e juros de mora à taxa legal, a doação celebrada entre os aí 1ºs Réus e o 2º Réu marido, por escritura de 12 de Abril de 2001, relativa ao prédio urbano que se identifica, a única condenação proferida foi, como se impunha face à procedência da citada impugnação pauliana, a seguinte:

Condenar os 1ºs e 2°s Réus à restituição do identificado prédio na medida do interesse do Autor, podendo este executá-lo no património dos 2.ºs Réus para satisfação do seu referido crédito, mantendo-se, contudo, a hipoteca constituída por escritura pública de 22/1212003, referida em 11) dos factos provados (…).

É certo que a sentença da impugnação pauliana faz referência a um crédito do Autor no valor de € 42.547, 47, mas tal referência destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel que o referido devedor havia doado ao filho (…).

O título executivo não é, pois, um documento que sirva somente para comprovar a existência de um crédito do exequente ou reclamante, muito embora essa seja também uma das suas vertentes.

Por isso, não há que confundir documento comprovativo de um crédito com o título executivo para a cobrança judicial do mesmo, pois embora o título executivo também comprove tal crédito, só adquire executoriedade se possuir os requisitos legalmente previstos para tal efeito…”.

Trata-se de conclusão que aqui subscrevemos integramente, já que é inequívoco que a decisão proferida no âmbito de uma acção de impugnação pauliana não constitui título executivo que permita fundar a instauração da presente acção executiva para pagamento de quantia certa (artºs. 724º e ss. do CPC).

Procede, pois, o fundamento principal de oposição deduzido pelos Embargantes – inexistência e/ou inexequibilidade do título executivo – al. a) do art. 729º do CPC, como bem decidiu o Tribunal Recorrido, ficando prejudicadas todas as demais questões invocadas (já que, na sequência da procedência da oposição deduzida, a execução é julgada extinta).

Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, julga-se totalmente improcedente o Recurso interposto exactamente com o mesmo fundamento aduzido pelo Tribunal Recorrido."

*3. [Comentário] O decidido pela RG é aceitável, mas, salvo o devido respeito, com uma fundamentação totalmente diferente.

Em vez de -- como fez -- pedir apenas a impugnação pauliana, o autor poderia ter feito uma cumulação de pedidos (na modalidade de coligação passiva):

-- Um dos pedidos (dirigido apenas contra o devedor transmitente) seria o de reconhecimento do crédito e respectiva condenação do devedor na sua satisfação;

-- O outro pedido (dirigido contra o devedor transmitente e contra o adquirente) seria o de impugnação pauliana do acto de transmissão realizado pelo devedor.

Neste contexto, torna-se essencial verificar se se trata de uma verdadeira cumulação de pedidos ou de uma cumulação aparente de pedidos. Como se sabe, a distinção passa pelo seguinte:

-- Na verdadeira cumulação de pedidos, o valor da causa é determinado pela soma dos valores de cada um dos pedidos cumulados (art. 297.º, n.º 2, CPC);

-- Na cumulação aparente de pedidos, essa soma não se verifica, porque o valor económico de um dos pedidos não é distinto do valor económico do outro.

Posto isto, pode perguntar-se qual é a situação que se verifica na cumulação do pedido de apreciação do crédito e de condenação no seu cumprimento com o pedido de impugnação pauliana. A resposta é de que se trata de uma verdadeira cumulação de pedidos, dado que:

-- O pedido relativo ao crédito tem um valor próprio, determinado nos termos do art. 297.º, n.º 1, CPC;

-- O pedido relativo à impugnação pauliana tem igualmente um valor próprio, determinado segundo o disposto no art. 301.º, n.º 1, CPC.

Assim, dado que cada um dos pedidos tem o seu valor próprio, a procedência de um deles nada pode definir quanto ao outro. Portanto, a procedência do pedido de impugnação pauliana não deixa assente a existência do crédito, apesar de esta constituir um antecedente lógico necessário daquela impugnação.

MTS