"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2022

Indevida admissão de recurso de revista




[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2021 (122)


Processo de inventário;
tornas*


1. O sumário de RE 27/5/2021 (120/05.5TBMMN-B.E1) é o seguinte:

I – Nos termos do nº 3 do artigo 1378º do CPC, na versão subsequente à Reforma de 1995 (realizada pelo Decreto-Lei nº 329/95, de 12 de dezembro), podem os interessados a quem couber tornas, pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas.

II - Está aqui a criação de um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial em que o credor das tornas se limita a pedir, em simples requerimento, o que no nº 3 do art. 1378.º lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatórias das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito de nomear bens à penhora.

III – Pretendendo a interessada/recorrente o pagamento de tornas e não a adjudicação de bens, não podia o Tribunal proferir decisão a determinar que o critério a seguir fosse «o da adjudicação das verbas com valor superior à interessada e a adjudicação das verbas com valor inferior ao interessado/cabeça-de-casal, por forma a assegurar uma aproximação final ao valor correspondente aos respetivos quinhões. 


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o art. 1377º, nº 1, do CPC, na versão aqui considerada, que os «interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões ou reclamar o pagamento das tornas».

Mais se lê, no nº 2 e nº 3 do citado preceito, que, «[s]e algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados [interessados a quem hajam de caber tornas] é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas que lhe sejam adjudicados pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão», e podendo o licitante «escolher, de entre as verbas em que licitou as necessárias para preencher a sua quota».

Por sua vez, prescreve o nº 1 do art. 1378º que «[r]eclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que já de as pagar, para as depositar», acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que «[n]ão sendo efetuado o depósito, podem os requerentes pedir que das verbas destinadas ao devedor lhes sejam adjudicadas, pelo valor constante da informação prevista no artigo 1376.º, as que escolherem e sejam necessárias para preenchimento das suas quotas, contante que depositem imediatamente a importância das tornas que, por virtude da adjudicação, tenham de pagar. (…)».

E, nos termos do nº 3 do citado artigo 1378º, «[p]odem também os requerentes pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas».

No caso vertente foi este último o caminho seguido pela recorrente, que após ter sido notificada de que o interessado/cabeça-de-casal não havia efetuado o depósito das tornas, requereu que se procedesse no processo «à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas, nomeadamente pela venda da verba n.º 87, adjudicada ao devedor J…, por ser a verba que mais se aproxima do valor devido a título de tornas, ou seja € 187.883,06».

Escreve a este propósito J…[Lopes Cardoso] [Partilhas Judiciais, Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra – 1990, pp. 452-453]:

«Está aqui a criação de um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial.
 
Regra geral, o direito definido executa-se com base em título idóneo a esse fim (…), mediante formalismo próprio.

No caso considerado tudo é diferente, pois o credor das tornas limita-se a pedir, em simples requerimento, o que no nº 3 do art. 1378.º se lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatórias das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito de nomear bens à penhora.»

A esta luz, resulta algo incompreensível o despacho recorrido, que contra a vontade da recorrente e contra o direito que lhe é concedido e que foi exercido ao abrigo do mencionado art. 1378.º do CPC, mantendo embora o anteriormente determinado quanto à adjudicação a cada um dos interessados de metade dos bens não licitados, determinou que «o critério a seguir seja o da adjudicação das verbas com valor superior à interessada e a adjudicação das verbas com valor inferior ao interessado/cabeça-de-casal, por forma a assegurar uma aproximação final ao valor correspondente aos respectivos quinhões».

Ora, esta decisão, que veda à recorrente o seu direito legalmente previsto de reclamar o pagamento de tornas, olvida ainda que apenas a recorrente pode requerer a alteração do seu quinhão, em virtude do seu direito a receber tornas (cfr. art. 1377º, nº 1).

Ora, não sofre a menor contestação que a recorrente pretende o pagamento de tornas e não a adjudicação de bens, pois se pretendesse esta, tê-lo-ia dito quando foi notificada de que o interessado/cabeça-de-casal não havia depositado as tornas que havia de pagar.

Importa, assim, revogar o despacho recorrido, anulando-se os atos subsequentes que dele dependem, nomeadamente o novo mapa informativo elaborado em conformidade com o determinado nesse despacho, bem como a sentença homologatória da partilha, devendo elaborar-se nova sentença em conformidade com o mapa informativo de 18.11.2016, e transitada a mesma, proceder-se à venda dos bens adjudicados ao interessado/cabeça-de-casal até onde seja necessário para o pagamento das tornas devidas à recorrente, tal como esta oportunamente requereu."

3. [Comentário] O disposto no art. 1378.º, n.º 3, CPC/61 coincide com o estabelecido no art. 1122.º, n.º 2, CPC.

MTS


28/01/2022

Jurisprudência 2021 (121)


Divórcio; atribuição da casa de morada da família;
tribunal competente


1. O sumário de RE 27/5/2021 (2115/15.1T8FAR-C.E1) é o seguinte:

Ao abrigo do atual regime jurídico do processo de atribuição da casa de morada de família, o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigiosos (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001), e ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. FUNDAMENTAÇÃO
[...] II.2.

A única questão que cumpre apreciar consiste em saber se a presente ação de atribuição de casa de morada de família deveria ter sido intentada na conservatória do registo civil (como decidiu o tribunal recorrido) ou, ao invés, no tribunal, por apenso à ação de divórcio sem consentimento dos cônjuges. [...]

II.4.
Apreciação do objeto do recurso

A presente ação de atribuição da casa de morada foi intentada ao abrigo do artigo 1793.º do Código Civil, na decorrência da dissolução do vínculo matrimonial entre a recorrente e o recorrido, ocorrido no ano de 2016.

Pretende a autora/recorrente que seja constituída uma relação de arrendamento entre ela e o requerido/recorrido tendo por objeto um imóvel que é bem próprio do segundo.

A recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, o qual indeferiu liminarmente a petição inicial por considerar que, pelo menos de início, é a conservatória do registo civil a entidade competente para a ação atentas as suas competências previstas no D/L 272/2001, de 13/10.

Vejamos se lhe assiste razão.

Previamente se dirá que nos termos do artigo 1793.º do Código Civil o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, ainda que esta seja um bem próprio do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

Nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CPC, a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, exceto quando a lei determine o contrário. É a garantia do direito de ação, componente do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República.

Os tribunais não têm o monopólio da resolução dos conflitos. No particular domínio que nos ocupa, o D/L n.º 272/2001, de 13 de outubro, veio, designadamente:

(i) atribuir competência decisória exclusiva ao conservador de registo civil em matéria de separação e divórcio por mútuo consentimento (excetuando os casos de conversão de divórcio litigioso)[...]; e

(ii) operar a transferência de competência para as conservatórias de registo civil em determinados processos de jurisdição voluntária desde que se verifique ser a vontade das partes conciliável, e sem prejuízo da remessa para o tribunal quando haja oposição do requerido.

Com efeito, o D/L n.º 272/2001 contempla um procedimento perante o conservador de registo civil tendente à formação de acordo das partes, o qual é aplicável aos pedidos enunciados no n.º 1 do artigo 5.º (entre os quais a atribuição da casa de morada de família a um dos dois ex-cônjuges – cfr. alínea b)). Tal procedimento inicia-se com a apresentação de um pedido entregue na conservatória, fundamentado de facto e de direito, com indicação das provas e junção de prova documental (cfr. artigo 7.º), após o que se seguirá a citação do requerido para deduzir oposição, juntar e indicar provas (artigo 7.º, n.º 2); se for apresentada oposição, é marcada uma tentativa de conciliação (artigo 7.º, n.º 3) e se se frustrar o acordo, o processo é remetido ao tribunal judicial competente (artigo 8.º).

O procedimento previsto no artigo 5.º comporta, portanto, duas fases: a primeira, materialmente administrativa, desenrola-se na conservatória e visa a obtenção de um rápido consenso, seja por formação de acordo seja por revelia operante; a segunda, após a junção da oposição do requerido, não se conseguindo acordo na conservatória, com a remessa do processo para o tribunal, de natureza contenciosa, formalmente judicial – assim, Ac. STJ de 31.05.2011, processo n.º 2563/09.6TMPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.

O n.º 2 do citado artigo 5.º preceitua que:

«O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos da mesma ação judicial, ou constituam incidente ou dependência de ação pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil» [...].

Como conciliar este preceito com o regime previsto no Código de Processo Civil relativo à atribuição da casa de morada de família? E será que a última parte do referido preceito se aplica ainda que a ação de divórcio/separação esteja finda?

Quando o D/L n.º 272/2001 entrou em vigor (01.01.2002; cfr. artigo 22.º), a ação especial de atribuição da casa de morada de família estava regulada no artigo 1413.º do CPC, com a redação emergente do D/L n.º 329-A/95, e cujos n.ºs 1 e 4 tinham a seguinte redação:

«1- Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transferência do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano, deduzirá o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. (…)
«4 – Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou de separação litigiosos, o pedido é deduzido por apenso» [...]

Da conjugação do referido artigo 1413.º com o artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10 resultava que o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do artigo 1793.º do CC era necessariamente dependência da ação de ação de divórcio/separação, pendente ou finda, quando aquela fosse/tivesse sido litigiosa. Ou seja, a ação de atribuição da casa de morada de família tinha de correr no tribunal judicial, não se justificando, pois, que o processo se iniciasse na conservatória do registo civil com vista à obtenção de um acordo. O que, à luz da ratio do regime criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, bem se compreendia pois que nestes casos em que o divórcio havia sido litigioso, a grande improbabilidade de acordo quanto a matérias decorrentes da dissolução do vínculo matrimonial, justificava que o processo se iniciasse logo junto dos tribunais, a fim de evitar um procedimento inútil que a própria lei proíbe (cfr. artigo 130.º do CPC). Ao invés, nos casos em que o divórcio houvesse sido decretado na conservatória do registo civil – necessariamente divórcios por mútuo consentimento, nos termos previstos no artigo 12.º do D/L n.º 272/2001 – então o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos previstos no artigo 1793.º do CC, deveria iniciar-se na conservatória competente; efetivamente, se o divórcio/separação já hajam sido consensuais, a probabilidade de obtenção de um acordo entre as partes interessados em questões relacionadas com vida familiar justificava que os respetivos processos se iniciassem em instâncias que não os tribunais, privilegiando-se a celeridade, mas sem prejuízo, como supra assinalámos, da remessa do processo para os tribunais existindo oposição de qualquer interessado.

Não existia, portanto, qualquer colisão entre o referido artigo 1413.º do CPC e o artigo 5.º do D/L n.º 272/2001, de 13.10 na medida em que este último diploma não subtraiu à competência dos tribunais a apreciação dos pedidos de atribuição de casa de morada de família nos casos em que também pelos tribunais tivesse corrido a ação de divórcio/separação litigiosos – assim, Ac. RE de 20.10.2016, processo n.º 559/14.5T8TMR-A.E, relatora Maria João Sousa e Faro, consultável em www.dgsi.pt. Ou seja,

Abre-se aqui um parêntesis para discorrer sobre a ratio do D/L n.º 272/2001, na medida em que aquela constitui um importante subsídio para determinar o sentido do referido artigo 5.º, n.º 2. E essa ratio surge evidenciada no Preâmbulo daquele diploma legal, onde se lê: «importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciam verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efetivamente a uma reserva de intervenção judicial. Assim, aproxima-se a regulação de determinados interesses do seu titular, privilegiando-se o acordo como forma de solução e salvaguardando-se simultaneamente o acesso à via judicial nos casos em que não seja possível obter uma composição pelas próprias partes».

O atual artigo 990.º, n.º s 1 e 4, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Atribuição da casa de morada de família, prescreve que:

«1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito»
«4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793.º do Código Civil é deduzido por apenso àquelas ações» [...].

Confrontando o antigo artigo 1413.º do CPC com o atual artigo 990.º, verifica-se que a evolução legislativa do regime jurídico da ação de atribuição/alteração da casa de morada de família foi no sentido de alargamento da competência do tribunal. Com efeito, o atual artigo 990.º, n.º 4, do CPC para além de manter a competência do tribunal para conhecer dos pedidos de atribuição de casa de morada de família (e de alteração) quando o divórcio aí tenha sido decretado (e não apenas quando o processo aí estiver pendente) passou a abranger as situações em que os pedidos de atribuição da casa de morada de família surgem na decorrência de processos de divórcio (ou de separação) por mútuo consentimento, mas em que não existe consenso quanto à questão da atribuição da casa de morada de família, na medida em que suprimiu o adjetivo “litigioso” – assim, Ac. RE de 20.10.2016, supra citado.

A história evolutiva do regime jurídico conjugada com a própria ratio do sistema criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, lança luz sobre o sentido que deve ser atribuído ao artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10, preceito que foi invocado pelo tribunal recorrido para sustentar o indeferimento liminar da petição inicial; assim, e sempre numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001, como supra assinalámos), o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigioso (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.

No caso sub judice, o pedido de atribuição da casa de morada de família surge na decorrência de um processo de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges que foi decretado por sentença já transitada em julgado.

Por conseguinte e em face do exposto, decorre que bem andou a recorrente ao propor a presente ação no tribunal, por dependência da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Destarte, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que convoque os ex-cônjuges para a tentativa de conciliação prevista no artigo 990.º, n.º 2, do Código de Processo Civil."

[MTS]


27/01/2022

Bibliografia (1003)


-- Baur/Stürner/Bruns, Zwangsvollstreckungsrecht, 14.ª ed. (C. F. Müller: Heidelberg 2022)


Jurisprudência 2021 (120)


Advogado;
sigilo profissional


I. O sumário de RE 8/6/2021 (1400/19.8T9EVR-A.E1) é o seguinte:

1 - Tratando-se de documentos, o n.º 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede/proíbe a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.

2 - O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões.

3 - Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados.

4 - Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas».


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a questão suscitada e que há que decidir é a de saber se os documentos juntos pela queixosa, ora assistente, a fls. 25/34 e 84 dos autos principais e que constam da certidão que instrui o presente traslado, a fls. 11, 27, 36 e 75, não se encontram abrangidos pelo dever de sigilo profissional do advogado, que decorre do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados e se devem ser admitidos como meio de prova.

No despacho recorrido decidiu-se julgar nula aquela prova documental, por violação do art.º 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

A assistente/recorrente defende entendimento contrário, sustentando que os documentos em causa, concretamente, a missiva dirigida pela aqui denunciada à mandatária da assistente não se encontra abrangida pelo sigilo profissional, a que se reporta o artigo 92.º, do EOA e que o tribunal recorrido, com o escopo da descoberta da verdade material e por forma a ser cumprido o disposto no artigo 262º, do Cód. Proc. Penal, devia ter oficiado à Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital respetivo, por forma a lograr obter Parecer, sobre se o documento/carta sub judice se acha ou não a coberto do segredo de justiça.

Vejamos:

Como refere o Cons. Santos Cabral [In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 135º, pág. 494], «O segredo profissional define-se com a proibição de revelar factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional. Consubstancia-se o mesmo, em temos genéricos, na reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, em relação a factos que lhe incumbe oculta, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão. O segredo profissional é, assim, o atributo correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança (…)».

O segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua atividade profissional e na base de uma relação de confiança [Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Editora Rei dos Livro, 2008, pág. 961].

E é esse o caso da advocacia.

O segredo profissional do advogado está regulado no artigo 92º, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), na redação dada pela Lei 145/2015, de 9 de novembro [E também no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional da AO, pub. no DR IIª Série, de 25 de maio de 2006)], que dispõe:

«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.»

O advogado está, pois, obrigado a guardar segredo dos factos de que tenha tomado conhecimento ou de confidência que lhe tenha sido feita, no exercício da sua profissão e dos documentos nos quais esses factos possam estar contidos.

Como se refere no Acórdão do STJ de 15/02/2018 [Proferido no proc. n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi]:

«Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.»

Como decorre do disposto no artigo 92º do EOA e se refere no Ac. da RL de 29/04/2021 [Proferido no proc. n.º 439/16.0T8LRS-A.L1-2, acessível in www.dgsi.pt] «O dever de segredo profissional do advogado abarca, entre outras situações, os factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio e os factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo, sendo que o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.»

Tratando-se de documentos, vem sendo entendimento da jurisprudência das Relações, que o n.º 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede/proíbe a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo [Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 29/04/2018, proc. 868/17.1T8PRT-B.P1, Ac. da RE de 31/01/2019, proc. n.º 1929/15.7T8TMR.E1 e Ac. da RG de 14/11/2019, proc. n.º 568/17.2T8VRL.G1, disponíveis in www.dgsi.pt].

Assim, como se decidiu no Acórdão desta RE de 31/01/2019 [Proferido no proc. 1929/15.7T8TMR.E1], «nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável, e a revelação e utilização de factos de que o Mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.»

O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões [Este entendimento defendido por Orlando Guedes da Costa, in Direito Profissional do Advogado - Noções Elementares, Almedina, 8ª Edição, pg. 389 e por Rodrigo Santiago, in Revista da Ordem dos Advogados, 57, janeiro de 1997, pág. 237, vem sendo acolhido pela Ordem dos Advogados, em diversos pareceres, sobre o sigilo profissional, v.g., a título meramente exemplificativo, o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 39/2012, disponível no site da Ordem dos Advogados em www.oa.pt].

Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados [Nesta perspetiva, o dever de sigilo profissional tem subjacente um interesse objetivo, que decorre, não só a especifica relação pessoal e de confiança estabelecida entre o Advogado e o cliente, mas ainda os próprios factos].

Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas».

Delineados os termos gerais da questão e tendo presentes as considerações expendidas, importa reverter ao caso concreto:

Está em causa correspondência trocada entre a Exm.ª Senhora Advogada, Dr.ª (…), mandatária da queixosa, ora assistente, (…) e a ora denunciada (…) e, concretamente, a carta enviada pela denunciada à mesma Senhora Advogada, em resposta à carta que esta lhe dirigiu convocando-a para uma reunião no seu escritório, para tratar do Assunto: “Contrato de Trabalho / utilização de bens da sociedade em proveito de terceiros”.

O teor da aludida missiva enviada pela denunciada é o seguinte:

«Dr.ª, Srª (…)
Após a minha resposta ao meu seu pedido para reunir no seu escritório, recebi duas chamadas telefónicas do meu marido, gerente da empresa, a dizer-me que me ia tirar o telemóvel e o carro. Como sabe, e como me disseram na ACT onde apenas fui perguntar, para já, se tal podia acontecer, quer o telemóvel quer o carro são parte do meu salário há anos, como trabalhadora pelo que, não querendo ir à ACT colocar em causa a Empresa, e apresentar queixa sobre várias coisas que não são cumpridas, peço que junto dele lhe faça ver que não o pode fazer.
Também, como sabe, tal atuação contra mim, é contra uma sócia com uma elevada quota na empresa, e não é mais que uma forma de pressão devido a toda a violência física e psicológica dele sobre a minha pessoa e que peço-lhe, para que não seja conivente com esta situação que terá muito mais graves consequências, que o faça ver a razão.
Obrigado.
Permaneço ao dispor para qualquer esclarecimento adicional.
Com os meus melhores cumprimentos, atentamente.
(…)»

Invocando a falta da ora denunciada à reunião para que foi convocada, a Exm.ª Sr.ª Advogada, enviou, em 09/12/2019, uma carta registada à denunciada, interpelando-a para, no prazo de 24 horas, após a receção da carta e por forma a que a empresa mantivesse a prestação de serviços, devolver o veículo automóvel marca (…), modelo (…) e o telemóvel de serviços e informando a denunciada de «que a instrução supra provém, necessariamente, da gerência da sociedade m/ constituinte e que o não cumprimento da ordem dada, implicará, ademais, a actuação do poder disciplinar da entidade patronal».

E no dia 10/12/2019, a mesma Exm.ª Sr.ª Advogada, enviou à denunciada, um email, com o seguinte teor:

«Exm.ª Senhora
Atenta a postura assumida, o assunto em questão logrará ser resolvido em sede própria.
No demais de forma alguma revejo no seu e-mail factos de que tenha conhecimento.
Com os melhores cumprimentos.»
 
Analisado o teor da correspondência em apreço, trocada entre a Exmª. Sr.ª Advogada, mandatária da sociedade ora assistente e a aqui denunciada, ainda que resulte do respetivo teor a existência de um diferendo entre a mesma sociedade e a aqui denunciada (e a que não seriam alheias razões que opunham o marido da denunciada, gerente da mesma sociedade, e a denunciada), não contém a mesma quaisquer factos relacionados com os termos de eventuais negociações que pudessem estar em curso entre as partes, nem aí se fazem constar quaisquer factos em relação aos quais seja de presumir que existisse um interesse objetivo em que se mantivessem reservados e não fossem revelados pela Sr.ª Advogada.

Assim sendo e considerando o âmbito do segredo profissional do Advogado, que se deixou supra definido, forçoso é concluir que a correspondência em apreço e designadamente, a missiva enviada pela aqui denunciada à Sr.ª Advogada mandatária da sociedade, ora assistente, em resposta à interpelação que a mesma lhe dirigiu, convocando-a para uma reunião no seu escritório, não se encontra abrangida pelo segredo profissional do advogado, não integrando a previsão do artigo 92º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e) e f), do EOA.

E por que assim é, nada impedia a junção aos autos dos documentos em apreço e que possam servir de meio de prova.

Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida, que decidiu julgar nula a prova constante de fls. 25 a 34 e 84 dos autos, por violação do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, pelo que, se impõe a sua revogação."

[MTS]


26/01/2022

Jurisprudência uniformizada (55)


Perda de chance


-- Ac STJ 2/2022, de 26/1, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.

 

Jurisprudência 2021 (119)


Procedimento cautelar;
facto complementar; convite ao aperfeiçoamento


1. O sumário de RG 27/5/2021 (1106/21.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I- Tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparabilidade são aferidas pela respetiva repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.

II- Tendo sido alegados factos concretizadores da lesão e do montante dos danos, apenas faltando factos relativos ao reflexo na esfera patrimonial do requerente, de modo a permitir apreciar da sua alegada difícil reparação, não é possível concluir logo pela não verificação do requisito do periculum in mora.

III- A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre os quais figura a falta da causa de pedir, a qual não se confunde com uma causa de pedir deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta.

IV- No caso de serem suscetíveis de sanação, a existência de deficiências no requerimento inicial não implica rejeição liminar, caso em que o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.

V- Uma deficiência suscetível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento não constitui motivo legal para o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O indeferimento liminar do procedimento cautelar só é admissível nas situações previstas no artigo 590º, nº 1, do CPC (conjugado com o artigo 226º, nº 4, alínea b), do mesmo diploma), isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente».

Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 674), «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal forma graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição».

Acrescentam os referidos autores que «mesmo quando, na intervenção liminar, o juiz se deparar com falhas de inferior gravidade, não está afastada a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento». Referem ainda que nas «situações em que se verifique imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência de algum articulado, o juiz profere o despacho de convite ao aperfeiçoamento (…). O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos» (Ob. cit., pág. 679). [...]

No despacho recorrido considerou-se preenchido o primeiro pressuposto necessário ao decretamento das providências requeridas, mas não o segundo.

Portanto, no âmbito deste recurso, atenta a impugnação daquela decisão, importa apreciar se o quadro factual alegado torna fundado o receio de que a Requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente. [...]

[...] tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparação são aferidas pela sua repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.

Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.11.2020, proferido no processo 7692/20.2T8LSB-A.L1-7, relatado por José Capacete, «a providência cautelar comum, ao pressupor designadamente que haja fundado receio de que outrem antes de proferida a definitiva decisão de mérito cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito ameaçado, implica, estando tão só em causa lesões que gerem meros prejuízos materiais, que o grau de dificuldade deva ser encontrado entre o montante desses prejuízos e a possibilidade do seu ressarcimento.

Verifica-se tal requisito (o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação), caso estejam em causa danos de avultado montante».

Na decisão recorrida começa-se por referir que o tempo relativo ao decurso de uma acção declarativa não é susceptível de pôr «em risco a efetividade do direito da requerente à nulidade e/ou à redução ou conversão dos contratos de compra e venda celebrados com a requerida».

Porém, a lesão invocada pela Requerente respeita a danos de natureza patrimonial, em especial os que decorrem da circunstância de estar impedida de circular com os cinco veículos adquiridos à Requerida.

Nessa parte, argumenta-se que os factos alegados «não são claramente suficientes para concluir pelo carácter grave das lesões aparentemente sofridas pela requerente, sendo certo que esta omitiu por completo qualquer alusão à dificuldade de reparação de tais danos».

Quanto a este argumento, verifica-se que a Requerente alegou nos artigos 92º, 93º, 101º, 102º, 103º e 193º o prejuízo concreto que está a sofrer mensalmente, pois afirma que suporta, descriminando todos os pagamentos feitos entretanto, «uma média mensal de € 4.465,47 (artigos 92º, 93º, 101º, 102º e 103º) a título de custos com o aluguer de viaturas que lhe permitam suprir a proibição de circular com as viaturas que a requerida vendeu, e apenas para o transporte de trinta trabalhadores». Além disso, alega que, com o aludido recurso ao aluguer de viaturas, ainda se verifica uma situação deficitária, «pois só permite o transporte, de uma só vez, de 30 (trinta) trabalhadores, com as consequências já alegadas nos artigos 107º a 110º» - v. art. 194º.

Portanto, o alegado prejuízo seguramente não é insignificante ou de pouca monta.

Quanto à difícil reparabilidade da lesão, que, segundo o alegado, tem carácter de continuidade e é previsível que prolongue no futuro face ao alegado, não se pode ignorar que estão alegados os concretos prejuízos que a situação causa à Requerente, que tem de suportar os custos com o aluguer de outras viaturas e os transtornos operacionais gerados. Se suporta tais custos, a lesão tem repercussões na sua esfera jurídica, pelo que apenas faltam os factos que permitiriam avaliar a respectiva dimensão relativa, o que é decisivo para apurar da alegada difícil reparabilidade da lesão.

Partindo de tal constatação, mesmo que se admita que os factos relativos à lesão carecem de ser complementados ou desenvolvidos, quanto à dimensão do reflexo patrimonial face à situação económica da empresa, isso sempre podia ser viabilizado mediante a formulação de convite ao aperfeiçoamento. Tal convite ao aperfeiçoamento da petição permitiria à Requerente alegar novos factos que melhor explicitem os já invocados, mormente, para a afirmação do requisito que se considerou insuficientemente plasmado.

Concorde-se ou não, foi intenção do legislador estabelecer no nosso ordenamento jurídico positivo uma acentuação dos poderes do juiz de direcção do processo (...), que encontra expressão no artigo 590º, nºs 2 a 4, do CPC, o que conduz a que a existência de deficiências da petição não implica rejeição liminar, pois, se as deficiências forem susceptíveis de sanação, o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.

Dito de uma forma mais incisiva: se a deficiência for susceptível de sanação através de aperfeiçoamento, o requerimento inicial não pode ser liminarmente indeferido. Por isso, perante uma concreta deficiência, o essencial não está em saber as consequências da manutenção da deficiência, mas sim se esta é ou não susceptível de sanação. Se o for, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento.

A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adopção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta. [...]

Daqui decorre que qualquer deficiência, independentemente da sua gravidade e relevância, se for susceptível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento, obsta a que o juiz considere que essa falta conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.

Alinhando por esse mesmo diapasão, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina], pág. 26) circunscrevem as hipóteses de indeferimento liminar do requerimento inicial de um procedimento cautelar a quatro casos: «por manifesta inexistência do direito, manifesta impossibilidade de a situação receada causar lesão do direito, manifesta inadequação da providência pretendida para afastar a ameaça, não podendo ter aplicação a 1ª parte do art. 376-3, ou a ocorrência de falta de pressuposto insuscetível de sanação».

Nenhum dessas situações se verifica no requerimento inicial da Requerente: as duas últimas hipóteses não ocorrem nem foram invocadas na decisão recorrida, não é caso de manifesta inexistência do direito, pois deu-se por adquirido que foi feita prova sumária do mesmo, e não é impossível a situação receada causar lesão ao direito, na medida em que a Requerente alegou os concretos prejuízos que a actuação da Requerida lhe causou, causa e causará no futuro.

No caso dos autos a causa de pedir está suficientemente exposta na petição (não só a causa de pedir existe como é perceptível) e apenas carecem de explicitação os factos relativos ao periculum in mora, circunscritos à questão da difícil reparabilidade da lesão (reparação dos prejuízos decorrentes dos concretos actos alegados no requerimento inicial), que é a pedra de toque de qualquer procedimento cautelar (...), e justifica a possibilidade de recorrer logo ao procedimento ao invés de intentar a inerente acção declarativa. Mesmo numa situação em que não são alegados todos os factos que compõem a causa de pedir, desde que esta exista e seja perceptível, é admissível o aperfeiçoamento, carreando o demandante para os autos todos os elementos fácticos que a integram. Por isso, parece-nos que uma tal deficiência dificilmente constitui fundamento ou justificação para o indeferimento liminar do requerimento inicial, pois não é evidente, face aos poderes actualmente concedidos ao juiz, que o prosseguimento do processo não seja susceptível de conduzir a qualquer resultado, independentemente de qualquer consideração sobre o mérito da pretensão ou da dificuldade da prova dos factos em que se alicerça."

[MTS]


25/01/2022

Breve comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.2021



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2021 (118)


Processo de inventário;
partilha de bens comuns; competência material


1. O sumário de RG 27/5/2021 (6983/19.0T8VNF-D.G1) é o seguinte:

I- A Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro revogou o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, aprovou um novo regime do inventário notarial e reintroduziu no Código de Processo Civil o inventário judicial.

II- O inventário para partilha dos bens comuns subsequente ao divórcio previsto no art. 1133º do C.P.C. corre nos Juízos de Família e Menores por apenso ao processo que tenha decretado o divórcio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro revogou o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, aprovou um novo regime do inventário notarial e reintroduziu no Código de Processo Civil (art. 1082º a 1135º) o inventário judicial. Este diploma aplica-se, entre outros, aos processos intentados a partir da sua entrada em vigor, i.e. 01/01/2020 (art. 11º nº 1).

A questão de saber se o processo de inventário para separação de meações subsequente à sentença que decretou o divórcio deve ser apensado a estes autos ou tramitado como processo autónomo e independente tem sido discutida na doutrina e na jurisprudência.

Vejamos.

Uns defendem que o inventário previsto no art. 1133º do C.P.C. deve ser tramitado como processo autónomo e independente.

Os defensores desta tese fundam-se no facto daquele preceito não prever expressamente a apensação dos autos de inventário aos processos de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, contrariamente ao regime anterior previsto no art. 1404º nº 3 do C.P.C. na versão introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12/12, daí retirando a conclusão que a tramitação autónoma foi uma opção do legislador tanto mais que a regra dos processos “dependentes” correrem por apenso aos principais já existia aquando da vigência do referido art. 1404º (e estava prevista no então art. 211º nº 2 do C.P.C.).

Mais se baseiam num conceito restrito de dependência referindo que, num caso como o presente, a partilha é consequência da decisão de divórcio e não do processo onde esta decisão foi proferida concluindo que o inventário previsto no art. 1133º do C.P.C. não se enquadra na al. b) do nº 1 do art. 1083º do mesmo diploma.

Neste sentido vide Tomé D´Almeida Ramião, “O Regime dos Recursos e as Normas Transitórias no Novo Regime do Processo de Inventário”, in Cadernos do CEJ – “Inventário: O Novo Regime”, Maio de 2020, p. 39-40.

Este defende, quanto à competência material, que o nº 1 do art. 1083º do C.P.C. “(…) fixa positivamente a competência exclusiva do tribunal relativamente aos processos aí elencados, e neles não cabe – nomeadamente na sua alínea b) – o inventário para a partilha dos bens comuns na sequência do divórcio (…) nos termos previstos no artigo 1133.º pelo que nada impede que os ex-cônjuges requeiram o inventário para esta finalidade no cartório notarial, pois que a competência deste é concorrente com a dos tribunais.”.

E em sede de competência territorial refere que “O artigo 1133.º do CPC é omisso quanto à forma como é autuado esse processo, se corre autonomamente ou por apenso ao divórcio, ao contrário do que se previa no correspondente artigo 1404.º/3 do anterior CPC, que estabelecia que o processo de inventário corria por apenso a esses processos. E o artigo 1083.º/1, al. b), do CPC só se refere à relação de dependência quanto aos processos identificados no artigo 1135.º/1, em que quanto a estes é clara a dependência, pelo que o processo de inventário corre por apenso a esses processos.

Perante a ausência de norma expressa em sentido adverso, o processo de inventário instaurado no âmbito do artigo 1133.º do C. P. Civil continua a ser tramitado como processo autónomo e independente, cuja competência está deferida aos Tribunais de Família e Menores, nos termos do referido n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ”.

Esta posição parece ser a que tem sido adoptada pelos tribunais da 1ª instância.

Outros defendem que, não obstante o art. 1133º do C.P.C. não prever expressamente a apensação, também não a exclui, sendo que a mesma resulta de uma interpretação sistémica da lei nos termos dos art. 206º nº 2, 1133º do C.P.C. e 122º nº 2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (L.O.S.J.), aprovada Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.

Neste sentido vide Pedro Pinheiro Torres, in Cadernos do CEJ – “Inventário: O Novo Regime”, Maio de 2020, p. 31, que no capítulo referente aos processos de inventário para partilha de bens em casos especiais, em que alude aos inventários regulados nos art. 1131º a 1135º do C.P.C., refere: “Será, porventura, relevante, fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente o divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC; já o inventário subsequente a divórcio decretado em Conservatória do Registo Civil deverá ser tramitado no Juízo de Família e Menores (…), por ser esta a atribuição que resulta do n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ (…)”.

E ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 527.

Esta tese tem sido a defendida pelos tribunais superiores – Ac. da R.L. de 14/07/2020 (Maria Conceição Saavedra), R.C. de 23/02/2021 (António Pires Robalo), R.P. de 23/02/2021 (Alexandra Pelayo), decisões que acompanhamos.

Ora, o anterior regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013 de 05 de Março, correspondeu a uma experiência de desjudicialização que se caracterizou grosso modo pela atribuição da tramitação deste processo à competência exclusiva dos notários ficando reservada aos tribunais de comarca a competência para a prática de actos que fossem considerados da competência do juiz, contudo tal experiencia fracassou. Ciente deste fracasso o legislador consagrou, no novíssimo regime de processo de inventário, a regra da competência concorrente entre o Tribunal e o Cartório Notarial, excepto nas situações previstas no art. 1083º nº 1 do C.P.C., em que a competência dos tribunais judiciais é exclusiva.

Dispõe este preceito:

1 - O processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais: (…)

b) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial; (…).

2 - Nos demais casos, o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais. (…).

Como se lê no referido Ac. da R.P. de 23/03/2021, “Pode-se dizer que o inventário é dependente de outro processo judicial quando a partilha de bens seja necessária para a tramitação de outro processo ou quando seja consequência do decidido naquele processo” sendo que, acrescentamos nós, o disposto no art. 1135º se enquadra no primeiro caso e o disposto no art. 1133º no segundo.

O processo de inventário para separação de meações previsto no art. 1133º do C.P.C. está dependente ou em conexão com o processo de divórcio uma vez que da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges nasce o direito à partilha dos bens comuns. Assim, preexistindo um processo no qual o divórcio foi decretado será por apenso a este que corre o processo de inventário nos termos dos art. 1083º nº 1 b) e 206º nº 2 do C.P.C., mas, caso o divórcio tenha sido decretado na conservatória do registo civil, o inventário correrá também nos Juízos de Família e Menores, mas como processo autónomo atento o disposto no art. 122º nº 2 da L.O.S.J..

Da não menção no art. 1133º do C.P.C. que esse inventário corre por apenso ao processo de divórcio não se pode retirar a conclusão contrária tanto mais que a apensação àquele processo resulta dos referidos art. 1083º nº 1 b) e 206º nº 2 do C.P.C..

Por fim, importa referir que a acima referida alínea não distingue graus de dependência ou conexão de molde a poder defender-se que aí se inclui a conexão prevista no art. 1135º, por ser uma conexão “forte”, mas já não a do art. 1133º por não ser suficientemente forte. Acresce que existem processos que correm por apenso a outros processos por formarem com estes uma “unidade orgânica” (como, por exemplo, a oposição à execução) e outros há cuja apensação se justifica por razões de ordem formal ou pragmática (como, por exemplo, a acção de honorários – art. 73º nº 1 do C.P.C. ou o caso em análise).

Deste modo não há razões de fundo para excluir a apensação do inventário para separação de meações ao processo de divórcio, o que aliás se justifica por razões de economia processual e elementar razoabilidade."

[MTS]


24/01/2022

Jurisprudência 2021 (117)


Prestação de contas;
direito à prova; nulidade processual*


1. O sumário de RC 11/5/2021 (459/20.0T8CBR.C1) é o seguinte:

I – A decisão de mérito sobre a (prévia) obrigação de prestar contas, numa ação de prestação de contas, só deve ter lugar, sem mais, após os articulados se for uma questão exclusivamente de direito.

II – Deve ser qualificada como prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, declarar sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº3, 1ª parte, do n.C.P.Civil).

III – O direito à prova, sendo uma das dimensões em que se concretiza o direito a um processo equitativo, significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"A consagração, no nº 4 do artigo 20º, da Constituição da Republica Portuguesa, do direito a um processo equitativo, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova [Habitualmente deduzido do disposto no art. 6º, nº3, al. d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem] uma das dimensões em que aquele se concretiza. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão.

«O direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» [Citámos agora o acórdão do Tribunal Constitucional de 11.11.2008, relatado por Carlos Fernando Cadilha, acessível em www.pgdlisboa.pt; entendimento similar tem vindo a ser definido pela demais  jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respetivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).].

Nesta linha de entendimento, o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova.

Assim, já foi doutamente sustentado a este propósito que «as partes devem, pois, ter a oportunidade de demonstrar os fatos que servem de fundamento para as respetivas pretensões e defesas, sob pena de não conseguirem influenciar o órgão julgador no julgamento da causa. A noção de direito à prova aumenta as possibilidades das partes influenciarem na formação do convencimento do juiz, ampliando as suas chaces de obter uma decisão favorável aos seus interesses. Assim, as partes têm liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais» [Vide EDUARDO CAMBI, “O direito à prova no Processo Civil”, in Revista da Faculdade de Direito UFRP, v34, 2000, disponível na net – http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/1836/1532].

Situação que, como visto, não ocorreu no caso vertente!

O que tudo serve para dizer que a situação carecia de ser aprofundada, tendo sido prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, ter sido declarada sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº 3, 1ª parte, do n.C.P.Civil)."


*3. [Comentário] Não há nada a objectar ao decido no acórdão. Aproveita-se a ocasião para duas observações:

-- O tribunal de 1.ª instância cometeu uma nulidade processual inominada (art. 195.º, n.º 1, CPC), dado que proferiu uma decisão num momento processualmente inadequado pela falta da prévia produção da prova; a situação não deve ser confundida com a da decisão-surpresa, já que esta é uma decisão proferida no momento processualmente apropriado, mas com um conteúdo inadmissível por falta de audição prévia das partes (art. 3.º, n.º 3, CPC); a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC);

-- São frequentes os equívocos sobre a "hierarquia" do direito à prova; sobre a matéria, cf. Teixeira de Sousa, RFDUL 61 (2020-2), 41 ss.

MTS