"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2022

Jurisprudência 2022 (77)


Apoio judiciário; protecção jurídica;
decisão; recorribilidade


1. O sumário de STJ 30/3/2022 (12/21.0T8VCT-A.S1) é o seguinte:

I. É irrecorrível a decisão proferida sobre a impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica (n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).

II. Sendo inadmissível o recurso, é inútil averiguar se a decisão de que o reclamante pretende interpor recurso de revista per saltum está ou não abrangida pelo n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.

III. Não resulta da Constituição a imposição da possibilidade de recurso de uma decisão judicial que, julgando a impugnação de uma decisão administrativa de negação de um pedido de apoio judiciário, a julgue improcedente, por falta de verificação dos pressupostos de concessão da modalidade de apoio requerida.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. A fls. 50 foi proferido o seguinte despacho:

1. AA vem reclamar para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho de 22 de Novembro de 2021 que não admitiu o recurso per saltum interposto da decisão de 18 de Janeiro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ... – Juiz ..., que julgou improcedente a impugnação da decisão do Instituto da Segurança Social, I. P. – Centro Distrital ..., que “indeferiu o pedido de apoio judiciário por si formulado”, por ser “irrecorrível, ao abrigo do disposto no artigo 28.º, n.º 5” da Lei do Apoio Judiciário, e não se enquadrar no n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil

Como fundamentos da reclamação, invoca:

– Tratar-se de «uma decisão que põe termo a incidente processado autonomamente” e, portanto, abrangida pelo nº 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil;

– A jurisprudência constitucional, “mais precisa e concretamente, (…) os acórdãos n.º 651/2007 (admite-se que o reclamante se refira ao acórdão n.º 40/2008, tirado no proc. n.º 651/2007), n.º 43/2008 e n.º 362/2010”,

– Ter sido admitido o recurso de revista “num processo paralelo correndo pela jurisdição administrativa, o Proc. n.º 1894/18.9BEBRG-R4-R1 do Tribunal Central Administrativo Norte…”.

Notificado, o Centro Distrital ... Segurança Social não se pronunciou.

2. Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Acesso ao Direito e aos Tribunais), é irrecorrível a decisão proferida sobre a impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica (assim, Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, 10.ª ed., Coimbra, 2021, pág.103).

A decisão que julgou improcedente a impugnação fundamentou a improcedência no não preenchimento dos “critérios legais estabelecidos na Lei do Apoio Judiciário”“De acordo com a situação apurada conclui-se que o requerente–impugnante, à luz dos critérios legais estabelecidos na Lei do Apoio Judiciário, apenas poderia beneficiar de uma modalidade de pagamento faseado, proposta que não foi aceite pelo mesmo. Nestes termos, da análise da situação em causa e da decisão proferida, conclui-se inexistir fundamento legal para conceder provimento à impugnação”.

3. Não resulta da Constituição a imposição da possibilidade de recurso de uma decisão judicial que, julgando a impugnação de uma decisão administrativa de negação de um pedido de apoio judiciário, a julgue improcedente, por falta de verificação dos pressupostos de concessão da modalidade de apoio requerida.

O Tribunal Constitucional tem apreciado por diversas vezes a questão de saber se o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição) implica ou inclui o direito de recurso.

É manifesto que não vem agora ao caso tratar do direito ao recurso previsto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

Não se questiona que a previsão constitucional da existência de tribunais hierarquicamente organizados implique que seja constitucionalmente inadmissível que o legislador ordinário elimine qualquer hipótese de recurso de decisões jurisdicionais (cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 287/90 ou 43/2008), não obstante caber na sua liberdade de conformação a definição das regras de admissibilidade de recurso; ou que o direito de acesso ao direito e aos tribunais seja um direito fundamental, análogo aos direitos, liberdades e garantias (cfr. acórdãos citados).

Igualmente se sabe que, em diversas decisões, o Tribunal Constitucional seguiu a orientação sustentada no voto de vencido aposto ao acórdão n.º 65/88, da qual se salienta a afirmação de que “penso que há-de considerar-se constitucionalmente garantido — ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático — o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal — como se reconhece no acórdão — mas também todas as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 25° e seguintes da CRP).”

É justamente o caso dos acórdãos 40/08 (proc. n.º 651/2007), 43/2008 e 362/10, citados pelo reclamante e respeitantes à questão que agora está em causa.

Assim, no acórdão n.º 43/2008, de 23 de Janeiro de 2008, cujo objecto consistia na “ questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 26.º, n.º 2, e 28.º, nº 1, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso da decisão do tribunal de comarca que decida a impugnação judicial da decisão negativa da segurança social., decidiu-se que “a protecção constitucional aos direitos fundamentais não impõe um controlo por um tribunal  hierarquicamente superior da decisão do tribunal  que decidiu a impugnação” do indeferimento do pedido de apoio judiciário.

Seguiu-se neste acórdão n.º 43/2008 a fundamentação adoptada no proc. n.º 651/2007 (acórdão n.º 40/2008, também de 23 de Janeiro de 2008), ambos tirados a propósito da versão do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004 anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que lhe acrescentou o n.º 5, e que decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, interpretado no sentido de que não é admissível recurso da decisão judicial que julgue improcedente a impugnação da decisão administrativa que indeferiu pedido de concessão de apoio judiciário”.

O acórdão n.º 362/2010, de 6 de Outubro de 2010, já relativo à actual versão do artigo 28.º, decidiu manter “a decisão reclamada, que não julgou inconstitucional a norma constante do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28 de Agosto, com o sentido de que não é passível de recurso a decisão do tribunal de comarca que aprecie a impugnação judicial de indeferimento do pedido de apoio judiciário pela Segurança Social, negando-lhe provimento”.

4. Sendo inadmissível o recurso, nos termos do n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, é inútil averiguar se a decisão de que o reclamante pretende interpor recurso de revista per saltum está ou não abrangida pelo n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.

5. Quanto à decisão que admitiu o recurso de revista “num processo paralelo correndo pela jurisdição administrativa, o Proc. n.º1894/18.9BEBRG-R4-R1 do Tribunal Central Administrativo Norte…”, esclareceu o Supremo Tribunal Administrativo, na decisão junta pelo reclamante: “É patente que estava em causa admitir ou não admitir o recurso de revista interposto pelo ora reclamante, mas também é patente que a decisão de «não admissão» está toda ela baseada na decisão proferida sobre a questão do «justo impedimento». Tanto assim, que o ora reclamante apenas fundamenta a presente «reclamação» em erro de julgamento sobre essa questão. Destarte, a circunstância de estar posto em causa um «acórdão» da 2.ª instância e não um «despacho do relator», e o facto de o objecto litigado ser, directamente, a decisão sobre o «justo impedimento», e apenas reflexamente, a de «não admissão da revista», conduz a que o acórdão 02.07.2021 seja passível, ele próprio, de recurso de revista, e não de reclamação (...)”.

Não tem portanto, paralelo com a presente reclamação.

6. Nestes termos, indefere-se a reclamação.

Custas pelo reclamante.

II. AA veio reclamar deste despacho, sustentando (a) a “admissibilidade do recurso de apelação convolado em revista”, b) a “admissibilidade do recurso de revista per saltum concretamente interposto”.

II. Relativamente à questão a), o reclamante sustenta que o despacho reclamado “não interpreta a norma conjugada dos n.ºs 4 e 5 do artigo 28.º da lei n.º 34/2008 no sentido materialmente correcto, nem constitucionalmente conforme, nem, ademais, conforme ao direito eurocomunitário directamente aplicável”

Quanto à questão b), alega que o objecto do recurso de revista per saltum «é apenas a apreciação da nulidade da sentença, devendo “o julgamento da matéria de facto controvertida” “ter lugar, subsequentemente, no tribunal singular a quo”.

O Centro Distrital ... Segurança Social não se pronunciou.

III. Entende-se que a interpretação correcta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 28 da Lei n.º 34/2008 é a que consta do despacho reclamado, que se reitera, nada havendo a acrescentar (questão a)).

No que toca à questão b), diz-se igualmente que os acórdãos do Tribunal Constitucional citados pelo reclamante foram analisados no despacho reclamado, no que se refere à posição tomada sobre a questão de constitucionalidade colocada, análise que igualmente se reitera.

No que toca às versões inglesa, espanhola, francesa e italiana do n.º 3 do artigo 15.º da Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, entende-se que não consagram a necessidade de dois graus de recurso judicial da decisão de rejeição dos pedidos de apoio judiciário. Não se vê, assim, como sustentar a desconformidade do regime português de irrecorribilidade da sentença, previsto no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.

IV. Nestes termos, indefere-se a reclamação."

[MTS]


29/11/2022

Jurisprudência 2022 (76)


Recurso de revista;
admissibilidade


1. O sumário de STJ 30/3/2022 (4406/11.1TBVFX.L1-A.S1) é o seguinte:

O acórdão de conferência que indefere uma reclamação e/ou um requerimento de reforma do acórdão recorrido não preenche os requisitos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação afirma-se o seguinte:

"23. O art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil dispõe que “[c]abe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

24. O teor do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é claro no sentido de que entre os requisitos de admissibilidade do recurso de revista estão requisitos relativos ao conteúdo da decisão impugnada — “o cabimento do recurso de revista afere-se designadaamente pelo conteúdo do acórdão do Tribunal da Relação de que se recorre” [Luís Espírito Santo, Recursos civis. O regime recursório português: fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS — Centro de I & D sobre Direito e Sociedade / Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2020, pág. 277.]

25. Ora o acórdão de conferência que indefere uma reclamação e/ou um requerimento de reforma do acórdão recorrido não preenche os requisitos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

26. Em primeiro lugar, o acórdão em causa não é um acórdão proferido sobre decisão da 1.ª instância e, em segundo lugar, não é um acórdão que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus.

27. O argumento deduzido do art. 671.º, n.º 1, é reforçado por argumentos deduzidos dos arts. 615.º, n.º 4, e 617.º, n.ºs 1 e 6, do Código de Processo Civil:

Artigo 615.º: 4. — As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

Artigo 617.º: 1 — Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.

6. — Arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da primeira parte do n.º  4 do artigo 615.º, ou deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; porém, no caso a que se refere o n.o 2 do artigo anterior, a parte prejudicada com a alteração da decisão pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença.

28. O argumento deduzido da circunstância de o acórdão de conferência não preencher os requisitos do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é confirmado pela constatação do facto de que o incidente de reforma só pode ser suscitado em requerimento autónomo em relação a decisões de que não haja recurso — art. 616.º, n.º 2, do Código de Processo Civil — e pela constatação do facto de que a decisão do tribunal sobre a arguição de nulidades e sobre o incidente de reforma é definitiva — cf. art. 617.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.

29. Como foi decidido pelo Exmo. Senhor Conselheiro Oliveira Abreu em despacho proferido em 11 de Outubro de 2019, no processo n.º 4901/17.9T8OER.L1.S1, “… impõe-se que tenhamos em atenção que, deduzido pedido de reforma perante o Tribunal que proferiu a decisão, por dela não caber recurso ordinário, o Tribunal profere decisão definitiva sobre a questão suscitada — art. 617.º, n.º 6, do Código de Processo Civil”. “Assim sendo, não temos como deixar de reconhecer que estando em causa o conhecimento da reforma do acórdão reformando, a decisão proferida sobre a reclamada reforma, quando indeferida, como foi o caso, é insusceptível de recurso, nos termos enunciados, decorrente do art. 617.º, n.º 6, do Código Processo Civil”.

30. O raciocínio desenvolvido a propósito do objecto do recurso — do conteúdo da decisão impugnada — é reforçado pela disposição sobre os fundamentos do recurso do art. 674.º do Código de Processo Civil.

31. O art. 674.º, n.º 1, do Código de Processo Civil enumera os fundamentos do recurso de revista, dizendo que “a revista pode ter por fundamento:

a) A violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável;

b) A violação ou errada aplicação da lei de processo;

c) As nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º”

32. Os Recorrentes pretendem agora que o recurso seja admitido por ter como fundamento uma nulidade processual, “nos termos do art. 195º, n.º 1, do Código de Processo Civil”.

33. O silêncio do art. 674.º, n.º 1, sobre as nulidades processuais é um silêncio eloquente — significa que a nulidade processual, designadamente a nulidade processual decorrente da inobservância do art. 3.º, n.º 3, deverá ter como consequência a nulidade da decisão, nos termos do art. 615.º, n.º 2, alínea d) [...], e só deverá ser fundamento do recurso de revista nos termos do art. 674.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

34. Como diz Miguel Teixeira de Sousa,

“Se o juiz conhecer de uma matéria de facto ou de direito alegada por uma das partes sem previamente ter sido concedida à parte contrária a possibilidade de exercer o contraditório, a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º), porque o juiz decide essa questão de facto ou de direito quando não estão reunidas as condições para se poder pronunciar sobre ela” [Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao art. 3.º, in: CPC online — art. 1.º a 58.º, cit., pág. 4.)

“A violação da proibição da decisão-surpresa implica um vício da própria decisão-surpresa. A decisão-surpresa é, em si mesma, um vício processual que nada tem a ver com a tramitação processual e, por isso, com as nulidades processuais. A decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.o, n.o 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º), porque o tribunal conhece de matéria que, nas condições em que o fez, não podia conhecer […]” [Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao art. 3.º, in: CPC online — art. 1.º a 58.º, cit., pág. 5.]

35. Ora, de acordo com uma jurisprudência constante, a arguição de nulidades do acórdão recorrido não poderá ser fundamento autónomo de recurso de revista [Cf. designadamente acórdãos do STJ de de 24 de Novembro de 2016 — processo n.º 470/15 —; de 12 de Abril de 2018 — processo n.º 414/13.6TBFLG.P1.S1 —; de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 77/14.1TBMUR.G1.S1 —, de 19 de Junho de 2019 — processo n.º 5065/16.0T8CBR.C1-A.S1 — e de 05 de Fevereiro de 2020 — processo n.º 983/18.4T8VRL.G1.S1.]

36. Como diz, p. ex., no acórdão do STJ de 12 de Abril de 2018 — processo n.º 414/13.6TBFLG.P1.S1 —, “a arguição de nulidades do acórdão da Relação ou o erro na apreciação da prova, não implicam, por si só, a admissibilidade do recurso de revista; podem é constituir fundamentos deste, como se alcança do art. 674.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, se for admissível, o que é bem diferente”.

37. Em consequência, a alegada nulidade processual, por violação do art. 3.º, n.º 3, nunca seria só por si suficiente para a admissão do recurso, superando os requisitos de conteúdo do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

38. Em diferentes palavras, ainda que insistindo em igual pensamento — a alegada nulidade processual, por omissão de pronúncia, nunca poderia convolar um acórdão de conferência que não conhece do mérito da causa num acórdão que conheça do mérito da causa, no sentido do art. 671.º, n.º 1, ou um acórdão de conferência que não põe termo ao processo num acórdão que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus, no sentido do art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil."

[MTS]


28/11/2022

Bibliografia (1046)


-- Orlandi, M., Pactum de non petendo e inesigibilità (Giuffrè; Milano 2000) [OA]


Não admissão de recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]


Jurisprudência 2022 (75)


Competência internacional;
critério da coincidência; pacto de jurisdição*


1. O sumário de STJ 30/3/2022 (1457/20.9T8STR.E1.S1) é o seguinte:

I. - A ação em que se peticiona o pagamento do preço de compra de imóveis tendo como causa de pedir a nulidade da declaração confessória de pagamento/recebimento do preço não se inscreve nas ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 70.º, Cód. Proc. Civil.

II. - Para a aplicação do critério da causalidade, previsto al. b) do artigo 62.º do Cód. Proc. Civil, exige-se que os factos integrantes da causa de pedir tenham sido praticados em território português.

III. - Para aplicação do critério da necessidade, previsto na al. c) do art. 62 do CPC exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

IV. - A circunstância de os representantes de uma sociedade brasileira e os réus eventualmente residirem em Portugal não satisfaz as exigências do princípio da necessidade do art. 62 al. c) do CPC quando a declaração de pagamento e recebimento do preço que se pretende anular com a ação foi proferida em escritura pública realizada num cartório notarial brasileiro e em que a declarante/contraente vendedora uma sociedade brasileira. A comodidade de a ação ser proposta em Portugal exorbita o princípio da necessidade e apenas poderia ser fundamento a que as partes estabelecem [sic] um pacto privativo de jurisdição nos termos do art. 94 do CPC caso se respeitassem os requisitos aí prescritos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Apreciando o mérito do recurso, a competência internacional consiste na atribuição do poder de julgar aos tribunais portugueses, no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros e a questão apenas se suscita quando uma causa concreta revele alguma conexão com outra ordem jurídica estrangeira. Se qualquer dos seus elementos como sejam, as partes, o pedido, ou a causa de pedir tiverem somente conexão com uma ordem jurídica o problema não se coloca. Existindo essa conexão, importará ainda decidir se uma determinada questão deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou pelos tribunais estrangeiros, isto é, a competência internacional dos tribunais portugueses incide sobre as situações que apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

Sem embargo dos casos em que o nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade de a justiça de outro Estado ser igualmente competente para julgar a causa numa aceitação de competência concorrente, podendo a prestação jurisdicional estrangeira ser incorporada nacionalmente através dos mecanismos de revisão de decisão estrangeira, outros casos são estabelecidos (no art. 63 do CPC) em que a autoridade judiciária portuguesa é a competente de forma absoluta, excluindo-se a competência de outra autoridade judiciária estrangeira. Isso significa que, para os processos indicados no referido dispositivo legal, a lex fori reconhece como internacionalmente competente apenas os seus juízes e tribunais, impedindo o reconhecimento da decisão estrangeira.

Centrando a atenção na competência internacional concorrente - a que admite a possibilidade de ocorrência de atividade jurisdicional paralela à exercida pela jurisdição nacional a respeito da mesma causa - podendo cada país estabelecer os elementos de conexão que considere relevantes para se atribuir a competência para julgar determinados litígios, dispõe o art. 59 do CPC que sem prejuízo do firmado em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os tribunais são competentes internacionalmente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos no art. 62º CPC e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94º CPC.

O art. 62 al. a) fixa o critério da coincidência: é atribuída competência internacional aos tribunais portugueses, quando a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência internacional estabelecidas em lei portuguesa e tais regras (da competência internacional) constam do art. 70 e ss CPC. Quando de acordo com as regras da competência territorial previstas na ordem interna, a ação deva ser instaurada em Portugal, os tribunais portugueses terão competência internacional para julgar essa ação, mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Assim, conforme a alínea a) do art. 62 conjugada com o que dispõe do art. 70 do CPC, as ações relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis devem ser propostas no tribunal da situação dos bens. Se os bens estão situados em Portugal, os tribunais portugueses terão competência, não só interna, como internacional, por aplicação do referido princípio da coincidência. Se o elemento de conexão utilizado na norma de competência territorial apontar para um lugar situado no território português os tribunais portugueses competentes são internacionalmente competentes - Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, t. I, AAFDL Ed., 2019, p. 337.

Um outro critério é o da causalidade, previsto na al. b) do art. 62 do CPC. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a propositura da ação quando tiver sido praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir ou algum dos factos que a integram.

Por último, o critério da necessidade com regulação na al. c) do art. 62 citado, alcança não só a impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas com as quais ele apresenta uma conexão relevante, como também a impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente. Exige-se que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real e que, segundo o princípio da necessidade, o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável. Configura-se este critério como um último recurso que previne a denegação de justiça que resultaria da circunstância de não ser possível ou ser muito difícil propor uma ação no estrangeiro.

No caso em decisão, discute-se a declaração confessória constante de contratos de compra e venda celebrados no ... entre a autora e o réu marido, declaração que estes querem ver declarada nula. Não se trata de uma ação real, sequer de uma das previstas no nº1 do art. 70 do CPC, antes identifica uma ação de anulação de uma declaração confessória em que se pretende que, continuando o negócio celebrado válido, seja apenas a declaração negocial incidente no pagamento do preço que seja considerada nula, o que afasta o primeiro elemento de conexão estabelecido no art. 62 al. a) do CPC.

Procurando-se nos restantes critérios enunciados nesse preceito se existe entre o objeto do litígio antes delimitado e a ordem jurídica portuguesa algum elemento atributivo de competência adverte-se que a mesmo que a nacionalidade dos representantes da autora e dos réus fosse portuguesa e a sua residência em território português, tal não seria relevante para essa atribuição. A previsão da al. b) desse normativo atribui aos tribunais nacionais competência para julgarem a causa se os factos integrantes da causa de pedir foram praticados em território português – factos esse que podem consistir não só na própria celebração do negócio como também nas negociações tendentes à sua realização ou na aceitação de proposta negocial, desde que estas façam parte do elenco dos factos relevantes que servem a pretensão – cfr. Lima Pinheiro, ob. cit., p. 348 e 349.

No caso em apreciação, o facto essencial, a causa de pedir, é a declaração confessória produzida numa escritura pública de compra e venda celebrada no ..., sendo de todo indiferente a esta causa a nacionalidade das partes envolvidas, a sua residência, o lugar onde tenham ocorrido as negociações tendentes à celebração da aludida escritura, razão para que não se encontre na al. b) do art. 62 do CPC fundamento para considerar o tribunal português como internacionalmente competente.

Por último, a recorrente invoca o critério da necessidade constante da al. c) do normativo em estudo que, como vimos, só terá aplicação quando o “direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.

Para sufrágio desta conexão o recorrente sustenta que tem de reconhecer-se “uma apreciável maior dificuldade na propositura da ação, no ...” e fornece como razão serem os réus e os legais representantes da autora residentes em Portugal. Não seria assim exigível a instauração da ação fora de Portugal porque a conexão pessoal resultante da residência das partes inscreveria a atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses com base no princípio da necessidade.

Como se observa com propriedade na decisão recorrida, não é a circunstância de haver maior comodidade na propositura da ação em Portugal que constitui critério de fixação da competência internacional e menos ainda por critérios de necessidade. Aliás, essa comodidade por razões de conveniência pessoal poderia ter sido prevenida através de um pacto atributivo de competência internacional nos termos e com respeito das prescrições do art. 94 do CPC e não foi. Não sendo o domicílio e a nacionalidade das partes suficientes para determinar a competência internacional de um tribunal português, diz-se ainda por acréscimo que a residência dos representantes das partes não substitui, para efeitos de configuração da nacionalidade e residência, a nacionalidade e a residência da própria parte representada.

Não existe no caso em decisão qualquer alegação de impossibilidade prática decorrente de ocorrências anómalas e impeditivas do funcionamento da jurisdição competente (a brasileira) para que a ação seja julgada em Portugal e sem estas fica afastada qualquer ideia de necessidade atributiva de competência para que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou para que a propositura da ação no estrangeiro representasse para o autor dificuldade apreciável."


*3. [Comentário] Se bem se percebe o caso e salvo o devido respeito, o STJ não enquadrou devidamente a questão da competência internacional dos tribunais portugueses. Possivelmente, o mesmo sucedeu com as partes.

Do relatório do acórdão consta o seguinte:

"Silma - Construções, Comércio e Serviços, Ltda., pessoa coletiva de direito brasileiro, intentou a presente ação contra AA, e mulher BB, pedindo que seja declarada a nulidade da declaração confessória constante dos contratos de compra e venda celebrados no ... entre a A., Silma, Ltda. e o Réu marido, nos termos da qual a A. afirmou: “pelo preço certo e ajustado de … importância essa recebida do outorgado comprador, … em moeda corrente nacional, pelo que dão plena e geral quitação de pago e recebido …”, e os Réus condenados a pagarem-lhe a quantia de € 509.815,98, dos quais € 420.000,00 relativo ao preço da venda dos imóveis, acrescido de € 16.800,00 de juros e a que acrescem juros de mora vincendos, à taxa legal, contados desde 26 Junho de 2020.

Alegou que vendeu ao R. imóveis constando da respetiva escritura que o preço foi recebido quando, afinal e por erro sobre os motivos, o não foi.

Os RR. contestaram invocando a violação do pacto privativo de jurisdição, por preterição da convenção do foro brasileiro como o competente para dirimir o conflito, nos termos acordados na cláusula 9.ª do contrato de sociedade de conta em participação – SCP."

Nas alegações de recurso, a Autora afirma o seguinte:

"4. Tendo a A. todos os seus legais representantes residentes em Portugal e sendo os Réus também residentes em ... é de concluir que se verifica para a A. uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, uma vez que seriam necessárias viagens prolongadas ao ....".

Disto pode concluir-se o seguinte:

-- Os réus têm residência em Portugal (também confirmado pelo n.º IV do sumário);

-- A Autora pediu que fosse "declarada a nulidade da declaração confessória constante dos contratos de compra e venda celebrados no ... entre a A., Silma, Ltda. e o Réu marido";

-- As partes celebraram um pacto pelo qual atribuíram competência aos tribunais brasileiros para dirimir os conflitos surgidos no âmbito do contrato de conta em participação.

Perante isto, não deixa de ser estranho que:

-- O STJ afirme o seguinte: "No caso em decisão, discute-se a declaração confessória constante de contratos de compra e venda celebrados no ... entre a autora e o réu marido, declaração que estes querem ver declarada nula. Não se trata de uma ação real, sequer de uma das previstas no nº1 do art. 70 do CPC, antes identifica uma ação de anulação de uma declaração confessória em que se pretende que, continuando o negócio celebrado válido, seja apenas a declaração negocial incidente no pagamento do preço que seja considerada nula, o que afasta o primeiro elemento de conexão estabelecido no art. 62 al. a) do CPC."; a verdade é que, atendendo ao pedido formulado pela Autora e à circunstância de os réus terem domicílio em Portugal, teria tido aplicação o critério da coincidência (art. 62.º, al. a), e 80.º, n.º 1, CPC);

-- O STJ tenha discutido a aplicação dos critérios da causalidade e da necessidade, quando o que devia ter discutido era a validade e aplicabilidade do pacto de jurisdição celebrado pelas partes.

MTS


26/11/2022

Bibliografia (1045)

 
-- Xandra Kramer/Stefaan Voet/Lorenz Ködderitzsch/Magdalena Tulibacka/Burkhard Hess (Eds.), A Holistic and Multidisciplinary Approach (Bloomsbury: Ney York 2022)



25/11/2022

Jurisprudência constitucional (216)

 
Citação;
pessoas colectivas


1. TC 18/10/2022 (652/2022) decidiu o seguinte:

[...] não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 246.º, n.º 4, 229.º, n.º 5, e 230.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, interpretados no sentido segundo o qual se considera válida a citação de pessoa coletiva por carta registada remetida para a sede que consta do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, ainda que a mesma corresponda a instalações encerradas, sem que a destinatária da citação tenha comunicado ao referido ficheiro central a alteração da sua sede [...].

2. Publicação (extracto): DR 28/2023, Série II de 2023-02-08.


Jurisprudência constitucional (215)


COVID-19; medidas excepcionais;
suspensão de prazos


1. TC 15/11/2022 (766/2022) decidiu o seguinte:

[...] julgar inconstitucional a norma contida no artigo 6.º-B, n.º 5, alínea d), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, interpretado no sentido segundo o qual a exceção à suspensão de prazos processuais ali prevista é aplicável aos prazos de recursos de decisões proferidas anteriormente à respetiva entrada em vigor, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa [...].

 2. O art 6.º-B da L 1-A/2020, de 19/3, tem a seguinte redacção:

Artigo 6.º-B
Prazos e diligências

1 – São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. […]

5 – O disposto no n.º 1 não obsta:

a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;

b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;

c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;

d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão. [...]

3. Publicação (extracto): DR 245/2022, Série II, de 2022-12-22.

Bibliografia (1044)


-- Mirjan R. Damaška, Evaluation of Evidence: Pre-Modern and Modern Approaches (Cambridge University Press 2019)


Jurisprudência uniformizada (60)


"União estável";
escritura declaratória; efeitos

-- Ac. STJ 10/2022, de 24/11, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.

 

Jurisprudência 2022 (74)


Processos de jurisdição voluntária;
procedimentos cautelares; revista


1. O sumário de STJ 10/3/2022 (506/21.8T8CHV-B.G1.S1) é o seguinte:

I. O artigo 988.º, n.º 2, do CPC determina que não é admissível recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas no âmbito de processos de jurisdição voluntária segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.

II. Entre os casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada ou sobre o regime de gozo dos dias festivos e de férias.

II. O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, seja como for, não permite converter em questões de legalidade questões que, visivelmente, são de conveniência ou de oportunidade.

IV. A razão justificativa da regra da irrecorribilidade da decisão cautelar consignada no artigo 370.º, n.º 2, do CPC (o carácter provisório) procede para a decisão provisória proferida nos termos do artigo 38.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 652.º do CPC, o juiz a quem o processo é distribuído cumpre verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso [cfr. al. b)], circunstância sobre as quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e tendo-se, efectivamente, pronunciado recorrente e recorrido.

Ora, como bem adverte o recorrido e se verá de seguida, o conhecimento do presente recurso depara com dois obstáculos.

O recurso tem por objecto o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais na sequência de divórcio.

A medida de regulação do exercício das responsabilidades parentais é expressamente qualificada, no artigo 3.º, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), como uma providência tutelar civil, estando, por conseguinte, sujeita ao regime dos recursos estabelecido para a aplicação, alteração ou cessação das providências tutelares cíveis previsto no artigo 32.º do RGPTC.

Dispõe-se nesta norma:

“1 - Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 63.º, podem recorrer o Ministério Público e as partes, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança.

3 - Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias.

4 - Os recursos têm efeito meramente devolutivo, exceto se o tribunal lhes fixar outro efeito”.

Significa isto que se aplica ao presente recurso o regime geral dos recursos em matéria cível.

Ora, como reconhece a recorrente, a providência tutelar cível tem, processualmente, a natureza de jurisdição voluntária (cfr. artigo 12.º do RGPTC) e, como tal, fica sujeita à disciplina vertida nos artigos 986.º a 988.º do CPC.

Adquire particular relevância, para os presentes efeitos, o artigo 988.º, n.º 2, do CPC, onde se diz que “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Quer isto dizer que, como se diz no sumário do Acórdão de 30.05.2019 proferido no Proc. 5189/17.7T8GMR.G1.S1 por esta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, que “haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito da revista [---] em função dos [---] fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de 'resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade'” [Já antecedido pelo Acórdão de 25.05.2017, Proc. 945/13.8T2AMD-A.L1.S1, também desta 2.ª Secção.].

Abandonando o critério da “mera qualificação abstracta de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade” e substituindo-o por um critério da qualificação concreta do fundamento do recurso, não pode deixar de se concluir que nenhuma das alegações da recorrente encerra uma questão de legalidade no sentido relevante para os efeitos do artigo 988.º, n.º 2, do CPC.

Apreciado, em concreto, o fundamento do recurso, verifica-se que a questão suscitada pela recorrente implica a ponderação de circunstâncias que, segundo ela, determinariam o afastamento do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais fixado pelo Tribunal recorrido e a repristinação do regime fixado pelo Tribunal de 1.ª instância.

É visível das conclusões que a recorrente pretende que seja dada à situação de facto uma valoração distinta da que consta do Acórdão recorrido e mais próxima daquela que foi realizada pelo Tribunal de 1.ª instância.

No entender da recorrente, o Tribunal recorrido andou mal e, por isso, pede que seja revisto o decidido quanto ao regime de residência da criança (a alteração do regime de residência junto da mãe para o regime de residência alternada) (cfr., sobretudo, conclusões 1, 3, 5, 8, 9, 11 e 18), bem como ao regime de gozo das festividades e férias (cfr. conclusões 2, 11, 12, 13, 14, 15 e 19).

No entender da recorrente, o Tribunal recorrido andou mal, designadamente, porque:

- “desconsiderou as circunstâncias revelantes concretas da menor em questão e do superior interesse da mesma” (cfr. conclusão 1);

- “desestruturou toda a dinâmica familiar e as circunstâncias e referencias de vida da mesma, de forma ilegal, absurda e arbitraria” (cfr. conclusão 2):

- “menosprezou as circunstâncias relevantes e concretas da vivência da menor EE que o Tribunal de Primeira Instância tinha ponderado” (cfr. conclusão 4);

- “não acedeu, avaliou e ponderou factos que constam dos autos e não usou as ferramentas para sopesar as circunstâncias concretas e casuísticas de cada criança” (cfr. conclusão 6);

- “não atendeu às “circunstâncias relevantes da menor EE e que justificam a distinção do regime de residência face aos irmãos” (cfr. conclusão 8);

- “desconsiderou os factos alegados e contraditados pela progenitora, sem procurar conhecer as circunstâncias relevantes em que o Tribunal de Primeira Instância tinha fundado a decisão de manter provisoriamente as rotinas e vontade da menor, prescindindo de usar os poderes de averiguação e análise de todos os factos e circunstâncias relevantes e constantes dos autos” (cfr. conclusão 9);

- “errada e ilegalmente, tratou as alegações do progenitor como factos únicos e, por isso, assentes e serviu-se dessas alegações para teorizar sobre benefícios gerais do regime de residência alternada, replicando extensivamente citações doutrinárias e jurisprudenciais de outras diferentes realidades e circunstâncias de tantos outros menores e de forma totalmente geral e abstrata” (cfr. conclusão 9);

- “o Tribunal da Relação deveria ter considerado determinados factos” (cfr. conclusão 10);

- “não ponderou as circunstâncias concretas e das vivências e interesses concretos da menor EE” (cfr. conclusão 12):

- “estabeleceu um regime susceptível de se traduzir, em concreto, no afastamento e segregação de uma criança de 10 anos do convívio com o demais agregado, sem quaisquer circunstâncias concretas que o justifiquem” (cfr. conclusão 16);

- “fixou um regime de guarda partilhada com residência alternada sem atender e nunca referir a situação concreta da menor” (cfr. conclusão 18); e

- “não teve em conta o caso concreto, mais parecendo que a decisão proferida terá sido pensada para uma família diferente, uma menor diferente, rotinas e horários diferentes e obviamente, totalmente alheios às circunstâncias relevantes da vida da EE e do respetivo agregado familiar” (cfr. conclusão 18).

Como é visível, a valoração que aqui está em causa é uma valoração meramente factual, circunstancial e casuística; não, de todo, uma valoração jurídica. Não pode, pois, ser objecto de revisão nesta sede.

Conforme se diz no Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de 11.11.2021, Proc. 1629/15.8T8FIG-D.C1.S1 [---], “a valoração dos factos em processos de jurisdição voluntária cabe exclusivamente às instâncias e não ao Supremo Tribunal de Justiça, por não estarem em causa questões de estrita legalidade”.

Por sua vez, o pedido formulado pela recorrente apela a um juízo baseado em critérios de conveniência ou oportunidade e não pressupõe qualquer processo de interpretação e aplicação da lei. Não pode, por isso, ser considerado aqui.

Conforme se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.11.2021, Proc. 1629/15.8T8FIG-C.C1.S1, “entre os casos típicos de decisões tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade estão aquelas em que sejam ou em que devam ser ponderadas as circunstâncias concretas da vida de um menor ou da vida dos seus progenitores para que seja tomada uma decisão sobre o regime de residência alternada [---] ou sobre o regime de visitas dos pais [---], de acordo com critérios de adequação e de razoabilidade (…). O facto de se alegar que foi violado um conjunto de disposições legais, sem especificar as razões de facto e de direito por que teriam sido violadas, não significa que sejam suscitadas questões de legalidade e, em todo o caso, nunca transformaria questões de conveniência ou de oportunidade em questões de legalidade [---]”.

Acresce que existe um segundo fundamento para a conclusão a admissibilidade da revista. Passa a explicar-se.

Sendo o presente recurso um recurso de revista, é ainda aplicável, por força do artigo 32.º do RGPTC, o artigo 671.º, n.º 1, do CPC, que respeita ao conteúdo do Acórdão recorrido.

O art. 671.º, n.º 1, do CPC é do seguinte teor:

“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

É entendimento corrente que o artigo 671.º, n.º 1, do CPC implica que “o âmbito do recurso de revista […] não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares” [Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Almedina, Coimbra, 2018, pp. 434-436 (p. 435)].

Mas ainda que este não fosse o entendimento corrente, sempre a admissibilidade do recurso deveria confrontar-se com o artigo 370.º, n.º 2, do CPC, cujo teor é o seguinte:

“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

Sucede que, no caso vertente, o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais foi fixado pelo tribunal nos termos do artigo 38.º do RGPTC, ou seja, foi fixado provisoriamente, em virtude da falta de acordo dos pais na conferência dirigida à homologação do acordo.

Na norma do artigo 38.º do RGPTC, que tem por epígrafe “Falta de acordo na conferência”, determina-se:

“Se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos, suspende a conferência e remete as partes para:

a) Mediação, nos termos e com os pressupostos previstos no artigo 24.º, por um período máximo de três meses; ou

b) Audição técnica especializada, nos termos previstos no artigo 23.º, por um período máximo de dois meses”.

A decisão em causa é, portanto, uma decisão provisória e, enquanto decisão provisória, é equiparada à decisão cautelar, ficando subordinada ao regime das decisões cautelares previstas no artigo 370.º, n.º 2, do CPC.

Isto porque, como bem se assinala no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2020, Proc. 2906/17.9T8BCL-O.G1.S1, “a razão justificativa da regra da irrecorribilidade do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil encontra-se na 'provisoriedade da providência cautelar […], não obstante a importância prática que ela possa concretamente ter para a realização do direito' [Cf. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 361.º a 626.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pp. 48-51 (p. 50)]” [---] e esta razão procede para a decisão provisória prevista no artigo 38.º do RGPTC.

Tem aqui particular interesse, dada a sua flagrante proximidade com o caso dos autos, é o Acórdão proferido por esta 2.ª Secção em 1.07.2021, no Proc. 4145/20.2T8PRT-B.P1.S1, em que se decidiu que “o acórdão recorrido versa sobre decisão provisória proferida nos termos do art. 38.º do RGPTC, a qual tem por fim a antecipada protecção e efectivação dos direitos da criança e é de equiparar a uma decisão cautelar, nos termos do art. 28.º do mesmo diploma legal” [---].

Assim, também com este fundamento a pretensão da recorrente quanto à admissibilidade do recurso teria de decair."

[MTS]


24/11/2022

A aplicação "por metade" do n.º 1 do art. 1437.º CC


1. Um recente acórdão da RL (de 10/11/2022 (1000/22.5T8OER.L1-2)) confronta-se com a interpretação da nova redacção do art. 1437.º, n.º 1, CC. Segundo o sumário do referido acórdão, nele defendeu-se que:

I - São da responsabilidade do condomínio – por força do art. 492/1 do CC ou, provado que este tem a coisa em seu poder, com o poder de a vigiar, por força do art. 493/1 do CC - os danos em bens de terceiro que advém da falta de conservação das partes comuns, excepto se se provar que essas partes comuns estão afectadas ao uso exclusivo de um condómino e o estado delas for imputável a esse condómino, caso em que é este o único responsável (art. 1424/6 do CC).

II - A acção a pedir aquela responsabilidade deve ser intentada contra o Condomínio representado pelo administrador (art. 1437/1 do CC).

2. Qual é o problema que este sumário levanta? Muito simplesmente este: o n.º II do sumário corresponde apenas a metade do disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC, porque este preceito estabelece (na nova redacção) o seguinte: "O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele".

Esta pergunta suscita uma outra: por que razão a RL não aplicou todo o disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC? Por uma razão muito simples, como, aliás, já se referiu em Jurisprudência 2022 (68): não é juridicamente possível aplicar todo o preceito. Na verdade, de duas, uma:

-- Ou a acção é proposta contra o condomínio (parte) representada pelo administrador (representante);

-- Ou a acção é proposta contra o administrador em nome do condomínio, sendo neste caso o administrador o substituto processual (ou seja, a parte presente em juízo) e o condomínio a parte substituída (isto é, a parte não presente em juízo).

Na verdade, um representante que demanda ou é demandado é uma impossibilidade processual e um representante que demandada ou é demandado em nome de outrem é um substituto processual. Lembre-se a lição elementar de Castro Mendes: "Estando a parte representada, parte é o representado, e não o representante. Se A propõe contra B uma acção como tutor de C, partes são C e B" (Castro Mendes, Direito Processual Civil II (1987), 7; a afirmação é naturalmente mantida em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 286).

Efectivamente, o representante de uma pessoa singular ou colectiva nunca pode ser parte, razão pela qual também nunca pode vir a ser demandante ou demandado e, consequentemente, também nunca pode vir a ser absolvido (da instância ou do pedido) ou condenado: numa situação de representação, quem pode ser absolvido ou condenado é apenas o representado. Simetricamente, quem é parte nunca pode ser representante. Em suma: a qualidade de parte e a de representante nunca podem estar reunidas numa mesma pessoa ou entidade.

Disto resulta que a primeira metade do art. 1437.º, n.º 1, CC é incompatível com sua a segunda metade, e vice-versa. No fundo, a primeira metade atribui ao administrador a qualidade de representante do condomínio e a segunda a de substituto processual desse condomínio. É escusado dizer que estas qualidades são mutuamente incompatíveis: o administrador ou está como representante do condomínio (que é a parte demandante ou demandada) ou está como como parte demandante ou demandada e, portanto, como substituto processual do condomínio (que, neste caso, é a parte substituída não presente na acção).

É por isso que, como se afirmou no referido comentário, há que escolher entre aplicar apenas a primeira ou apenas a segunda parte do disposto no n.º 1 do art. 1437.º CC. Afirmar que, como resulta da sua primeira parte, o condomínio é um demandante ou demandado representado pelo administrador e que, como decorre da sua segunda metade, este representante deve demandar e ser demandado em nome daquele condomínio é não só uma impossibilidade processual (o representante nunca pode demandar ou ser demandado), como, a ser tomado à letra o preceito, significa que se constitui um litisconsórcio necessário (!) entre o condomínio demandante ou demandado e o administrador igualmente demandante ou demandado.

Como é que a RL aplicou o n.º 1 do art. 1437.º CC? A resposta é clara: aplicando a primeira metade do preceito e ignorando a sua segunda metade. Importa referir que, no caso concreto, a RL aceitou a legitimidade passiva do administrador na acção de indemnização, mas não -- note-se -- com fundamento na segunda metade do art. 1437.º, n,º 1, CC, mas antes com base no estabelecido nos art. 492.º, n.º 2, e 493.º, n.º 1, CC.

3. No acórdão da RL refere-se que a tese da substituição processual (que era a única compatível com a anterior redacção do art. 1437.º, n.º 1, CC) "foi afastada e [...] não deve continuar a ser seguida, sob pena de se continuar a discutir uma questão com a qual a Lei quis acabar de vez, porque a incerteza dela resultante apenas traz prejuízos para as partes".

Esta afirmação da RL é talvez demasiada optimista. Afirmar que o legislador acabou de vez com uma discussão, quando a própria RL apenas aplica metade do n.º 1 do art. 1437.º CC e quando o preceito só "se salva" através de uma interpretação ab-rogante de uma das suas metades, talvez seja um pouco exagerado.

4. Aparentemente, está a prevalecer na jurisprudência uma interpretação que aplica a primeira parte do art. 1437.º, n.º 1, CC e "esquece" a segunda. Como já se disse. talvez não seja a solução preferível, mas, ao menos, consegue-se encontrar -- é verdade que à custa de uma ab-rogação de metade do preceito -- um campo de aplicação possível para o incompreensível n.º 1 do art. 1437.º CC.

MTS
 

Jurisprudência 2022 (73)


Assembleia de condóminos;
acta; título executivo


1. O sumário de RP 21/2/2022 (5404/09.0T2AGD-D.P1) é o seguinte:

I - À luz do preceituado no artigo 6º do DL n.º 268/94, de 25.10., na acta da reunião assembleia de condomínio cabem, enquanto título executivo, o montante das “contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum”, expressão esta que deve ser entendida em sentido amplo, incluindo:- as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício; - as despesas com inovações, as contribuições para o fundo comum de reserva; - o pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio; - as despesas com a reconstrução do edifício; - e ainda as penas pecuniárias fixadas nos termos do artigo 1434.º do Código Civil.

II - Ainda que, quanto a estas últimas, parte da jurisprudência as não inclua no âmbito da Acta, enquanto título executivo, julga-se, no entanto, que, tendo em conta também a recente intervenção do legislador (que pode ser qualificada como uma interpretação autêntica do legislador) através da alteração introduzida no nº 3 do art. 6º pela Lei 8/2022 de 10 de Janeiro (que ainda não entrou em vigor – cfr. art. 9º da citada Lei), deve passar a prevalecer esta última interpretação mais ampla, que considera abrangida pela referida expressão as penas pecuniárias, “desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio”.

III - Assiste ao condómino o direito de invocar o excesso da penalidade que lhe tenha sido aplicada, nos termos do artigo 812º CC, apesar de se manter dentro dos limites do n.º 2 do artigo 1434, º CC, pedindo a sua redução equitativa.


2, Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a recorrente discorda da decisão recorrida, considerando que as sanções pecuniárias deliberadas pela assembleia de condóminos não constituem “encargos do condomínio” e, por esse motivo, não se acham abrangidas no título executivo previsto no art. 6º, nº 1 do Dec. Lei nº 268/94, de 25.10.

Julga-se que a recorrente não tem razão.

De acordo com o nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 268/94, de 25/10 “a acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”.

No âmbito da acta, enquanto título executivo, cabem o montante das “contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum”, expressão esta que deve ser entendida em sentido amplo, incluindo:

- As despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício
- As despesas com inovações, as contribuições para o fundo comum de reserva,
- O pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio,
- As despesas com a reconstrução do edifício
- e ainda as penas pecuniárias fixadas nos termos do artigo 1434.º Civil - ainda que, quanto a estas últimas, parte da jurisprudência as não incluísse no âmbito da Acta enquanto título executivo [...].

Julga-se, no entanto, que, tendo em conta a recente intervenção do legislador (que pode ser qualificada como uma verdadeira interpretação autêntica do legislador [---]) através da alteração introduzida no nº 3 do art. 6º pela Lei 8/2022 de 10 de Janeiro (que ainda não entrou em vigor – cfr. art. 9º da citada Lei), deve passar a prevalecer esta interpretação que considera abrangida pela referida expressão as penas pecuniárias, devendo, assim, “considerar-se abrangidos pelo título executivo… as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio” – como esclarece agora a nova Lei [Revendo, face aos novos dados legislativos, a posição que havíamos assumido como Juiz Desembargador Adjunto (o presente Relator e a Primeira Juíza Desembargadora Adjunta) nos acs. da RP de 11.5.2020 (Processo n.º 13355/16.6T8PRT-A.P1), e de 8.09.2020 (Processo n.º 25411/18.1T8PRT-A.P1) em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Jorge Seabra e a posição assumida pela Exma. Sra. Juíza Adjunta no ac. da RP de 15.6.2020 por esta relatado (e em que interveio também a Exma. Sra. Juíza 2ª Adjunta).].

Neste sentido já se pronunciava Sandra Passinhas [In “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 319.], defendendo que, “embora, rigorosamente, a pena pecuniária não seja uma “contribuição devida ao condomínio”, esta é a solução mais conforme à vontade do legislador. Não faria sentido que a acta da reunião da assembleia que tivesse deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio servisse de título executivo contra o condómino relapso, e a mesma acta não servisse de título executivo para as penas pecuniárias, aplicadas normalmente para punir os condóminos inadimplentes (…)”, dispensando o condomínio de instaurar uma acção declarativa com o fim de obter a condenação do condómino relapso no pagamento da penalidade prevista para o atraso no pagamento das despesas comuns.

Nesta conformidade, julga-se, em face do exposto (e dos novos dados legislativos) que a expressão “contribuições devidas ao condomínio” deve ser entendida em sentido amplo (não nos atendo ao elemento literal da interpretação como defendia uma das correntes da Jurisprudência), nela se devendo incluir as penas pecuniárias fixadas nos termos do artigo 1434.º do Código Civil – como bem decidiu o tribunal recorrido.

Como decorre do exposto (e também da nova Lei), exige-se, no entanto, que as sanções pecuniárias tenham sido aprovadas em assembleia de condóminos ou tenham sido previstas no regulamento do condomínio, correspondam a uma obrigação líquida ou liquidável mediante simples cálculo aritmético e se encontre estabelecido o prazo da mora que origina a aplicação da multa.

Ora, compulsados os autos, pode-se facilmente verificar que das Actas dadas à execução como título executivo decorre, de uma forma linear, não só as sanções pecuniárias deliberadas, como o critério do seu cálculo (obrigação liquida ou liquidável mediante simples cálculo aritmético (0,25% por cada dia de atraso sobre as quotas em dívida) e foi ainda estabelecido um prazo para o condómino incumpridor poder pagar (15 dias após o envio da comunicação da acta), pelo que estão preenchidas as referidas exigências legais."

[MTS]