I. Se numa acção de preferência intentada pelos locatários relativamente à venda do prédio arrendado, os réus, para obstarem ao exercício deste direito pelos autores e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções peremptórias, invocam a de abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factum proprium e, simultaneamente, peticionam, através de reconvenção deduzida a título subsidiário, isto é, para o caso de a acção proceder a despeito da referida excepção peremptória (e das demais), que os autores reconvindos sejam condenados no pagamento de certas quantias, ora a título de despesas efectuadas ora de preços que alegadamente terão de satisfazer relativos a contratos de empreitada e de prestação de serviços entretanto celebrados, jamais este pedido subsidiário poderá lograr acolhimento.
II. Com efeito, procedendo tal defesa (julgando-se ilegítimo o exercício da preferência) e, consequentemente, improcedendo a acção, o negócio efectuado permanecerá incólume. Logo, não haverá fundamento para a reconvenção por inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.
III. Mas se, pelo contrário, improceder tal defesa e, por isso, proceder a acção (julgando-se legítimo o exercício daquele direito), então também não haverá qualquer actuação ilícita por parte dos autores arrendatários que fundamente a imputação e consequente responsabilização dos mesmos por aqueles alegados danos/prejuízos.
IV. Na verdade, constituindo o abuso de direito o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.
V. É que, sendo pressuposto do pedido reconvencional deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, a procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A matéria da admissibilidade da reconvenção, eternamente controversa em função das múltiplas especificidades de cada caso concreto e dos motivos e objectivos com que as partes lançam mão dela, está vastamente escalpelizada na Doutrina e na Jurisprudência.
Apenas se relembra, porque se considera estulto, inútil e fastidoso aqui repetir, o que se explana a tal propósito, v.g., nos Acórdãos desta Relação de Guimarães, de 10-07-2018 [8], da Relação do Porto, de 18-11-2019 [---], e de 10-02-2020 [---], da Relação de Coimbra, de 17-03-2020 [---] e, mais recentemente, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-03-2022 [---].
Neste, como, v.g., já nos anteriores Acórdãos da Relação do Porto, de 05-07-2011 [---], de 21-11-2019 [---] e de 13-10-2020 [---], abertamente se defende, em linha com os Mestres aí citados, a admissibilidade de dedução do pedido reconvencional em termos subsidiários, eventuais ou condicionais (para o caso de o pedido originário do autor ser julgado procedente).[---]
Observa-se, porém, como sinal de que nem sempre as coisas se apresentam assim tão simples e, portanto, aquele entendimento dotado de aptidão indiscutível para ser aplicado genérica e linearmente sem considerar as específicas diversidades apresentadas em função de cada caso concreto, que no Acórdão da Relação do Porto, de 18-06-2020 [---] se entendeu que “Não é admissível reconvenção condicional ou subsidiária, para a hipótese de procedência da acção, libertando-se o réu, por meio de compensação, da obrigação que o vinculava ao autor, tendo ele negado a existência do crédito que este tinha sobre si”.
Salienta-se, para tal, a incongruência que a dedução de uma tal reconvenção/compensação encerra [---], o que mostra que, para ser admissível o recurso a tal mecanismo, não basta a verificação das conexões estabelecidas na lei, sendo necessário que a subsidiariedade desta também com elas juridicamente se harmonize e apresente como viável.
Seja como for, o certo é que nos termos dos artºs 583º e 266º, CPC, o réu pode deduzir, em reconvenção, pedidos contra o autor, além de outras hipóteses de admissibilidade que não vêm ao caso:
Nos presentes autos, pretendem os réus, a título principal, que a acção de preferência proposta pelos alegados arrendatários de imóvel, a quem alegadamente não terá sido facultado o exercício do direito de preferirem na respectiva venda, seja julgada improcedente e, portanto, se decrete a sua absolvição total do pedido.
Entre os vários fundamentos (exceptivos e impugnatórios) aduzidos para sustentar essa pretensão, avulta o do abuso de direito, previsto no artº 334º, do CC, no caso invocado quanto à sua dimensão relativa à violação dos princípios da boa fé, na modalidade de venire contra factum proprium, e da confiança. [...]
Ora, como se viu, os réus apelantes, para obstaculizarem o exercício do direito de preferência e obterem a improcedência da acção e absolvição do pedido, entre outras excepções, designadamente peremptórias, alegaram a de “manifesto e gritante” abuso de direito (artº 334º, CC) na modalidade de venire contra factuam proprium “em combinação” com a violação da confiança: os autores tê-los-ão feito acreditar, com a sua conduta, activa ou omissiva e comunicações expressas, que eles não pretendiam exercer o direito de preferência e os réus, sobretudo a 1ª, crentes e confiantes na seriedade que tal postura aparentemente revelava, orientaram as suas decisões e acções em conformidade.
Contrariando, porém, as suas expectivas assim frustradas e lesando os seus interesses conjecturados e já implementados, afinal apresentaram-se aqueles, através da presente acção, a invocar a titularidade do direito de preferência e a pretender exercitá-lo judicialmente.
Configurando-se, assim, tal exercício como, em face de tais circunstâncias, “ilegítimo”, a proceder tal alegação, deverá improceder a acção.
É isso que pedem os réus apelantes a título principal na contestação.
E se tal pretensão for assim entendida, designadamente se o for com base no alegado abuso de direito por conduta contraditória, de má fé e violadora da confiança, isso significa que terá operado a primeira modalidade de sancionamento consequente à responsabilidade dos autores por desrespeito pelas expectativas geradas, qual é a de ficaram obrigados à conduta por eles assumida como “autovinculativa” e, portanto, terem de abrir mão do direito de preferência e do correspondente direito de acção a exercitá-lo, devendo o tribunal reconhecer como legítima e fundada a oposição dos réus à procedência do pedido.
Se assim for, isto é, se vingar a alegada tese do abuso de direito, permanecerá incólume a venda e inerte o direito de preferência. Logo, nenhuma pretensão mais, seja a relativa a despesas seja a prestações que a 1ª ré alega que teria de pagar “na mesma” em caso de desistência da empreitada “seja qual for a razão” ou do contrato de prestação de serviços, poderia, logicamente, pretender fazer repercutir sobre os autores.
Mas se assim não for e, portanto, para o caso de a acção proceder a despeito dessa excepção peremptória e das demais e, em resultado disso, terem de abrir mão da propriedade do imóvel, então pedem eles, subsidiariamente, através da reconvenção, que os autores sejam condenados no pagamento da quantia de 1.032,30€, a título de despesas, e mais 150.000,00€, quanto à empreitada e à prestação de serviços.
Ora, diz-se, em geral, subsidiário ou eventual o pedido, no caso reconvencional, que é apresentado ao Tribunal para ser tomado em consideração no caso de não proceder um pedido anterior (aqui, o principal), ou seja, o de improcedência total da acção à cabeça formulado pelos réus (artº 554º, do CPC).
O pedido reconvencional é fundamentado pelos reconvintes, como se viu, na tal segunda modalidade de sancionamento da conduta abusiva e de má fé – responsabilidade pela indemnização por danos causados.
Sucede, contudo, que a não procedência do pedido principal dos réus (de improcedência da acção) e a consequente procedência do pedido dos autores (o de preferência, exercitado através da acção) pressuporá necessariamente a falência em toda a linha da defesa por excepção peremptória (a arquitectada nos itens 1 a 204 da contestação) e, por isso mesmo, do alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium e da correspondente violação do princípio da confiança.
Ao invés, a procedência desta defesa por excepção peremptória implicará a improcedência da acção e, portanto, a inexistência dos prejuízos/danos alegados e peticionados subsidiariamente.
Constituindo este abuso o facto ilícito gerador do invocado direito de indemnizar e não podendo ele não ser (resultar não provado como excepção) e ser (resultar provado como um dos elementos da causa de pedir – o facto ilícito – complexa relativa à responsabilidade civil indemnizatória) ao mesmo tempo, ou seja, na mesma instância e relativamente ao objecto dela eventualmente modificado, soçobrar em sede de exceptio e renascer e prevalecer em sede de acção reconvencional, segue-se que este pedido, com tal fundamento e formulado naqueles termos, se apresenta ilógico, incoerente e inviável.
Sendo pressuposto do pedido deduzido como subsidiário a improcedência da defesa exceptiva (do abuso de direito) e, portanto, procedência da acção, a falha daquele (do inerente facto ilícito) implica a necessária e consequente impossibilidade de preenchimento do primeiro dos pressupostos fundamentadores da responsabilidade civil enquanto modalidade “sancionatória” da conduta contraditória e violadora da boa fé e da confiança.
Logo, o pedido subsidiário jamais poderá, por inconcludência, ser tomado em consideração no caso de não obter acolhimento o principal de improcedência da acção e de, portanto, os réus serem condenados no pedido.
Apesar de ele emergir de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pressupondo a sua viabilidade, nos termos da contestação, que a acção proceda, tal fundamento necessariamente haverá, então, de soçobrar e resultar inapto para obstar a esta procedência, pelo que, assim sendo, jamais poderão os autores ser condenados nas alegadas despesas de 1.032,30€ e prestações contratuais a terceiros de 150.000,00€ a título de responsabilidade civil sancionatória da violação dos princípios da boa fé e da confiança uma vez que na procedência da acção estará compreendido o reconhecimento do seu direito a preferirem e a negação aos réus da pretensão de tal impedirem.
Não é, pois, por a causa de pedir reconvencional invocada pela ré “nada ter a ver com a formulada pelos autores” que o pedido é inadmissível. Na verdade, ao fundamentar-se a “compensação visada” na violação da confiança que o exercício da preferência pelos autores apelados alegadamente representa, o nexo com o objecto da acção existe.
Nem deixa de o ser por aquela “assentar em relações contratuais com terceiros”. Com efeito, do exercício da preferência sempre poderia resultar a frustração daquelas bem como os inerentes prejuízos, situação que não existiria se não fosse a conduta abusiva e violadora da confiança.
Só que, alegando-se, a título principal aquela violação, no caso de a mesma proceder, não procederá a acção e, em consequência de tal resultado, subsistindo a venda efectuada pelos 2ºs à 1ª ré, não se verificará a condição (“não proceder o pedido anterior”) de que depende o pedido subsidiário. [...]
Contrariamente, se eles improcederem, subsistirá o direito de preferência. Porém, mesmo que se verifiquem os alegados prejuízos, jamais poderão ser eles causalmente atribuídos a tal facto ilícito e imputáveis aos autores na medida em que, então, será lícita e não censurável a sua actuação.
Daí que, mesmo tendo em conta as vantagens normalmente referidas ao mecanismo da reconvenção (celeridade, economia, concentração da prova e solução mais justa e coerente do litígio num só processo), não se vê como, seja à luz da alínea a), seja da parte final da alínea b), do nº 2, do artº 266º, CPC, possa, subsidiariamente à procedência da acção e à improcedência da defesa exceptiva, com base, ainda, na violação da boa fé e da confiança, admitir-se o pedido reconvencional indemnizatório respeitante àquelas quantias.
Em suma, a pretensão recursiva formulada a título principal não tem o mérito de reverter a decisão recorrida, devendo ser julgada improcedente.
E quanto à pretensão recursiva formulada subsidiariamente?
Argumentam os apelantes que, no caso de procedência da acção de preferência tal implicará a substituição ex tunc do comprador pelos preferentes e que, por isso, tomando estes o lugar daquele, aproveitam das aludidas “despesas diversas” no total de 1.032,30€, isto é, as relativas a “DPA, Depósito, Cópias Certificadas e Registo” (672,30€) e as de imposto de selo (360,00€).
Concluem que delas devem ser reembolsados ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa.
Amparam-se no que a Doutrina e a Jurisprudência do Supremo terão alegadamente já entendido e este decidido.
Ora, aceitando-se que efectivamente aquela “substituição” no contrato de compra e venda é a consequência da procedência da acção, já não se aceita que, a pretexto do invocado regime do enriquecimento, a reconvenção seja admissível ao menos quanto a tais despesas.
Desde logo, além das do registo e do imposto, não se sabe ao que respeitam exactamente as demais nem o documento (nº 15) apresentado pelo Agente de Execução tal elucida.
Depois, não apontam, afinal os apelantes um único aresto concreto nem citam qualquer consideração doutrinária em que tal possibilidade se defenda e afirme.
Também não justificam eles como “enriquecem” e se “locupletaram” com tais despesas “indevidamente recebidas” os autores, nem “à custa” de quem se dá o empobrecimento e deve “restituir”.
Muito menos alegam eles que inexista outro meio de serem indemnizados ou restituídos (artºs 473º e 474º, CC), de modo a convencer que há lugar à aplicação subsidiária do instituto do enriquecimento, nem como se coaduna tal invocação com a alínea a), do nº 2, do artº 266º, CPC, preconizada como base da admissibilidade do pedido com aquele fundamento.
Na verdade, os autores, a proceder a acção, ter-se-ão limitado a exercer o seu direito de preferência, daí não lhes advindo qualquer outra responsabilidade traçada na lei senão a de depositarem o preço (que jamais se refere a outras despesas).
Por outro lado, também a ser reconhecida a preferência, tal significará que na conduta dos obrigados a dá-la (e não na do preferente) residirá a causa dos prejuízos do adquirente preterido e que, portanto, é na relação entre ambos que o eventual direito a ser por eles indemnizado deve ser discutido."
*3. [Comentário] Os réus deduziram uma reconvenção subsidiária. A RG nada opôs à admissibilidade da reconvenção subsidiária qua tale (como, aliás, se impõe), mas considerou que entre essa reconvenção (deduzida para o caso de procedência da acção) e esta procedência não existe nenhuma conexão objectiva. Nesta base, a RG decidiu bem.
MTS