"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/01/2017

Jurisprudência (532)


Dívidas dos cônjuges; dívidas comuns
incidente de comunicabilidade


1. O sumário de RP 10/10/2016 (157/14.3T8LOU-C.P) é o seguinte:
 
I - O artigo 741.º do Código de Processo Civil tem como razão de ser a questão da comunicabilidade da dívida independentemente da legitimidade para a execução; através deste incidente de comunicabilidade da dívida, passa a integrar a execução o cônjuge que não constava do título executivo como devedor, no pressuposto, obviamente, de que se verificam os pressupostos de responsabilização enunciados no artigo 1691.º do Código Civil.
 
II - O facto de a execução ter sido instaurada inicialmente contra os dois cônjuges e ter sido afirmada a ilegitimidade de um deles não obsta a que se suscite o incidente quando a apreciação da questão da legitimidade teve a ver com razões formais.
 
2. Na fundamentação do acórdão encontra-se o seguinte:
 
"O incidente previsto no artigo 741.º do [CPC] permite dar resposta às situações em que, tendo o credor título executivo relativamente a um dos cônjuges e podendo por isso, perante a regra do citado artigo 53.º, promover a execução contra ele e penhorar bens deste cônjuge e a sua meação nos bens comuns (dívida própria porque existe título executivo contra um só dos cônjuges), a dívida seja, do ponto de vista do direito civil, uma dívida comum (a relação jurídica que está na originem da dívida e que determinou a emissão do título é comum).

O exequente vê assim aumentar a garantia do seu crédito, com a ampliação dos bens sujeitos a penhora. Com referência ao título executivo, só um dos cônjuges aí consta como obrigado, o que legitima que figure como executado; no entanto e apesar de, por esse motivo, a execução ter sido movida exclusivamente contra este devedor que consta no título executivo, a dívida é verdadeiramente da responsabilidade de ambos os cônjuges, à luz das regras de direito civil, especificamente, do disposto no artigo 1691.º do Código Civil, particularmente o seu n.º 1; então, perante o que estabelece esta norma de direito substantivo, o exequente pode lançar mão da alegação da comunicabilidade da dívida de modo a poder chamar à execução o cônjuge do devedor.

O artigo 741.º do Código de Processo Civil tem como razão de ser a questão da comunicabilidade da dívida independentemente da legitimidade para a execução; através deste incidente de comunicabilidade da dívida, passa a integrar a execução o cônjuge que não constava do título executivo como devedor, no pressuposto, obviamente, de que se verificam os pressupostos de responsabilização enunciados no artigo 1691.º do Código Civil, antes citado.

Reportando-nos ao caso dos autos, considerou-se na sentença recorrida:

«(…) O título executivo dos autos são cheques (portanto, cumprindo o primeiro requisito do art. 741.º, sendo distintos de sentença), sendo certo que o requerido não é executado nos autos, pois foi absolvido da instância executiva, decisão essa que transitou em julgado, pois não foi posta em causa nessa parte.

Cumpre, pois, dizer que há que admitir o requerimento de incidente da comunicabilidade da dívida em relação a um requerido que deixou de ser executado nos autos por uma questão formal de falta de título executivo e considerando a literalidade do mesmo (um cheque – cfr. as razões apontadas na decisão então proferida), requerimento esse que foi tempestivamente apresentado, por apenso (como era suposto nesta fase processual e atualmente perfeitamente admissível).

Entender de outra forma, seria coartar direitos a todo e qualquer exequente, que vendo indeferida a pretensão de demandar determinada pessoa como executado, ficaria desde logo impedido de requerer qualquer incidente de comunicabilidade da dívida entre cônjuges.

É certa, pois, a legitimidade do requerente e do requerido para o incidente de comunicabilidade da dívida, além da aludida tempestividade do requerimento apresentado.
É também certo que a dívida em causa é comum, contraída no exercício do comércio até de ambos os cônjuges, sendo, pois, a responsabilidade comum dos cônjuges. Isto se afere da matéria de facto dada como provada (factos 4.º a 6.º): (…).

Com tal matéria dada como provada mostram-se desde logo preenchidos os pressupostos do art. 1691.º, n.º 1, al. d), do C.C., que dispõe que: “são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens” (sendo certo que as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio – art. 15.º do C.Com.).

Mas, mais do que isso, considera-se que a dívida em causa foi contraída por ambos os cônjuges [al. a) do referido preceito legal], daí a responsabilidade ser comum.

Provada substantivamente a existência da dívida a e responsabilidade comum de ambos os cônjuges, tem de proceder o incidente suscitado de comunicabilidade da dívida.»

O recorrente não discute aqui a questão substancial, relativamente à dívida a que se reportam os autos, especificamente, a sua qualificação como dívida comum – com referência ao disposto nas normas de direito civil e de direito comercial antes citadas – e que legitima a afirmação da sua comunicabilidade.

Entende no entanto que, perante os termos iniciais da ação executiva, os embargos que deduziu e a decisão que nestes foi proferida, em que foi absolvido da instância por ter sido julgado parte ilegítima, não pode afirmar-se que a execução dos autos principais foi movida apenas contra um dos cônjuges, dado que o foi contra os dois, sendo que um foi julgado parte ilegítima; considera que estas circunstâncias impedem inexoravelmente a aplicação do artigo 741.º do Código de Processo Civil, podendo a execução dos autos principais prosseguir contra si apenas perante a interposição de nova execução, onde se demonstre a legitimidade dele, e após ser admitida a cumulação com aquela, apoiada no disposto no artigo 709.º do Código de Processo Civil, invocando ter a seu favor, até à aludida cumulação, a força do caso julgado formal da sentença onde foi julgado parte ilegítima na execução dos autos principais e afirmando que a decisão recorrida, aplicando erradamente o artigo 741.º, violou o que consigna o n.º 1 do artigo 620.º do Código de Processo Civil.

Não se afigura que lhe assista razão.

O artigo 620.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “caso julgado formal”, estabelece que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, com exceção dos despachos de mero expediente ou que sejam proferidos no uso legal de um poder discricionário.

O caso julgado formal obsta a que o juiz possa, na mesma ação, alterar a decisão proferida, evitando que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º do Código de Processo Civil), não impedindo no entanto que, noutra ação, a mesma questão processual seja decidida de modo diferente pelo mesmo tribunal ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.

Está em causa a decisão proferida pelo tribunal no despacho saneador, não no âmbito do presente apenso, mas antes no apenso de embargos de executado, tendo em comum com os presentes autos a execução para pagamento de quantia certa a que ambos os apensos se reportam. Como antes se mencionou, aí se afirmou a ilegitimidade do agora requerido e recorrente, tendo sido efetuada a apreciação e sustentando-se a decisão proferida no disposto no artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; a exclusão do recorrente assenta no facto de não figurar nos aludidos títulos executivos, particularmente, como devedor: na generalidade dos títulos figura apenas como devedora C…, na medida em que foi ela que emitiu os cheques.

Perante isso e apenas com este fundamento se decidiu a exclusão do requerido, por falta de legitimidade, à luz do citado artigo 53.º.

O facto de a execução ter sido instaurada inicialmente contra os dois cônjuges não obsta a que se suscite o incidente quando a apreciação da questão da legitimidade tenha a ver com razões formais.

A apreciação feita no âmbito do presente incidente e que culmina com a decisão recorrida radica em fundamento completamente diverso: fazendo apreciação de mérito, à luz do disposto nos artigos 1691.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil e 15.º do Código Comercial, e reportando-se à relação subjacente à emissão dos títulos, conclui que a dívida obriga também o requerido D….

Esta apreciação e a correspondente decisão constam apenas na decisão recorrida, não se confundindo com a decisão que, por falta de legitimidade, dado não constar nos títulos executivos, determinou a exclusão do requerido.

Conclui-se por isso que a concreta questão apreciada no despacho recorrido no âmbito do presente incidente não foi proferido nos autos, em despacho anterior, com trânsito em julgado, mesmo acolhendo como elemento comum a execução de que o presente incidente e os embargos de executado são apenso, não se verificando os pressupostos do caso julgado formal."
 
[MTS]