"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/01/2017

Apontamento sobre o regime de alimentos entre ex-cônjuges no direito alemão


1. Os tribunais portugueses têm sido chamados a pronunciar-se sobre a alteração de prestações de alimentos entre ex-cônjuges com base no direito alemão como lei aplicável ao caso (cf., por exemplo, RC 31/5/2016 (582/13.7TMCBR.C1); STJ 29/11/2016 (582/13.7TMCBR.C1.S1)). É discutível que o tenham feito de forma correcta, pelo que se deixa a seguir um breve apontamento sobre a matéria, pensando, fundamentalmente, em futuros casos análogos.

2. O primeiro aspecto a referir é o seguinte: segundo o disposto no § 1569 BGB, vale no direito alemão quanto a alimentos entre ex-cônjuges o "princípio da auto-responsabilidade", segundo o qual, após o divórcio, incumbe a cada ex-cônjuge cuidar da sua própria subsistência (sobre a justificação do legislador alemão, cf. BT-Drs. 16/1830, 16 s.). Em conformidade com aquele princípio, o § 1574 BGB estabelece a regra de que incumbe ao cônjuge divorciado o exercício de uma adequada actividade profissional.

O § 1569 é um preceito programático, pelo que dele não decorre nem a atribuição, nem a recusa de nenhuma prestação de alimentos (BeckOK BGB/Beutler BGB (2016) 1569 1; MüKoBGB/Maurer BGB (2017) § 1569 1, 5 e 24). A intenção do legislador da UÄndG de 2007 (BGBl I S. 3189) foi a de aumentar a independência económica da mulher e a de assegurar a protecção dos filhos comuns (cf. BT-Drs. 16/1830, 12).

Na sequência do "princípio da auto-responsabilidade", o § 1578 BGB, depois de estabelecer a regra de que, após o divórcio, cada um dos ex-cônjuges deve assegurar a sua própria subsistência, determina que pretensões alimentícias de um dos ex-cônjuges contra o outro ex-cônjuge só são reconhecidas quando se verifique um dos casos excepcionais referidos nos §§ 1570 a 1576 BGB (cf. HK/Rainer Kemper BGB (2017) § 1569 1; acentuado esta excepcionalidade, cf. BT-Drs. 16/1830, 16; BeckOK BGB/Beutler BGB 1569 5; MüKoBGB/Maurer BGB § 1569 6). 

3. O dever de prestação de alimentos após o divórcio tem de ter um fundamento legal específico. O BGB enuncia os seguintes possíveis fundamentos para a imposição da prestação de alimentos por um dos êx-conjuges ao outro: assistência prestada a um filho comum (§ 1570), idade (§ 1571), doença ou invalidez (§ 1572), impossibilidade de obtenção de meios de subsistência (por desemprego, por exemplo) (§§ 1573 e 1574), educação, continuação da educação ou reeducação profissional (§ 1575) e, por fim, equidade (§ 1576).

4. a) O dever de prestar alimentos rege-se pelos requisitos habituais da necessidade do ex-cônjuge credor (§ 1577 (1) BGB) e pela possibilidade do ex-cônjuge devedor (§ 1581 BGB). Específico do direito alemão é que a imposição da prestação de alimentos, mesmo quando seja devida por um dos referidos fundamentos, não pode ser contra a equidade (§ 1578b BGB). 

Isto mostra que o regime alemão comporta duas restrições quanto à imposição de uma obrigação de prestação de alimentos por um dos ex-cônjuges ao outro:

-- A obrigação tem de ter cobertura numa das normas (consideradas excepcionais) que se encontram nos §§ 1570 a 1576 BGB;

-- Além disso, a necessidade de um dos ex-cônjuges receber alimentos do outro tem de resultar de circunstâncias respeitantes ao casamento entretanto dissolvido (cf. § 1578b BGB) 

A interpretação e a aplicação deste preceito suscitaram algumas dificuldades e conduziram a alguns equívocos na jurisprudência portuguesa acima referida, pelo que importa procurar explicar o seu conteúdo.

b) O disposto no § 1578b BGB (introduzido em 2007) tem de ser visto em conjugação com o estabelecido no § 1578 BGB, já que os preceitos se conjugam reciprocamente como excepção e como regra.

O § 1578 BGB estabelece o princípio de que a medida da prestação de alimentos se determina de acordo com o nível de vida existente no casamento. É a esta regra que o § 1578b BGB estabelece uma excepção: a prestação de alimentos devida por um dos ex-cônjuges ao outro pode ser restringida (quer no quantum, quer no tempo, quer num e noutro) quando a capacidade deste último para obter meios de subsistência não esteja afectada ou diminuída por circunstâncias decorrentes do casamento dissolvido (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1569 4). 

É este o sentido essencial do § 1578b BGB. Este preceito restringe a prestação de alimentos ao ex-cônjuge credor quando a capacidade de assegurar a sua subsistência não tenha ficado prejudicada por desvantagens decorrentes do casamento (ehebedingte Nachteile, na expressão da jurisprudência e da doutrina alemãs). Segundo a jurisprudência do BGH, essas desvantagens devem ser determinadas através de uma comparação entre a hipotética capacidade de obtenção de rendimentos e os rendimentos realmente obtidos pelo ex-cônjuge (BeckOK BGB/Beutler BGB 1578b 13).

É por isso que se costuma dizer que o § 1578b BGB contém uma "cláusula de dureza" (Härteklausel) (cf. HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1578b 4). Em concreto: a prestação de alimentos devida pelo ex-cônjuge deve ser tão mais restringida quanto menores forem as circunstâncias desvantajosas resultantes do casamento para o ex-cônjuge credor quanto à sua capacidade para angariar meios de subsistência (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1578b 2).

Segundo o disposto no § 1578b (1) BGB, são consideradas como desvantagens decorrentes do casamento os cuidados ou a educação de um filho comum ou a conjugação da actividade doméstica com o exercício de uma actividade profissional. A enumeração não é taxativa, pelo que podem ser consideradas outras desvantagens resultantes do casamento para o ex-cônjuge credor, como, por exemplo, a assistência prestada por este ao outro cônjuge ou a um seu familiar próximo (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1578b 8a), os fundamentos da ruptura do casamento (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1578b 10) ou a própria duração do casamento (BeckOK BGB/Beutler BGB 1578b 20 ss.). O BGH refere-se, neste contexto, a uma "solidariedade pós-casamento" (nacheheliche Solidarität) entre os ex-cônjuges (BeckOK BGB/Beutler BGB 1578b 24).

c) As consequências da verificação da "cláusula de dureza" podem ser, segundo o disposto no § 1578b BGB, a redução da prestação de alimentos devida pelo ex-cônjuge (1), a sua limitação temporal (2) ou a combinação daquela redução com esta limitação (3).
 
d) A "cláusula de dureza" constante do § 1578b BGB é uma excepção oponível ao ex-cônjuge credor, pelo que incumbe ao ex-cônjuge devedor invocá-la contra o ex-cônjuge credor (BeckOK BGB/Beutler BGB 1578b 40; HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1578b 31; MüKoBGB/Maurer BGB 1578b 11).

5. O § 1581 BGB determina que o devedor, que, segundo as suas condições profissionais e patrimoniais e atendendo às suas demais obrigações, não está em condições de, sem colocar em risco a sua sua própria subsistência, assegurar alimentos ao outro ex-cônjuge, só tem o dever de prestar o que, com consideração da necessidades e das condições profissionais e patrimoniais deste, corresponder à equidade.

O § 1581 BGB é aplicável sempre que as possibilidades do devedor de alimentos não sejam suficientes para assegurar a totalidade dos alimentos quer a si próprio, quer ao ex-cônjuge necessitado (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1581 10). A aplicação do § 1581 BGB pressupõe as seguintes operações (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1581 10):

-- Primeiro, determina-se, segundo o parâmetro do § 1578 BGB (isto é, segundo o princípio da manutenção do nível de vida do casamento), qual a prestação de alimentos que seria a adequada para o ex-cônjuge credor;

-- Depois, calcula-se, também segundo o parâmetro do § 1578 BGB, qual a necessidade de alimentos do próprio ex-cônjuge devedor;

-- Finalmente, determina-se se o ex-cônjuge devedor está em condições de assegurar ambas as necessidades.

Normalmente, isso não sucede, pelo que o ex-cônjuge devedor só tem de assegurar ao outro o que corresponder à equidade. Em vez de uma prestação globalmente considerada, é determinada uma prestação quantificada em termos individuais, dado que o tribunal deve ponderar, em conjunto e em confronto umas com as outras, as necessidades de cada um dos ex-cônjuges (HK-BGB/Rainer Kemper BGB § 1581 11).

6. Duas informações finais:

-- Na Alemanha, é comum os tribunais solicitarem a Institutos de Direito Comparado ou a especialistas informações sobre direito estrangeiro; por curiosidade, isso já aconteceu com o subscritor deste apontamento; talvez aquela experiência possa ser replicada noutras geografias;

-- Uma versão inglesa do BGB pode ser encontrada aqui.

MTS