"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/01/2017

Jurisprudência (538)


Decisão sobre matéria de facto; anulação pela Relação;
decisão da Relação sobre a matéria de direito


1. O sumário de STJ 6/10/2016 (539/05.1TBCBC.G2.S1) é o seguinte:

I - A anulação do julgamento tendo em vista a ampliação da matéria de facto não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições (art. 662.º, n.º 3, al. c) do CPC) daqui resultando que não é admissível a produção de nova prova ou a renovação de prova incidente sobre a parte da decisão que não esteja viciada.

II - Assim sendo, o Tribunal da Relação que determinar a anulação da decisão tendo em vista a ampliação da matéria de facto não incorre em qualquer nulidade, designadamente excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC), quando aprecia os recursos interpostos na parte em que impugnam a matéria de facto no tocante aos factos que não sejam suscetíveis de estar em contradição com os factos a aditar mercê da ampliação.

III - No tocante às questões de direito que o Tribunal da Relação haja tratado tendo em vista justificar a ampliação da matéria de facto, a primeira instância não está vinculada aos entendimentos assumidos pelo Tribunal da Relação contrariamente ao que sucede quando o STJ manda julgar novamente a causa, definindo o direito aplicável nos termos do artigo 683.º, n.º 1 do CPC.

IV - Se o Tribunal da Relação, no entanto, decidir algum dos pedidos e simultaneamente anular a decisão de 1.ª instância para ampliação da matéria de facto e verificando-se que o recurso interposto pelo recorrente vencido relativamente a esse pedido não foi admitido pelo STJ com base no entendimento de que, em caso de anulação, não releva processualmente o decidido na Relação que extravase o âmbito da anulação, então, nesse caso, os princípios do acesso ao direito e da segurança jurídica impõem que não se considerem precludidas, por força da decisão da Relação, a apreciação das questões de direito suscitadas.

V - No contrato de empreitada, o dono da obra não rescinde validamente o contrato se, ainda no decurso do prazo para conclusão da obra, interpela o empreiteiro para prosseguir os trabalhos no prazo máximo de 3 dias sob pena de considerar que houve abandono da obra e o contrato rescindido por culpa do empreiteiro, constatando-se que o empreiteiro não abandonou a obra e nela procedia a trabalhos embora com interrupções.

VI - Se o dono da obra, nas mencionadas circunstâncias, impedir subsequentemente o empreiteiro de aceder à obra e entregar a conclusão da empreitada a outro empreiteiro, tal situação configura desistência da empreitada (art. 1229.º do CC).
 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
 
"20. A primeira questão suscitada pelos recorrentes é a de saber se a anulação do julgamento pelo acórdão da Relação implicava a realização de um novo julgamento a incidir não apenas sobre as questões de facto que foram objeto de ampliação, mas também sobre a restante matéria de facto isto por força da decisão proferida no STJ pelo juiz relator que, não admitindo o recurso interposto pelos RR do acórdão da Relação na parte em que julgou improcedente a apelação, teria admitido que o julgamento incidisse sobre todas as questões suscitadas [...].

21. Sustentam ainda que as questões de direito, objeto de recurso para o STJ do acórdão anulatório, têm de ser apreciadas, pois viram-se confrontados com uma decisão definitiva dessas questões feita no acórdão anulatório e que não voltaram a ser apreciadas como era sua expectativa e legítimo direito em conformidade com o entendimento do STJ, incorrendo o acórdão em nulidade por omissão de pronúncia (artigo 615.º/1, alínea d) do CPC/2013).

22. O artigo 712.º/4 do CPC com a redação vigente à data (10-4-2012) em que foi proferido o acórdão que anulou a sentença de 1ª instância prescrevia que, no caso de anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, "a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão"; o texto atual (artigo 662.º/3, alínea c) do CPC/2013) prescreve identicamente que "se for determinada ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições".

23. Não se suscita, pois, dúvida nenhuma de que o julgamento de facto se reconduz à matéria objeto de ampliação e, por isso, os réus não poderiam na 1ª instância pretender produzir novamente prova sobre matéria de facto que já tinha sido objeto de julgamento.

24. A anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto a implicar uma nova sentença em sede de facto e em sede de direito não obsta a que o acórdão que decidiu anular o julgamento se pronuncie sobre a matéria de facto que foi objeto de impugnação, consolidando-se, nessa parte, o julgamento da matéria de facto. 

25. Não se compreenderia, na verdade, desde logo por razões de economia processual e com base ainda no princípio de que devem ser resolvidas todas as questões suscitadas que não se mostrem prejudicadas, que os recursos interpostos no que respeita à impugnação da matéria de facto - designadamente aquela que não esteja conexionada ou dependente dos factos a aditar, não podendo, portanto, entrar com eles em contradição - não pudessem ser objeto de conhecimento pela Relação. O não conhecimento do recurso interposto pelos recorrentes no tocante a tais factos apenas porque o julgamento foi objeto de anulação tendo em vista apreciar factos que não tinham até então sido apreciados, impor-lhes-ia o ónus de, face ao novo julgamento, repetirem a impugnação da matéria de facto sem que daí se veja qualquer vantagem.

26. O Supremo Tribunal de Justiça não conhece de questões de facto e, por isso, os seus poderes de cognição estão limitados nos termos que constam do artigo 674.º/3 do CPC; daqui resulta que a anulação do julgamento tendo em vista a ampliação da matéria de facto determinada pela Relação não impede que se tenha por precludida a impugnação da decisão sobre os factos que foram já objeto de julgamento e de impugnação sujeita a apreciação pelo Tribunal da Relação, última instância em matéria de facto. Na verdade, os factos fixados pela Relação, nos termos assinalados, não podem ser alterados com base numa segunda e repetida impugnação da matéria de facto. Esta é a consequência que advém do facto de a lei não permitir a repetição do julgamento quanto à parte da decisão que não esteja viciada, ou seja, a decisão sobre matéria de facto. 

27. Já o mesmo entendimento não é de perfilhar tratando-se de questões de direito. Não sendo admitido o recurso interposto por uma das partes do acórdão da Relação com fundamento na sua não admissibilidade quando haja anulação da decisão recorrida tendo em vista a ampliação da matéria de facto por provimento do recurso interposto pela outra parte, e não fixando a lei em sede de direito qualquer preclusão, entende-se que a decisão proferida pela Relação sobre questão de direito não é, em tais circunstâncias, uma decisão definitiva, não produzindo caso julgado.

28. Tal decisão não terá, assim, tratamento diverso daquele que é conferido às decisões da Relação que, na base de uma determinada interpretação de direito, determinam a anulação do julgamento para ampliação ou esclarecimento da matéria de facto (ver Ac. do STJ de 3-3-2016, rel. Fernanda Isabel Pereira, P. 5429/11). 

29. A decisão do relator junto do STJ parece ir ainda mais além quando considera que não releva processualmente o decidido na Relação que extravase do âmbito da anulação, admitindo implicitamente que, mesmo no tocante à matéria de facto, a decisão não constitua caso julgado material. Seja como for, o que a decisão do STJ não consente é o entendimento de que a parte, anulado que seja o julgamento de 1ª instância para ampliação da matéria de facto, possa voltar a produzir prova sobre os aludidos factos, o que traduziria desrespeito do disposto no mencionado artigo 662.º/3, alínea c) do CPC/2013. Ora, sendo esta a pretensão dos réus, ela não pode merecer acolhimento na base de um igual entendimento por parte do STJ que não existiu.

30. Refira-se que nada obsta a que a parte impugne a matéria de facto, face à nova decisão proferida em matéria de facto resultante da ampliação da matéria de facto, quando esteja em causa a alteração de factos que não se compatibilizem com os factos provados no primeiro julgamento. Se essa alteração foi correta ou não, isso é sindicável em sede de facto. Mas isto é diferente de se admitir uma impugnação dos factos fundada nos mesmos meios de prova que estiveram na base da sua apreciação no primeiro julgamento e no recurso para a Relação.

31. Para o recorrente o que está em causa é a possibilidade de produzir prova sobre toda a matéria de facto. Neste ponto, que é o que delimita a sua pretensão, nenhuma razão lhe pode ser dada. Desde logo porque a lei expressamente não admite nestas condições - no caso de ampliação da matéria de facto - a renovação dos meios de prova sobre a parte da decisão que não está viciada. E depois porque não resulta da decisão do juiz relator do STJ que em tal caso seja admissível renovação ou mesmo nova produção de prova sobre tais factos, não podendo, por conseguinte, o recorrente acobertar-se na ideia de que a segurança jurídica do processo está posta em causa por não haver coincidência entre a orientação assumida pelo tribunal de primeira instância que restringiu os limites da deliberação à matéria do incumprimento [...] e a orientação que promana da decisão do relator que no STJ não admitiu o recurso interposto pelos RR do acórdão da Relação."

3. [Comentário] O acórdão tem vários pontos de interesse, sendo que o principal dos quais é o que se refere à não vinculação das partes, do tribunal de 1.ª instância e do STJ à decisão da Relação que, conjuntamente com a anulação da decisão da matéria de facto, conhece do correspondente pedido.

Esta actuação da Relação, embora se desconheça em que circunstâncias concretas se verificou, não deixa de ser contraditória. Se o julgamento da matéria de facto deve ser anulado, não se compreende que a Relação conheça do respectivo pedido. Foi nesta base que o Relator da revista que então foi interposta para o STJ afirmou que "o decidido na Relação que extravasa do mencionado âmbito (anulação do julgamento), não havendo, pois, ainda e sequer, qualquer relevante decisão da 1ª instância a legitimar correspondente tomada de posição por parte da Relação e, pois, interposição de recurso para este Supremo". 

Contendo o acórdão da Relação decisões incompatíveis, poder-se-ia até dizer que esse acórdão seria nulo por contradição entre os fundamentos que justificam a anulação da decisão sobre a matéria de facto e o conhecimento do respectivo pedido (cf. art. 615.º, n.º 1, al. c), e 666.º, n.º 1, CPC). Compreende-se, no entanto, que o primeiro relator do STJ tenha dado preferência à decisão sobre a matéria de facto e não atribuído nenhum valor à decisão sobre o pedido, dado que a fixação daquela matéria é prévia a qualquer decisão de direito sobre este pedido

O actual acórdão adopta a mesma posição, apenas acrescentando, em total coerência, que não há nenhuma preclusão quanto ao conhecimento, na revista que apreciou, daquela matéria de direito.

MTS