"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/01/2017

Jurisprudência (523)


Obrigação de alimentos; alteração;
FGADM


1. O sumário de STJ 13/9/2016 (671/12.5TBBCL.G1.S1) é o seguinte:

I - A aferição da existência da oposição expressa entre acórdãos há-de ser feita em relação à questão ou questões concretamente decididas nas decisões e não aos argumentos ou fundamentos nelas utilizados, pelo que deparamos com uma efectiva oposição expressa entre o acórdão recorrido e o de uma outra Relação se ambas as respectivas decisões, debruçando-se sobre situações com contornos e particularidades inteiramente idênticas, solucionaram de modo radicalmente discordante a análoga questão fundamental de direito, fazendo das mesmas disposições legais uma interpretação e aplicação opostas, independentemente da argumentação que utilizaram ou de numa das decisões não estar inteiramente expresso o raciocínio lógico que lhe esteve subjacente, porque, normalmente, deve-se à assunção, explícita ou implícita, de diferentes fundamentos jurídicos a obtenção de uma distinta solução para a idêntica questão de direito concretamente suscitada.

II - É o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito que recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais, incluindo o próprio Supremo, a qual só poderá ser arredada mediante uma fundamentação convincente e baseada no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada e que tornem patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado.

III - Não existem razões para que à tramitação do incidente da garantia dos alimentos a cargo do FGADM, embora estabelecida, em parte, em regras avulsas (arts. 3.º da Lei 75/98 e 9.º, n.º 4, do DL n.º 164/99), seja conferida natureza diversa da do processado ou incidente de incumprimento do devedor originário (art. 189.º da OTM e, agora, art. 48.º do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015, de 08-09), em que passou a ser inserida, sendo essa natureza a inerente aos processos ditos de jurisdição voluntária, como sucede com o processo de regulação das responsabilidades parentais e os seus incidentes (art. 150.º da OTM e, agora, art. 12.º do RGPTC). E, como tal, não está o julgamento desse novo incidente – enxertado em processo de jurisdição voluntária – subtraído ao critério definido no art. 987.º do CPC, ou seja, ao predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, à não sujeição do julgador, nas suas resoluções, a critérios normativos rigorosamente fixados, nem sempre aptos à obtenção das soluções ética e socialmente ajustadas.

IV - O caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede que as resoluções naqueles tomadas, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como o admite o art. 988.º do CPC).

V - As «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581.º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, para tal efeito, a publicitação dum acórdão uniformizador de jurisprudência não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.

VI - Por conseguinte, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes» e, por isso, sem a pronúncia sobre esse (eventual) diferente quadro factual superveniente, não deve nem pode o juiz, com fundamento exclusivo na interpretação jurídica entretanto estabelecida através dum AUJ, alterar a anterior decisão transitada em julgado.
 
2. Na fundamentação do acórdão, pode ler-se o seguinte:
 
"2. [...] Segundo o recorrente, a decisão de 7/1/2016 [...], proferida após a prolação do citado AUJ, deveria ter alterado para montante não superior ao fixado para o progenitor incumpridor a prestação de alimentos em pagamento (a cargo do FGADM), estipulada pela decisão de 14/9/2012, sucessivamente renovada por decisões proferidas em 16/9/2013 e 13/11/2014, todas elas transitadas em julgado [...]. O recorrente sustenta essa sua tese no argumento de que aquela decisão de 14/9/2012 seria alterável pela de 7/1/2016, por ser esta uma nova decisão final e ser proferida em processo de jurisdição voluntária.

Salvo o devido respeito, essa tese não tem bom amparo, pelas razões que passamos a sintetizar.

2.1. O acórdão de 19/3/2015 (p. 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A), in DR, I, 85, de 4/5/2015, uniformizou jurisprudência nos termos seguintes: «Nos termos do disposto no artigo 2° da Lei n. 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3° n° 3 do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário».

Como se sabe, o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito [..] recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais, incluindo o próprio Supremo. Embora não seja vinculativo, o sentido interpretativo alcançado por via dessa jurisprudência qualificada, afirmada nos acórdãos uniformizadores, dado o seu valor reforçado, só pode ser arredado na concreta resolução da questão de direito, mediante uma fundamentação convincente, baseada, designadamente, no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, que, porventura, não tenham sido ponderados aquando da uniformização e susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada ou tornar, assim, patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado ([Neste sentido, os Acs. Deste Tribunal de 12/5/2016 (982/10.4TBPTL.G1-A.S1 – Abrantes Geraldes) e de 11-09-2014 (3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1 – Bettencourt Faria), este, com o sumário: «Não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa».]).

Porém, como veremos, o fulcro da questão posta neste recurso consiste em averiguar se a Sra. Juíza de 1ª instância, ao proferir a discutida decisão (de 7/1/2016), deveria (ou poderia), realmente, reduzir o montante da prestação que estava a ser suportada pelo Estado, com fundamento na jurisprudência entretanto uniformizada pelo STJ.

2.2. Também convergimos com o entendimento expresso pela recorrente quanto à natureza, dita de jurisdição voluntária, do processado em que foi prolatada a decisão criticada, embora se conheça a falta de total consenso sobre a matéria ([Em sentido oposto ao explicitado, v. os acórdãos da RG de 8/10/2015 (3901/04.3TBBCL.G1 – Isabel Silva) e da RP de 7/4/2016 (988/09.6TMPRT-A.P2 – Fernando Samões)]).

Com efeito, ao instituir na nossa ordem jurídica a garantia pelo Estado da subsistência dos menores, perante a falta ou o incumprimento das pessoas que, normalmente, o deveriam fazer, o legislador careceu de, em parte, disciplinar, específica e avulsamente (através das regras previstas nos arts. 3º da Lei 75/98 e 9º, nº 4, do DL nº 164/99), a tramitação do incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM, fazendo-a inserir no procedimento de incumprimento do devedor originário, que estava previsto no art. 189º da OTM ([...]).

Contudo, não se vislumbram que eventuais propósitos, evidentemente não explicitados, poderia ter o legislador para conferir à específica tramitação criada por essa via a veste dum processo especial avulso com natureza diversa da do processado ou incidente em que passou a ser inserida, sendo essa natureza, como se sabe, a inerente aos processos ditos de jurisdição voluntária, como sucede com o processo de regulação das responsabilidades parentais e os seus incidentes (art. 150º da OTM ([...])). E, ainda menos, atingimos que possíveis razões levariam o legislador a subtrair o julgamento deste novo incidente – que, insistimos, é enxertado em processo de jurisdição voluntária – ao critério definido no art. 987º do CPC, ou seja, ao predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, à não sujeição do julgador, nas suas resoluções, a critérios normativos rigorosamente fixados, nem sempre aptos à obtenção das soluções ética e socialmente ajustadas.

2.3. Se, até aqui, no essencial, nos mantivemos em sintonia com o sentido da argumentação expendida no recurso, já não acompanhamos a ilação que a recorrente, aparentemente, daí retira sobre a incondicional alterabilidade das resoluções tomadas em tal incidente, que, pelo que se nos afigura, assenta num equívoco.

Na verdade, o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede é que as resoluções tomadas no âmbito do incidente em apreço, como as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art. 988º do CPC ([...])).

Como parece evidente, sob pena de desrespeito do prestígio dos tribunais, da certeza do direito e da prevenção do risco da decisão inútil ([...]), a especificidade ora dilucidada não faz desaparecer a eficácia do caso julgado da decisão anteriormente produzida em processo de jurisdição voluntária. Tal particularismo apenas sujeita o caso julgado a uma espécie de cláusula rebus sic stantibus e, por isso, a uma eventual condição temporal.

E, por outro lado, para além de o princípio da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária não ter carácter absoluto, devendo, pois, ser aplicado com especial prudência, as «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da modificação daquela anterior decisão, hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, a publicitação do citado acórdão uniformizador não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.

Ora, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes», a Sra. Juíza não tinha de se pronunciar – e não o fez – sobre o montante da prestação decidido em 14/9/2012, o qual se mantém tal como desde que foi fixado e o FGADM vem pagando desde Outubro de 2012. Aliás, também não foram objecto de impugnação, quer essa decisão quer qualquer das que, posteriormente, procederam à reanálise anual da manutenção dos pressupostos desse encargo. Além disso, como mera decorrência do exposto, sem a demonstração de um eventual diferente quadro factual superveniente e a subsequente pronúncia judicial sobre o mesmo não se verifica nessas sucessivas reanálises anuais (obrigatórias) a “novidade” decisória a que o recorrente se refere.
 
Portanto, quanto àquele segmento (montante da prestação alimentícia) da decisão proferida em 14/9/2012 verifica-se, a nosso ver, caso julgado, que tem de ser respeitado, nos específicos termos supra enunciados.

É claro, por conseguinte, que, sem a pronúncia sobre um (eventual) diferente quadro factual superveniente e com fundamento exclusivo na interpretação jurídica entretanto estabelecida através do falado AUJ de 19/3/2015, a Sra. Juíza da 1ª instância, ao proceder à reapreciação anual dos pressupostos que estiveram na base da intervenção do FGADM, não deveria nem poderia alterar, quanto ao montante da prestação, a decisão (transitada em julgado) que determinara essa intervenção."
 
3. [Comentário] O acórdão é interessante sob várias perspectivas. Uma delas é a de que, sem matéria de facto superveniente, o proferimento de um acórdão uniformizador de jurisprudência não é susceptível de justificar a modificação de uma decisão anterior. 
 
Este aspecto prende-se com a importante problemática da aplicação no tempo dos acórdãos uniformizadores, dado que, no entendimento (correcto) do acórdão, o Ac. STJ 5/2015, de 4/5, não deve ser aplicado aos factos passados que justificaram a fixação da prestação de alimentos a ser paga pelo FGADM. Isto não permite a extrapolação de que os acórdãos de uniformização nunca devem ser aplicados a factos passados, mas, como já várias vezes se referiu neste Blog, a aplicação retroactiva dos acórdãos de uniformização pode ser questionável em muitas situações.
 
Uma outra perspectiva prende-se com a qualificação do incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM, O acórdão qualifica-o como um processo de jurisdição voluntária. É duvidoso que tal seja aceitável, já que, nos termos do art. 2.º, n.º 2, L 75/98, de 19/11, o tribunal deve fixar a quantia devida pelo FGADM atendendo à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor. Este critério em nada coincide com o critério de discricionariedade (e não de equidade) baseado na conveniência e oportunidade que consta do art. 987.º CPC e que é característico dos processos de jurisdição voluntária.
 
MTS