Matéria de direito; liberdade de qualificação;
convolação de qualificação
convolação de qualificação
1. O sumário de STJ 4/10/2016 (762/04.6TYLSB.L1.S1) é o seguinte:
I. O pedido de nulidade da deliberação social formulado nos autos é um direito com uma expressão diversa do de anulabilidade da mesma deliberação, porquanto poderia ser invocado a todo o tempo e a verificar-se, sempre poderia ser declarado oficiosamente, mesmo no caso de nem sequer ter sido equacionado pelas partes, contrariamente àqueloutro de anulabilidade decorrente do normativo inserto no artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do C.S.Comerciais.
II. Não tendo sido pedida a anulabilidade da deliberação, não sendo a mesma de conhecimento oficioso e estando a mesma fora do perímetro objectivo/processual configurado pelos Autores, escapava, de todo em todo, aos poderes de cognição – possíveis - do Tribunal, decorrentes do preceituado no artigo 5.º, n.º 3, do CPCivil.
III. O conhecimento oficioso da norma jurídica aplicável, na decorrência daquele artigo 5.º, n.º 3, do CPCivil, está dependente da introdução na causa dos factos essenciais à respectiva aplicação, daqui decorrendo que no plano factual, impera o ónus de alegação das partes; no plano do direito material aplicável, embora vigorando o princípio da soberania do juiz, há que ter em conta que o conhecimento oficioso se tem de circunscrever ao perímetro formado pelo objecto do processo.
IV. Significa isto que como ponto de partida, efectivamente temos como princípio estruturante em processo civil que o Tribunal não está minimamente vinculado às considerações de direito formuladas pelas partes, não estando por isso, igualmente adstrito a eventuais lapsos de qualificação jurídica.
V. Contudo, viola-se o principio da conformidade da instância na sua valência objectiva, que leva à condenação «ultra petitum», processualmente inadmissível, o conhecimento oficioso pelo Tribunal de um vício que, embora factualmente alegado, não é peticionada a respectiva consequência jurídica, a qual escapa aos poderes de cognição do tribunal.
II. Não tendo sido pedida a anulabilidade da deliberação, não sendo a mesma de conhecimento oficioso e estando a mesma fora do perímetro objectivo/processual configurado pelos Autores, escapava, de todo em todo, aos poderes de cognição – possíveis - do Tribunal, decorrentes do preceituado no artigo 5.º, n.º 3, do CPCivil.
III. O conhecimento oficioso da norma jurídica aplicável, na decorrência daquele artigo 5.º, n.º 3, do CPCivil, está dependente da introdução na causa dos factos essenciais à respectiva aplicação, daqui decorrendo que no plano factual, impera o ónus de alegação das partes; no plano do direito material aplicável, embora vigorando o princípio da soberania do juiz, há que ter em conta que o conhecimento oficioso se tem de circunscrever ao perímetro formado pelo objecto do processo.
IV. Significa isto que como ponto de partida, efectivamente temos como princípio estruturante em processo civil que o Tribunal não está minimamente vinculado às considerações de direito formuladas pelas partes, não estando por isso, igualmente adstrito a eventuais lapsos de qualificação jurídica.
V. Contudo, viola-se o principio da conformidade da instância na sua valência objectiva, que leva à condenação «ultra petitum», processualmente inadmissível, o conhecimento oficioso pelo Tribunal de um vício que, embora factualmente alegado, não é peticionada a respectiva consequência jurídica, a qual escapa aos poderes de cognição do tribunal.
"Como deflui da Petição Inicial e se mostra assente, a causa de pedir nos presentes autos, encontra-se espelhada na materialidade constante nos artigos 5º a 34º daquele articulado, destinada à comprovação pelos Autores da sua qualidade de sócios da Ré, impedidos de participarem na deliberação cuja nulidade peticionaram.
A indicada materialidade, tendo em atenção o enunciado legal no que concerne aos requisitos na Petição Inicial, encontra-se aí devidamente enunciada, de harmonia com o preceituado no artigo 552º,1, alínea d) do CPCivil.
Contudo, como deflui daquele apontado normativo, a Petição Inicial tem de obedecer a vários requisitos, que passam, também, pela formulação do pedido: isto é, o pedido é requisito essencial da Petição Inicial; e, o pedido formulado pelos Autores na presente acção foi o da declaração da nulidade da deliberação social tomada na AG da Ré realizada no dia 26 de Setembro de 1994, maxime a que determinou o aumento do capital social de 74.819,68 £á (€ 15.000.000$00) para 370.403,30 £á (€ 75.000.000$00).
Foi este o pedido, específico e preciso, que foi efectuado pelos Autores.
Face à causa de pedir e pedido enunciados pelos Autores, a Ré apresentou a sua defesa impugnando toda aquela factualidade invocada, tendo concluído pela improcedência da acção.
Em sede de sentença final, o Tribunal concluiu que a materialidade factual apurada, embora não conduzisse à nulidade da deliberação, como pedido fora, conduzia antes à anulabilidade e, verificada esta, declarou-a, estando nesta declaração o aporema daqui.
A favor da mesma manifestam-se os Autores/Recorrentes, esgrimindo a inexistência de qualquer violação do princípio do contraditório, porquanto a Ré foi citada para contestar a acção e pronunciou-se em todos azimutes sobre a articulação fáctica e de direito, acrescendo que se o quisesse poderia ter discutido a qualificação jurídica da invalidade das deliberações.
Esta simplicidade argumentativa, numa primeira leitura, até parece acolher a simpatia da Lei processual, pois o normativo inserto no artigo 5º, nº 3, do CPCivil dispõe que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.», sendo certo que a factualidade integrante do vício da anulabilidade verificado havia sido toda carreada para os autos na oportunidade devida e dela a Ré teve conhecimento aquando o seu chamamento à acção, tendo na altura exercido o respectivo contraditório.
Mas não é essa a solução erigida pela Lei processual.
O conhecimento oficioso da norma jurídica aplicável, na decorrência daquele nº 3, está dependente da introdução na causa dos factos essenciais à respectiva aplicação, daqui decorrendo que no plano factual, impera o ónus de alegação das partes; no plano do direito, embora vigorando o principio da soberania do juiz, há que ter em conta, no plano do direito material aplicável, que o conhecimento oficioso se tem de circunscrever ao perímetro formado pelo objecto do processo, cfr Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol 2º, 668/669.
Significa isto que, como ponto de partida, efectivamente temos como princípio estruturante em processo civil que o Tribunal não está minimamente vinculado às considerações de direito formuladas pelas partes, não estando por isso, igualmente adstrito a eventuais lapsos de qualificação jurídica.
Situação completamente diversa é a que resulta da formulação de um pedido materialmente desconforme com o direito aplicável, não resultando aqui de um problema de qualificação, mas antes de uma questão de pedido substancial, cfr a este propósito o voto vencido de Torres Paulo ao AUJ de 23 de Janeiro de 2001 (Relator Moura Cruz), in www.dgsi.pt, num caso de impugnação paulina em que havia sido requerida a nulidade e o STJ entendeu que tal pedido poderia ser corrigido oficiosamente para ineficácia; Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, CJ Ano XVII, Tomo III, 1992, 55/64.
O pedido de nulidade da deliberação social tomada pela Ré em 26 de Setembro de 1994, formulado na presente acção pelos Autores, aqui Recorrentes, é um direito com uma expressão diversa, daquele que lhes assistia, porquanto poderia ser invocado a todo o tempo e a verificar-se, sempre poderia ser declarado oficiosamente, mesmo no caso de nem sequer ter sido equacionado pelas partes, contrariamente à anulabilidade decorrente do normativo inserto no artigo 58º, nº1, alínea a) do CSComerciais, decretada in casu.
E, nestes termos, pour cause, não tendo sido pedida a anulabilidade da deliberação, não sendo a mesma de conhecimento oficioso e estando a mesma fora do perímetro objectivo/processual configurado pelos Autores, escapava, de todo em todo, aos poderes de cognição – possíveis - do Tribunal, decorrentes do preceituado no artigo 5º, nº3 do CPCivil."
3. [Comentário] A orientação defendida no acórdão não é tão indiscutível como, numa primeira apreciação, parece ser. A questão subjacente ao acórdão é a de saber se a liberdade de qualificação jurídica que cabe ao tribunal (cf. art. 5.º, n.º 3, CPC) também se estende ao próprio pedido formulado pela parte. Utilizando como exemplo o caso decidido no acórdão, cabe perguntar se o tribunal pode convolar um pedido de declaração de nulidade de um acto num pedido de anulação desse mesmo acto.
A resposta a esta questão deve ser afirmativa. Quando o tribunal convola uma qualificação errada (por exemplo, nulidade ou propriedade) numa qualificação correcta (por exemplo, anulabilidade ou usufruto), está apenas a usar a sua liberdade de qualificação jurídica. Sendo assim, se o tribunal conhecer do pedido de acordo com a qualificação que considera correcta, esse órgão não está a extravasar do âmbito do seu conhecimento.
A circunstância de a nova qualificação corresponder a uma qualificação de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente (ou seja, sem ser a pedido da parte) é irrelevante. Na verdade, a parte formulou um pedido, limitando-se o tribunal a conhecer desse pedido segundo a qualificação correcta que a parte também deveria ter utilizado. Portanto, o tribunal conhece do pedido da parte, embora segundo a qualificação que a mesma lhe devia ter atribuído.
É claro que o conhecimento do pedido "correcto" não é admissível sem evitar uma decisão-surpresa e, portanto, sem garantir às partes uma pronúncia prévia à decisão do tribunal (cf. art. 3.º, n.º 3, do CPC).
MTS