Declarações de parte;
relevância probatória; graus de prova
I. O sumário de RE 6/10/2016 (1457/15.0T8STB.E1) é o seguinte:
1. As declarações de parte, nos termos do art.º 446.º/3 do C. P. Civil, constituem princípio de prova e serão apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão, devendo ser valoradas com especial cuidado.
2. Na ausência de culpa, no que respeita a acidentes de viação, há que lançar mão do disposto no art.º 506.º do C. Civil, isto é, se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
II. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"E é o caso [,quanto à livre apreciação,] das declarações prestadas pelo Autor, como flui do art.º 466.º/3 do C. P. C., que prescreve que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Este novo meio de prova vem sucintamente anunciado na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, e que deu origem à Lei n.º 41/2013 de 26/6, nos termos seguintes: “Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.”
Nos termos do art.º 352.º do C. Civil, confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
Decorre expressamente do preceito legal que a confissão só pode ter por objeto o reconhecimento de um facto, alegado pela parte contrária, e desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária.
Por isso que a confissão judicial escrita tenha força probatória plena contra o confitente, vinculando o juiz a considerar na sentença tal facto como verdadeiro – art.º 358.º/1 do C. Civil e art.º 607.º/4 do C. P. Civil.
Para o Professor Lebre de Freitas, in “A Ação Declarativa Comum”, 3.ª Edição, pág. 278, “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.”
Relativamente a este meio de prova, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/11/2014 (Pedro Martins): “Mas a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas” [...]
E isto porque estas declarações são, por definição, favoráveis à parte que as vai prestar. O princípio de prova é o grau de prova mais débil, significando que a prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova."
III. [Comentário] 1. É discutível que às declarações de parte deva ser atribuído o valor probatório do princípio de prova. Segundo parece, o acórdão baseou-se num equívoco conceptual.
Convém começar por recordar que os (chamados) graus de prova são três. Em concreto, por ordem decrescente, os graus de prova são:
-- A prova stricto sensu: este grau de prova exige a formação pelo juiz da convicção da verdade do facto probando;
-- A mera justificação: para este grau de prova, é suficiente a formação pelo juiz da convicção da plausibilidade ou verosimilhança do facto probando;
-- O princípio (ou começo) de prova: este grau de prova não é suficiente nem sequer para formar a convicção sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto probando, dado que apenas pode relevar para corroborar os resultados probatórios obtidos através de outros meios de prova.
Convém começar por recordar que os (chamados) graus de prova são três. Em concreto, por ordem decrescente, os graus de prova são:
-- A prova stricto sensu: este grau de prova exige a formação pelo juiz da convicção da verdade do facto probando;
-- A mera justificação: para este grau de prova, é suficiente a formação pelo juiz da convicção da plausibilidade ou verosimilhança do facto probando;
-- O princípio (ou começo) de prova: este grau de prova não é suficiente nem sequer para formar a convicção sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto probando, dado que apenas pode relevar para corroborar os resultados probatórios obtidos através de outros meios de prova.
2. Ao contrário do que parece entender-se no acórdão, a atribuição do valor correspondente ao princípio de prova às declarações de parte reforça (e não diminui) a relevância probatória dessas declarações.
Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender -- como talvez o acórdão o faça -- que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exactamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender -- como talvez o acórdão o faça -- que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exactamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis.
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis.
3. Desfeito o (possível) equívoco, ainda não é tudo o que se pode dizer sobre a relevância probatória das declarações de parte. O que acima se referiu respeita somente a uma das possíveis relevâncias probatórias dessas declarações: a sua relevância probatória positiva, ou seja, a relevância probatória dessas declarações para a formação da convicção do juiz sobre o facto sobre o qual recaiu o depoimento da parte.
Importa não esquecer, no entanto, que as declarações de parte também podem ter uma relevância probatória negativa, ou seja, também podem servir para impugnar o valor probatório de outros meios de prova. Por exemplo: as declarações de parte podem ser utilizadas para impugnar o valor de uma prova bastante (nomeadamente, para suscitar dúvidas sobre o depoimento prestado por uma testemunha). Embora seja apenas uma intuição empírica, suspeita-se até que, na prática forense, esse é mesmo o seu principal campo de aplicação.
MTS