"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2017

Jurisprudência constitucional (100)


Acidente de trabalho; créditos de indemnizações;
impenhorabilidade


I. TC 13/12/2016 (676/2016) decidiu:

[...] não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, no sentido da absoluta impenhorabilidade e impossibilidade de apreensão para a massa insolvente dos créditos de indemnizações atribuídas ao insolvente em virtude de acidente de trabalho; [...].

II. O acórdão tem um voto de vencida da Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros, no qual se afirma, além do mais, o seguinte:

"2. O direito à satisfação dos créditos à custa do património do devedor é abrangido pelo direito fundamental à propriedade, consagrado no artigo 62.º da Constituição. Como se reconhece no acórdão, a insusceptibilidade de apreensão para a massa insolvente traduz uma colisão entre o direito do credor e o direito do devedor cuja superação demanda um quadro de ponderação das situações envolvidas. Efetivamente, o direito fundamental à propriedade encontra-se presente na questão de constitucionalidade em análise quer enquanto direito à indemnização por acidente de trabalho, protegido absolutamente pela norma contestada, quer enquanto direito do credor à inclusão desse valor na massa insolvente.
No confronto de posições jusfundamentais – no caso, o direito do credor no quadro da afirmação da garantia patrimonial referida ao património do devedor, por um lado e, por outro, o direito do devedor a que determinados valores existentes no seu património sejam, pela específica função desempenhada, subtraídos a essa garantia patrimonial – a ponderação a empreender envolve a restrição de direitos o que convoca o limite imposto pelo princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Neste âmbito, – considera-se ainda no acórdão – não pode afirmar-se, com um sentido total e abstrato, que o direito do credor deva em qualquer caso prevalecer sobre o direito do devedor.
 3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado que, nestes casos, o legislador deve sacrificar o direito do credor, na medida do necessário, não permitindo que a realização deste direito ponha em causa a sobrevivência ou subsistência do devedor, para tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana (cfr. o Acórdão n.º 349/91, ponto 7). Esta não é, no entanto, a dimensão da questão colocada no presente processo. A norma ora objeto de apreciação impõe o sacrifício absoluto, em qualquer caso, do direito do credor, independentemente de a realização do seu direito pôr em causa o mínimo para uma subsistência condigna do devedor.
Assim, contrariamente ao afirmado, a tese que fez maioria no acórdão aceita como conforme à Constituição uma norma que sacrifica totalmente um direito de crédito, ignorando a ponderação entre os dois direitos a que, todavia, faz incondicional apelo ao longo da fundamentação, por referência à jurisprudência do Tribunal Constitucional que cita (Acórdãos n.os 349/91 e 657/2006). O acórdão recorrido recusou a aplicação do artigo 78.º da Lei n.º 98/2009, por a ponderação entre os dois direitos lhe estar vedada pela norma cuja não inconstitucionalidade agora se afirma – pelo que a consequência desta decisão do Tribunal Constitucional não será uma reponderação entre as duas posições jusfundamentais em confronto, mas a aceitação do sacrifício total da posição do credor através da revogação da ordem de apreensão correspondente a qualquer fração de crédito atribuído ao insolvente decorrente de indemnização por acidente de trabalho.
 4. Esta aceitação da prevalência total do direito do devedor sobre o direito do credor parece suportar-se – de acordo com a tese que fez vencimento – na expressão que a indemnização representa na tutela conferida a um direito absoluto constitucionalmente reconhecido em cuja violação o direito à reparação surge como um postulado intrínseco da efetividade da tutela jurídica condensada no direito do respetivo titular (ponto 2.2.1). Nesta perspetiva, o crédito de indemnização em virtude de acidente de trabalho surge, portanto, como expressão da tutela conferida a um direito absoluto constitucionalmente reconhecido.
Compreende-se a preferência que deve merecer a reconstituição da perda da capacidade de trabalho. O que já não se compreende nem aceita é a afirmação da sua sobreposição a qualquer outro direito de crédito, sem ponderação do peso relativo das posições jurídicas subjetivas em confronto, ainda que numa dimensão tendencialmente objetiva. Ambos são direitos de crédito, constitucionalmente tutelados – mas o Tribunal Constitucional, na decisão agora proferida, admite a restrição total do direito do credor. Qual a razão para sacrificar sempre o direito do credor ignorando-se as consequências que esse sacrifício pode representar na sua esfera jurídica? Qual o facto gerador do seu direito? Nunca se chega a identificar.
Criticando o acórdão recorrido por ter afirmado a desproporção em abstrato, sem ponderar a situação do sinistrado, a tese que fez vencimento afirma, todavia, também em abstrato, a não desproporção sem ponderar a situação do credor. Como pode afirmar-se a necessidade de especial consideração da posição do sinistrado devedor e não se atender à posição do credor, cujo direito fundamental é restringido pela norma em causa?
Será legítimo – por exemplo – salvaguardar a impossibilidade de apreensão de qualquer fração do direito de indemnização por acidente de trabalho diante da reivindicação de alimentos apresentada pelo filho do sinistrado insolvente?"
 [MTS]