"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2017

Jurisprudência (543)


Factos supervenientes; articulados supervenientes;
factos instrumentais


1. O sumário de RL 13/10/2016 (1469-12.6TVLSB-A.L1-6) é o seguinte:

-- Os factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que sejam supervenientes, previstos no artigo 588º nº 1 do CPC e que a parte pode alegar no articulado superveniente, são apenas os factos essenciais a que se refere o artigo 5º nº 1 do CPC. 

--Tratando-se de factos supervenientes, mas meramente instrumentais, a rejeição liminar do articulado superveniente integra-se na rejeição com o fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"A lei permite que, após os articulados e antes do encerramento da discussão, sejam alegados os factos constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos invocados pelas partes, que forem supervenientes aos prazos fixados para os articulados, por terem ocorrido posteriormente ao termo destes prazos, ou por a parte só deles ter tido conhecimento depois de eles findarem.

A possibilidade de alegar factos supervenientes está contemplada no artigo 588º do CPC, em harmonia com o previsto no artigo 611º do mesmo código, por força do qual a sentença deverá atender aos factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de forma a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

Sendo assim e tratando-se apenas de assegurar a actualização da descrição dos factos que são determinantes para a procedência ou improcedência da acção ou da reconvenção, os factos a atender serão só os factos constitutivos, modificativos e extintivos, ou seja, os factos essenciais que a parte tem o ónus de alegar, a que se refere o artigo 5º nº1 do CPC (cfr neste sentido ac RG 10/04/2014, p. 387/11, em www.dgsi.pt).

Na verdade, o artigo 5º nº1 do CPC estatui, no seu nº1, que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.

Por seu lado, o nº2 o referido artigo 5º prevê, nas suas alíneas a), b) e c), os factos que o juiz considerará mesmo que não alegados pelas partes, entre os quais os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, factos estes que, embora possam ser alegados pela parte nos articulados normais, já não poderão ser alegados no articulado superveniente, destinado apenas à actualização dos factos essenciais (constitutivos, modificativos e extintivos), mas sem prejuízo de, em sede de instrução, poderem eventualmente vir a ser considerados pelo juiz (e também, se for caso disso, para efeitos de condenação por litigância de má fé).

Voltando ao caso dos autos, é manifesto que os factos alegados no articulado superveniente da apelante não são factos essenciais.

Os factos ora alegados no articulado superveniente – como as comunicações trocadas pelas partes envolvidas e os acordos celebrados com outra entidade para encontrar o parceiro para o projecto – são factos instrumentais que, não sendo subsumíveis a uma conclusão de direito que determine a procedência ou improcedência da acção, podem, eventualmente, levar à demonstração dos factos essenciais.

Tais factos não são constitutivos do direito (causa de pedir), nem integram uma excepção (artigo 576º do CPC) e, ao contrário do que a apelante alega, também não são factos de “contra-excepção” e essenciais para o conhecimento da excepção invocada na contestação dos apelados, integrando, sim, com natureza instrumental, a impugnação que a autora já deduziu, no articulado de réplica, à excepção invocada na contestação.

A rejeição liminar do articulado superveniente integra, assim, a rejeição com fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º do CPC, devendo manter-se o despacho recorrido e improcedendo as alegações de recurso.

3. [Comentário] a) No referido RG 10/4/2014 (387/11.0TBPTL-B.G1) decidiu-se o seguinte:

I- O articulado superveniente, tendo por desiderato permitir que a sentença venha a corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão, serve tão só para carrear para os autos os factos essenciais a que alude o artº 5º, nº1, do CPC;

II - Desde que tempestivamente apresentado, o articulado superveniente só poderá ser liminarmente rejeitado pelo Juiz caso a factualidade nova nele vertida, e obviamente tendo sempre em consideração as várias soluções plausíveis da questão de direito, manifestamente nenhum interesse têm para a boa decisão da causa.

III - No âmbito do articulado superveniente , e desde que respeitadas as observações referidas em I e II, nada obsta à alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, apenas sendo de exigir que o objecto da acção mantenha ainda assim algum nexo com o pedido inicial e com a originária
causa petendi.

b) A orientação segundo a qual os articulados supervenientes só servem para a alegação de factos essenciais supervenientes -- isto é, de factos que se incluem na causa de pedir ou no fundamento da excepção (cf. art. 5.º, n.º 1, CPC) -- é totalmente correcta.

Isto demonstra que os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC) e os factos instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), mesmo quando supervenientes, não podem ser alegados nos articulados supervenientes, o que só pode ter como justificação a circunstância de nenhum desses factos integrar a causa de pedir ou o fundamento da excepção. Esta conclusão é a única doutrinariamente aceitável, dado que importa não confundir os factos que são essenciais para a procedência da causa (função que pode ser realizada por um facto complementar) com os factos que são essenciais para individualizar o pedido formulado ou a excepção alegada pela parte. Aqueles factos colocam-se no plano da fundamentação da causa; estes no da individualização do pedido ou da excepção.

Conforme resulta do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a) e b), CPC, a falta de alegação dos factos complementares ou instrumentais nos articulados não tem nenhum efeito preclusivo, mas a sua aquisição só pode ocorrer na instrução da causa (através, por exemplo, de declarações da parte). O decidido pela jurisprudência  mostra que esta solução também vale para os factos complementares ou instrumentais supervenientes.

MTS