-- P 46/2017, de 31/1: Aprova o regulamento do curso de formação específico para o exercício de funções de presidente do tribunal, de magistrado do Ministério Público coordenador e de administrador judiciário previsto nos artigos 97.º, 102.º e 107.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários
"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
31/01/2017
Jurisprudência (544)
Caso julgado;
reconvenção; ónus do réu
1. O sumário de RC 11/10/2016 (2560/10.9TBPBL.C1) é o seguinte:
I – A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.
II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), não se exigindo a tríplice identidade.
III - Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.
IV - Nos casos em que a reconvenção é legalmente imposta ou em que a necessidade resulta indirectamente da lei material, a reconvenção torna-se “necessária ou compulsiva”, logo, na sua falta, o réu fica inibido de propor acção autónoma.
2. Na fundamentação afirma-se o seguinte:
"No Processo nº ... o que ambas as partes discutem é o espaço da cozinha, que os Autores (aqui Réus) dizem pertencer à fracção “A”, de que são proprietários, enquanto que a Ré (aqui Autora) pede em reconvenção a entrega da mesma.
O pedido formulado é o de que seja declarado que “a fracção “A” do prédio identificado no art.1º, onde se inclui a referida cozinha e partes a ela afectas, é propriedade dos Autores” e a entrega da mesma.
Contrariamente ao decidido na sentença, não estamos perante pedidos idênticos, pois nesta acção peticiona-se expressamente a entrega de uma parte da fracção, ocupada ilicitamente pelos Réus, com uma identificação precisa dos espaços, sem qualquer referência à cozinha, logo o efeito jurídico pretendido não é o mesmo.
Aliás, já no acórdão do STJ de 16/10/2012 (fls. 425 e segs.) salientou-se, precisamente, a “inexistência de coincidência identificativa entre as referidas partes da fracções em causa (…)”.
A sentença recorrida diz o seguinte:
“Acresce que no âmbito da ação n.º ... a (agora) autora, em sede de contestação, não reivindicou, nem aí alegou em sede de defesa, ser proprietária das divisões agora em causa nesta ação n.º 2.560/10.9TBPBL (cfr. fls. 163 e ss.), o que teria necessariamente de fazer (já que os agora réus aí então o peticionaram) sob pena de preclusão, e sob pena de tais questões, por efeito de autoridade de caso julgado (que abrange as questões que, podendo ser suscitadas, não o foram tempestivamente ou de modo próprio), não mais poderem ser postas em causa, pelo que também não se poderia prevalecer de tal invocação no âmbito desta ação n.º 2.560/10.9TBPBL – arts. 573.º, 580.º, 581.º, do NCPC.”.
Este fundamento tem subjacente a problemática da chamada “reconvenção necessária” e da preclusão, no que tange à falta de exercício da reconvenção, sendo que segundo determinado entendimento a preclusão pode integrar-se no âmbito da autoridade do caso julgado (cf., por ex., Ac STJ de 29/5/2014 (proc. nº 1722/12), em www dgsi.pt ), embora para TEIXEIRA DE SOUSA ainda que a preclusão possa operar através do caso julgado, ela assume autonomia, porque dele se emancipou (cf. “Preclusão e Caso Julgado”, publicado no blogue do IPPC, 2016).
Coloca-se, pois, a questão de saber se não tendo a aqui Autora pedido em reconvenção na acção nº ... o reconhecimento do direito de propriedade sobre as divisões identificadas no art.6º da petição e que são “ arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação”, está impedida de o fazer (na presente acção), por força da preclusão.
Para a doutrina clássica, sendo a reconvenção facultativa, ou seja, inexistindo o respectivo ónus da parte, vigora o princípio da liberdade de escolha entre reconvir e acção autónoma.
A doutrina moderna é no sentido de que sempre que a reconvenção seja legalmente imposta ou nos casos em que a necessidade resulta indirectamente da lei material, por assentar nas normas reguladoras dos direitos subjectivos privados, a reconvenção torna-se “necessária ou compulsiva”, logo, na sua falta, o réu fica inibido de propor acção autónoma por força do caso julgado, visto que “o caso julgado cobre (rectius, prelude) o deduzido e o dedutível” (cf. sobre o tema, MIGUEL MESQUITA, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág. 415 e segs.). A jurisprudência vem aderindo a este entendimento (cf., por ex., Ac STJ de 10/10/2012 (proc. nº 1999/11), em www dgsi.pt)."
MTS
30/01/2017
Jurisprudência (543)
Factos supervenientes; articulados supervenientes;
factos instrumentais
1. O sumário de RL 13/10/2016 (1469-12.6TVLSB-A.L1-6) é o seguinte:
-- Os factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que sejam supervenientes, previstos no artigo 588º nº 1 do CPC e que a parte pode alegar no articulado superveniente, são apenas os factos essenciais a que se refere o artigo 5º nº 1 do CPC.
--Tratando-se de factos supervenientes, mas meramente instrumentais, a rejeição liminar do articulado superveniente integra-se na rejeição com o fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"A lei permite que, após os articulados e antes do encerramento da discussão, sejam alegados os factos constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos invocados pelas partes, que forem supervenientes aos prazos fixados para os articulados, por terem ocorrido posteriormente ao termo destes prazos, ou por a parte só deles ter tido conhecimento depois de eles findarem.
A possibilidade de alegar factos supervenientes está contemplada no artigo 588º do CPC, em harmonia com o previsto no artigo 611º do mesmo código, por força do qual a sentença deverá atender aos factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de forma a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Sendo assim e tratando-se apenas de assegurar a actualização da descrição dos factos que são determinantes para a procedência ou improcedência da acção ou da reconvenção, os factos a atender serão só os factos constitutivos, modificativos e extintivos, ou seja, os factos essenciais que a parte tem o ónus de alegar, a que se refere o artigo 5º nº1 do CPC (cfr neste sentido ac RG 10/04/2014, p. 387/11, em www.dgsi.pt).
Na verdade, o artigo 5º nº1 do CPC estatui, no seu nº1, que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.
Por seu lado, o nº2 o referido artigo 5º prevê, nas suas alíneas a), b) e c), os factos que o juiz considerará mesmo que não alegados pelas partes, entre os quais os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, factos estes que, embora possam ser alegados pela parte nos articulados normais, já não poderão ser alegados no articulado superveniente, destinado apenas à actualização dos factos essenciais (constitutivos, modificativos e extintivos), mas sem prejuízo de, em sede de instrução, poderem eventualmente vir a ser considerados pelo juiz (e também, se for caso disso, para efeitos de condenação por litigância de má fé).
Voltando ao caso dos autos, é manifesto que os factos alegados no articulado superveniente da apelante não são factos essenciais.
Os factos ora alegados no articulado superveniente – como as comunicações trocadas pelas partes envolvidas e os acordos celebrados com outra entidade para encontrar o parceiro para o projecto – são factos instrumentais que, não sendo subsumíveis a uma conclusão de direito que determine a procedência ou improcedência da acção, podem, eventualmente, levar à demonstração dos factos essenciais.
Tais factos não são constitutivos do direito (causa de pedir), nem integram uma excepção (artigo 576º do CPC) e, ao contrário do que a apelante alega, também não são factos de “contra-excepção” e essenciais para o conhecimento da excepção invocada na contestação dos apelados, integrando, sim, com natureza instrumental, a impugnação que a autora já deduziu, no articulado de réplica, à excepção invocada na contestação.
A rejeição liminar do articulado superveniente integra, assim, a rejeição com fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º do CPC, devendo manter-se o despacho recorrido e improcedendo as alegações de recurso.
3. [Comentário] a) No referido RG 10/4/2014 (387/11.0TBPTL-B.G1) decidiu-se o seguinte:
I- O articulado superveniente, tendo por desiderato permitir que a sentença venha a corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão, serve tão só para carrear para os autos os factos essenciais a que alude o artº 5º, nº1, do CPC;
II - Desde que tempestivamente apresentado, o articulado superveniente só poderá ser liminarmente rejeitado pelo Juiz caso a factualidade nova nele vertida, e obviamente tendo sempre em consideração as várias soluções plausíveis da questão de direito, manifestamente nenhum interesse têm para a boa decisão da causa.
III - No âmbito do articulado superveniente , e desde que respeitadas as observações referidas em I e II, nada obsta à alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, apenas sendo de exigir que o objecto da acção mantenha ainda assim algum nexo com o pedido inicial e com a originária causa petendi.
b) A orientação segundo a qual os articulados supervenientes só servem para a alegação de factos essenciais supervenientes -- isto é, de factos que se incluem na causa de pedir ou no fundamento da excepção (cf. art. 5.º, n.º 1, CPC) -- é totalmente correcta.
Isto demonstra que os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC) e os factos instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), mesmo quando supervenientes, não podem ser alegados nos articulados supervenientes, o que só pode ter como justificação a circunstância de nenhum desses factos integrar a causa de pedir ou o fundamento da excepção. Esta conclusão é a única doutrinariamente aceitável, dado que importa não confundir os factos que são essenciais para a procedência da causa (função que pode ser realizada por um facto complementar) com os factos que são essenciais para individualizar o pedido formulado ou a excepção alegada pela parte. Aqueles factos colocam-se no plano da fundamentação da causa; estes no da individualização do pedido ou da excepção.
Conforme resulta do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a) e b), CPC, a falta de alegação dos factos complementares ou instrumentais nos articulados não tem nenhum efeito preclusivo, mas a sua aquisição só pode ocorrer na instrução da causa (através, por exemplo, de declarações da parte). O decidido pela jurisprudência mostra que esta solução também vale para os factos complementares ou instrumentais supervenientes.
Isto demonstra que os factos complementares (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC) e os factos instrumentais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC), mesmo quando supervenientes, não podem ser alegados nos articulados supervenientes, o que só pode ter como justificação a circunstância de nenhum desses factos integrar a causa de pedir ou o fundamento da excepção. Esta conclusão é a única doutrinariamente aceitável, dado que importa não confundir os factos que são essenciais para a procedência da causa (função que pode ser realizada por um facto complementar) com os factos que são essenciais para individualizar o pedido formulado ou a excepção alegada pela parte. Aqueles factos colocam-se no plano da fundamentação da causa; estes no da individualização do pedido ou da excepção.
Conforme resulta do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a) e b), CPC, a falta de alegação dos factos complementares ou instrumentais nos articulados não tem nenhum efeito preclusivo, mas a sua aquisição só pode ocorrer na instrução da causa (através, por exemplo, de declarações da parte). O decidido pela jurisprudência mostra que esta solução também vale para os factos complementares ou instrumentais supervenientes.
MTS
29/01/2017
Bibliografia (460)
-- Nunes, D. / Quinaud Pedron, F. / Sena Horta, A. F. de, Os precedentes judiciais, o art. 926 do CPC e suas propostas de fundamentação: um diálogo com concepções contrastantes, RePro 263 (2017), 335 (via academia.edu)
28/01/2017
Jurisprudência europeia (TJ) (116)
Dir. 93/13/CEE – Contratos celebrados entre profissionais e consumidores – Cláusulas abusivas – Contratos de mútuo hipotecário – Processo de execução de bens hipotecados – Prazo de caducidade – Conhecimento oficioso dos órgãos jurisdicionais nacionais – Autoridade de caso julgado
TJ 26/1/2017 (C‑421/14, Banco Primus/Gutiérrez García) decidiu o seguinte:
1) Os artigos 6.° e 7.° da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição de direito nacional, como a quarta disposição transitória da Lei 1/2013, de medidas para reforzar la protección a los deudores hipotecarios, reestructuración de deuda y alquiler social (Lei 1/2013, relativa às medidas que visam reforçar a proteção dos devedores hipotecários, a reestruturação da dívida e o arrendamento social), de 14 de maio de 2013, que sujeita o exercício pelos consumidores, contra os quais tenha sido instaurado um processo de execução hipotecária ainda pendente à data de entrada em vigor da lei que prevê esta disposição, do direito de oposição a esse processo, com fundamento no caráter pretensamente abusivo de cláusulas contratuais, a um prazo de caducidade de um mês, calculado a partir do dia seguinte ao da publicação desta lei.
2) A Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regra nacional, como a resultante do artigo 207.° da Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000, relativa ao Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000, alterada pelo Real Decreto‑Ley 7/2013, de medidas urgentes de naturaleza tributaria, presupuestaria y de fomento de la investigación, el desarrollo y la innovación (Decreto‑Lei 7/2013, que aprova medida urgentes de natura fiscal e orçamental e que promove a investigação, o desenvolvimento e a inovação), de 28 de junho de 2013, que proíbe o juiz nacional de reapreciar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas de um contrato se já tiver sido proferida uma decisão revestida de autoridade de caso julgado sobre a legalidade de todas as cláusulas desse contrato à luz desta diretiva.
3) Em contrapartida, havendo uma ou várias cláusulas contratuais cujo caráter eventualmente abusivo não tenha sido examinado em sede de fiscalização jurisdicional anterior do contrato controvertido, encerrada por decisão revestida de autoridade de caso julgado, a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que o juiz nacional, junto do qual o consumidor deduziu regularmente um incidente de oposição, está obrigado a apreciar, a pedido das partes ou oficiosamente, o caráter eventualmente abusivo dessas cláusulas, desde que disponha dos elementos jurídicos e fácticos necessários para o efeito.
4) O artigo 3.°, n.° 1, e o artigo 4.° da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que:
– o exame do caráter eventualmente abusivo de uma cláusula de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor implica determinar se ela cria, em detrimento do consumidor, um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes contratuais. Esse exame deve ser efetuado tendo em conta as regras nacionais que, na falta de acordo entre as partes, são aplicáveis, os meios de que o consumidor dispõe, ao abrigo da regulamentação nacional, para pôr termo à utilização desse tipo de cláusulas, a natureza dos bens ou dos serviços objeto do contrato em causa, bem como todas as circunstâncias que rodeiam a sua celebração;
– caso o órgão jurisdicional de reenvio considere que uma cláusula contratual relativa ao método de cálculo dos juros ordinários, como a do processo principal, não está redigida de forma clara e compreensível na aceção do artigo 4.°, n.° 2, desta diretiva, incumbe‑lhe verificar se essa cláusula é abusiva na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da referida diretiva. No âmbito desse exame, cabe designadamente ao referido órgão jurisdicional comparar o método de cálculo da taxa dos juros ordinários prevista nesta cláusula e o montante efetivo dessa taxa daí resultante com os métodos de cálculo normalmente utilizados e a taxa de juros legal, bem como as taxas de juros praticadas no mercado à data da celebração do contrato em causa no processo principal para mútuos de valor e de duração equivalentes aos do contrato de mútuo em causa, e
– quanto à apreciação por um órgão jurisdicional nacional do eventual caráter abusivo da cláusula relativa ao vencimento antecipado devido a incumprimentos pelo devedor das suas obrigações durante um período limitado, incumbe a esse órgão jurisdicional verificar, designadamente, se a faculdade de o profissional declarar exigível a totalidade do empréstimo depende do incumprimento pelo consumidor de uma obrigação com caráter essencial no âmbito da relação contratual em causa, se essa faculdade está prevista para os casos em que esse incumprimento é suficientemente grave atendendo à duração e ao montante do empréstimo, se a referida faculdade derroga as regras de direito comum aplicáveis na matéria, na falta de disposições contratuais específicas, e se o direito nacional prevê meios adequados e eficazes que permitem ao consumidor sujeito à aplicação dessa cláusula sanar os efeitos da referida exigibilidade do empréstimo.
5) A Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma interpretação jurisprudencial de uma disposição de direito nacional que rege as cláusulas de vencimento antecipado dos contratos de mútuo, como o artigo 693.°, n.° 2, da Lei 1/2000, alterada pelo Decreto‑Lei 7/2013, que proíbe o juiz nacional que constatou o caráter abusivo dessa cláusula contratual de a declarar nula e de a afastar quando o profissional não a aplicou de facto e respeitou as condições previstas nessa disposição de direito nacional.
2) A Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regra nacional, como a resultante do artigo 207.° da Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000, relativa ao Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000, alterada pelo Real Decreto‑Ley 7/2013, de medidas urgentes de naturaleza tributaria, presupuestaria y de fomento de la investigación, el desarrollo y la innovación (Decreto‑Lei 7/2013, que aprova medida urgentes de natura fiscal e orçamental e que promove a investigação, o desenvolvimento e a inovação), de 28 de junho de 2013, que proíbe o juiz nacional de reapreciar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas de um contrato se já tiver sido proferida uma decisão revestida de autoridade de caso julgado sobre a legalidade de todas as cláusulas desse contrato à luz desta diretiva.
3) Em contrapartida, havendo uma ou várias cláusulas contratuais cujo caráter eventualmente abusivo não tenha sido examinado em sede de fiscalização jurisdicional anterior do contrato controvertido, encerrada por decisão revestida de autoridade de caso julgado, a Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que o juiz nacional, junto do qual o consumidor deduziu regularmente um incidente de oposição, está obrigado a apreciar, a pedido das partes ou oficiosamente, o caráter eventualmente abusivo dessas cláusulas, desde que disponha dos elementos jurídicos e fácticos necessários para o efeito.
4) O artigo 3.°, n.° 1, e o artigo 4.° da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que:
– o exame do caráter eventualmente abusivo de uma cláusula de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor implica determinar se ela cria, em detrimento do consumidor, um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes contratuais. Esse exame deve ser efetuado tendo em conta as regras nacionais que, na falta de acordo entre as partes, são aplicáveis, os meios de que o consumidor dispõe, ao abrigo da regulamentação nacional, para pôr termo à utilização desse tipo de cláusulas, a natureza dos bens ou dos serviços objeto do contrato em causa, bem como todas as circunstâncias que rodeiam a sua celebração;
– caso o órgão jurisdicional de reenvio considere que uma cláusula contratual relativa ao método de cálculo dos juros ordinários, como a do processo principal, não está redigida de forma clara e compreensível na aceção do artigo 4.°, n.° 2, desta diretiva, incumbe‑lhe verificar se essa cláusula é abusiva na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da referida diretiva. No âmbito desse exame, cabe designadamente ao referido órgão jurisdicional comparar o método de cálculo da taxa dos juros ordinários prevista nesta cláusula e o montante efetivo dessa taxa daí resultante com os métodos de cálculo normalmente utilizados e a taxa de juros legal, bem como as taxas de juros praticadas no mercado à data da celebração do contrato em causa no processo principal para mútuos de valor e de duração equivalentes aos do contrato de mútuo em causa, e
– quanto à apreciação por um órgão jurisdicional nacional do eventual caráter abusivo da cláusula relativa ao vencimento antecipado devido a incumprimentos pelo devedor das suas obrigações durante um período limitado, incumbe a esse órgão jurisdicional verificar, designadamente, se a faculdade de o profissional declarar exigível a totalidade do empréstimo depende do incumprimento pelo consumidor de uma obrigação com caráter essencial no âmbito da relação contratual em causa, se essa faculdade está prevista para os casos em que esse incumprimento é suficientemente grave atendendo à duração e ao montante do empréstimo, se a referida faculdade derroga as regras de direito comum aplicáveis na matéria, na falta de disposições contratuais específicas, e se o direito nacional prevê meios adequados e eficazes que permitem ao consumidor sujeito à aplicação dessa cláusula sanar os efeitos da referida exigibilidade do empréstimo.
5) A Diretiva 93/13 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma interpretação jurisprudencial de uma disposição de direito nacional que rege as cláusulas de vencimento antecipado dos contratos de mútuo, como o artigo 693.°, n.° 2, da Lei 1/2000, alterada pelo Decreto‑Lei 7/2013, que proíbe o juiz nacional que constatou o caráter abusivo dessa cláusula contratual de a declarar nula e de a afastar quando o profissional não a aplicou de facto e respeitou as condições previstas nessa disposição de direito nacional.
Bibliografia (459)
-- Cabrita Neto, S. / Castelo Trindade, C., Contencioso Tributário I - Procedimento, Princípios e Garantias (Almedina: Coimbra 2017)
-- Cabrita Neto, S. / Castelo Trindade, C., Contencioso Tributário II - Processo, Arbitragem e Execução (Almedina: Coimbra 2017)
-- Guerra da Fonseca, R. / Gomes, C. / Rodrigues, M. de L. / Magalhães, P. / Garoupa, N. (Eds.), 40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal (Almedina: Coimbra 2017)
27/01/2017
Bibliografia (458)
-- Flynn, A./Hodgson, J. (Eds.), Access to Justice and Legal Aid / Comparative Perspectives on Unmet Legal Aid (Hart Publishing: Oxford 2017)
-- Hoonakker, P,, Procédures civiles d'exécution / Voies d'exécution - Procédures de distribution, 6.ª ed. (Bruylant: Bruxelles 2017)
Jurisprudência (542)
Cláusulas contratuais gerais; acção inibitória;
interesse processual; inutilidade superveniente da lide
1. O sumário de STJ 6/10/2016 (1946/09.6TJLSB.L1.S1) é o seguinte:
I - A LCCG – DL n.º 446/85, de 25-10 – é um diploma que está imbuído do intuito de atenuar as desigualdades nos contratos de adesão celebrados entre as partes, nomeadamente quando uma delas, geralmente a proponente, difere da outra, a aderente, pela sua capacidade económica geradora de apoios logísticos e mobilizadores que aquela não possui.
III - No instrumento onde a ora ré celebrou o contrato com os particulares, mútuo com hipoteca, operava-se uma remissão para as cláusulas constantes do documento complementar elaborado pela ré, contendo, como pode ver-se dos factos provados, cláusulas que regem o contrato celebrado entre a ora ré e os mutuários que estão identificados na escritura. Trata-se pois de um contrato impresso e elaborado pela Ré onde, para além de normas específicas, figuravam outras, não negociadas, emergentes de uma proposta de adesão, que se integrava no todo contratual.
IV - O interesse em agir consiste “na necessidade de usar do processo de instaurar ou fazer seguir a acção; O interesse do autor em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual (e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela)”.
V - “A questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a respectiva apreciação judicial”.
VI - Estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006, de 22-12 – no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e como tal devidamente sancionado através de uma coima.
VII - A instância extinguir-se-á por falta de interesse em agir sendo a ré absolvida da instância.
2. Na fundamentação do acórdão pode encontrar-se o seguinte:
"A acção inibitória visa proibir cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, e não impedir, antes da verificação da situação concreta nelas prevista, que alguém as possa imaginar ou perspectivar.
Nesta conformidade tem entendido a Jurisprudência maioritária deste STJ que se “verifica a inutilidade superveniente da lide, numa acção inibitória, quando a Ré, no decurso da acção, retire dos contratos a celebrar as referidas cláusulas[5]. Por outro lado e, como já vimos, estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006 de 22 de Dezembro e - no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o Tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e devidamente sancionado através de uma coima.
Mas quanto à abrangência dos contratos já celebrados, nomeadamente aquele a que se faz referência na petição inicial, diremos que a cláusula do arredondamento se mostra inserta no contrato; no momento em que o mesmo foi celebrado já vigorava o DL 446/85; poderia pensar-se haver possibilidade de sancionar por esta via o seu emprego de harmonia com o disposto nos artigos 15.º ss tomando em linha de conta que a cláusula em causa acaba por impor um benefício à mutuante, o que lesará o princípio da boa-fé. Só que não é esse o escopo das acções inibitórias a que alude o artigo 25.º, o qual se reporta exclusivamente à utilização de cláusulas para utilização futura não abrangendo os contratos celebrados antes da propositura da acção inibitória. Que é assim decorre igualmente da regulamentação da legitimidade activa a que se reporta o artigo 26.º da LCCG onde se vê, pela respectiva redacção, que mau grado actuem em nome próprio as entidades com legitimidade activa para intentar a acção inibitória fazem contudo valer um direito alheio, pertencente em conjunto aos consumidores susceptíveis de virem a ser atingidos pelas cláusulas cuja proibição é solicitada – n.º 2 do artigo imediatamente supracitado. [...].
A acção inibitória não visa pois eliminar as cláusulas viciadas já insertas num determinado contrato, mas antes, apontando para o futuro, proibir a sua utilização em contratos ulteriores.
Muito embora não haja interesse para que o MP se ocupe do contrato já celebrado, poder-se-ia eventualmente defender que aquele subsistiria quanto à possibilidade de fazer seguir a acção para acautelar contratos futuros. Só que a introdução de cláusulas do teor da questionada está já prevista e vedada à luz dos dois Diplomas referidos. Sendo assim perde o Autor Ministério Público interesse em agir. Com efeito há que atentar que a legislação surgida, nomeadamente os DLs citados, concretizam por via legislativa e específica a nulidade de cláusulas como que se encontra inserta no contrato sob o n.º 7 e regem para futuro; o interesse em agir só cessa no que toca à inserção da cláusula do arredondamento nos contrato futuros uma vez que existe já lei específica que o contempla."
3. [Comentário] O acórdão detectou correctamente a falta superveniente de interesse em agir, embora tenha fornecido para a mesma uma solução técnicamente inadequada.
Recorde-se o que sucedeu: por força da publicação de uma alteração legislativa durante a pendência da acção inibitória, a cláusula, cuja utilização o autor (Ministério Público) pretendia inibir, tornou-se ilegal; sendo assim, a acção inibitória se tornou inútil, dado que o autor deixou de ter interesse na tutela que solicitava.
Conforme se refere no acórdão com total acerto, a acção inibitória tornou-se supervenientemente inútil. O que parece ter faltado foi estabelecer a ligação entre essa inutilidade superveniente e a falta de interesse processual. Essa relação é muito fácil: a inutilidade superveniente da lide ocorre precisamente pela falta superveniente de interesse processual.
Sendo assim, o STJ devia ter decretado a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (art. 277.º, al. e), CPC), que é uma causa de extinção diferente da absolvição da instância (art. 277.º, al. a), e 278.º CPC).
MTS
Nesta conformidade tem entendido a Jurisprudência maioritária deste STJ que se “verifica a inutilidade superveniente da lide, numa acção inibitória, quando a Ré, no decurso da acção, retire dos contratos a celebrar as referidas cláusulas[5]. Por outro lado e, como já vimos, estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006 de 22 de Dezembro e - no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o Tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e devidamente sancionado através de uma coima.
Mas quanto à abrangência dos contratos já celebrados, nomeadamente aquele a que se faz referência na petição inicial, diremos que a cláusula do arredondamento se mostra inserta no contrato; no momento em que o mesmo foi celebrado já vigorava o DL 446/85; poderia pensar-se haver possibilidade de sancionar por esta via o seu emprego de harmonia com o disposto nos artigos 15.º ss tomando em linha de conta que a cláusula em causa acaba por impor um benefício à mutuante, o que lesará o princípio da boa-fé. Só que não é esse o escopo das acções inibitórias a que alude o artigo 25.º, o qual se reporta exclusivamente à utilização de cláusulas para utilização futura não abrangendo os contratos celebrados antes da propositura da acção inibitória. Que é assim decorre igualmente da regulamentação da legitimidade activa a que se reporta o artigo 26.º da LCCG onde se vê, pela respectiva redacção, que mau grado actuem em nome próprio as entidades com legitimidade activa para intentar a acção inibitória fazem contudo valer um direito alheio, pertencente em conjunto aos consumidores susceptíveis de virem a ser atingidos pelas cláusulas cuja proibição é solicitada – n.º 2 do artigo imediatamente supracitado. [...].
A acção inibitória não visa pois eliminar as cláusulas viciadas já insertas num determinado contrato, mas antes, apontando para o futuro, proibir a sua utilização em contratos ulteriores.
Muito embora não haja interesse para que o MP se ocupe do contrato já celebrado, poder-se-ia eventualmente defender que aquele subsistiria quanto à possibilidade de fazer seguir a acção para acautelar contratos futuros. Só que a introdução de cláusulas do teor da questionada está já prevista e vedada à luz dos dois Diplomas referidos. Sendo assim perde o Autor Ministério Público interesse em agir. Com efeito há que atentar que a legislação surgida, nomeadamente os DLs citados, concretizam por via legislativa e específica a nulidade de cláusulas como que se encontra inserta no contrato sob o n.º 7 e regem para futuro; o interesse em agir só cessa no que toca à inserção da cláusula do arredondamento nos contrato futuros uma vez que existe já lei específica que o contempla."
3. [Comentário] O acórdão detectou correctamente a falta superveniente de interesse em agir, embora tenha fornecido para a mesma uma solução técnicamente inadequada.
Recorde-se o que sucedeu: por força da publicação de uma alteração legislativa durante a pendência da acção inibitória, a cláusula, cuja utilização o autor (Ministério Público) pretendia inibir, tornou-se ilegal; sendo assim, a acção inibitória se tornou inútil, dado que o autor deixou de ter interesse na tutela que solicitava.
Conforme se refere no acórdão com total acerto, a acção inibitória tornou-se supervenientemente inútil. O que parece ter faltado foi estabelecer a ligação entre essa inutilidade superveniente e a falta de interesse processual. Essa relação é muito fácil: a inutilidade superveniente da lide ocorre precisamente pela falta superveniente de interesse processual.
Sendo assim, o STJ devia ter decretado a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (art. 277.º, al. e), CPC), que é uma causa de extinção diferente da absolvição da instância (art. 277.º, al. a), e 278.º CPC).
MTS
26/01/2017
Informação (165)
Dir. 2014/104/UE:
transposição em Itália
DECRETO LEGISLATIVO 19 gennaio 2017, n. 3
Attuazione della direttiva 2014/104/UE del Parlamento europeo e del Consiglio, del 26 novembre 2014, relativa a determinate norme che regolano le azioni per il risarcimento del danno ai sensi del diritto nazionale per violazioni delle disposizioni del diritto della concorrenza degli Stati membri e dell'Unione europea (GU n.15 del 19-1-2017)
Notas:
-- Clicando, na coluna da esquerda, no número do artigo obtém-se, em alguns deles, não só o texto do artigo, mas também uma nota explicativa sobre o mesmo;
-- O texto da Dir. 2014/104/UE pode ser descarregado aqui.
Jurisprudência (541)
Divórcio sem consentimento do outro cônjuge;
casa de morada da família; regime provisório;
compensação pecuniária
1. O sumário de STJ 13/10/2016 (135/12.7TBPBL-C.C1.S1) é o seguinte:
I. A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
II. Na verdade, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do art.do nº7 do art. 931º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
III. Deste modo, dependendo constitutivamente esse direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge de uma ponderação judicial, casuística e equitativa, ele só existe se o juiz o tiver efectivamente atribuído na decisão oportunamente proferida sobre tal matéria, não podendo ser inovatoriamente reconhecido através da propositura de acção ulterior.
IV. O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele atribuído a um dos cônjuges, deve ser interpretado, à luz do princípio da impressão do destinatário, no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel – não sendo admissível uma modificação substancial dos respectivos termos, ao pretender transformar-se a utilização incondicionada, efectivamente prevista no acordo, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontra o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"5. O objecto da presente revista circunscreve-se, deste modo, à questão admissibilidade/possibilidade da fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge, privado da utilização do imóvel onde se situava a casa de morada da família, por força da decisão judicial que, no âmbito do divórcio, a atribuiu provisoriamente ao outro cônjuge, com base numa valoração prudencial e equitativa das necessidades dos membros do casal em vias de divórcio.
Tendo esta decisão acerca da atribuição da casa de morada de família natureza provisória e cautelar – e fundando-se a mesma em juízos equitativos, de conveniência e oportunidade, próprios dos processos de jurisdição voluntária, - importa verificar liminarmente da admissibilidade da revista – desde logo, se a tal decisão provisória e com funções cautelares não será aplicável a limitação no acesso ao STJ que vigora em sede de procedimentos cautelares, por força do art. 370º, nº 2, do CPC: na verdade, numa interpretação funcionalmente adequada dessa norma restritiva e das razões que lhe estão subjacentes, não se vê razão para não aplicar tal restrição no acesso ao Supremo a decisões contendo medidas tipicamente provisórias e cautelares, embora tomadas em procedimento especial, de cariz incidental – e não directamente num típico e normal procedimento cautelar, regido pelas disposições da parte geral do CPC.
Invoca, porém, a A. /recorrente, como específico fundamento da recorribilidade, a existência de um conflito jurisprudencial, quer ao nível das Relações, quer com acórdão que cita, proveniente do STJ, em que se teria efectivamente admitido, ao contrário do que sucedeu no acórdão recorrido, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge que, por virtude da referida decisão provisória, ficou privado da utilização do imóvel onde se situava a casa de morada da família dos cônjuges desavindos; e, efectivamente, como adiante se verá, essa contradição jurisprudencial existe realmente, notando-se uma clara linha de fractura entre a tese sustentada no acórdão recorrido, ao considerar que não há fundamento legal para impor ao R. a obrigação da pagar à A. uma quantia a título de compensação pela utilização exclusiva do imóvel que constitui casa de morada de família, atribuído provisoriamente àquele e outros acórdãos das Relações, nomeadamente o citado pela recorrente (Ac. Rel. Porto de 10/6/14 P. 3835/11.5TJVNF-C.P1), em que se entendeu que:
I - O regime provisório de utilização da casa de morada de família previsto no nº 7 do art.º 1407.º do CPC distingue-se, no plano processual, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413.º do mesmo diploma, porque este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, ao passo que o regime provisório se destina apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio.
II - Tal regime provisório tem natureza cautelar, nele podendo ser atribuído, durante o processo de divórcio, ao cônjuge requerente privado do direito de utilização da casa de morada de família, metade do valor mensal locativo do referido imóvel do casal, habitado exclusivamente pelo cônjuge requerido.
III - A prestação em causa no incidente do regime provisório referido traduz-se numa compensação devida ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto a mesma se mantiver, até à partilha dos bens comuns.)
Ora, mesmo que se entenda aplicável a medidas de natureza provisória e cautelar, incidentalmente decretadas em procedimentos especiais e incidentais, a norma do art. 370º, nº2, do CPC, tem de se considerar verificado um específico fundamento da recorribilidade para o STJ, conexionado no caso com a norma constante do art. 629º, nº2, al. d), do CPC – impondo-se, pois, dirimir esse conflito jurisprudencial, suscitado em matéria que, por razões estruturais, não seria normalmente susceptível de chegar ao STJ, em normal revista.
Importa, por outro lado, realçar que a única questão a dirimir nesta revista tem natureza necessariamente normativa, destacando-se claramente do juízo de conveniência e oportunidade que subjaz à decisão, prudencial e equitativa, que optou por atribuir o imóvel provisoriamente a um dos cônjuges e a estabelecer -ou não- uma contrapartida pecuniária a favor do outro cônjuge, privado do uso desse bem, com base na valoração casuística da situação pessoal e patrimonial dos interessados: como é evidente, esse juízo prudencial e casuístico, enquanto baseado em critérios de oportunidade e conveniência, típicos da jurisdição voluntária, nunca seria sindicável, nos termos do nº2 do art.988º do CPC, no âmbito de um recurso necessariamente circunscrito à dirimição de questões de direito.
O que cumpre decidir na presente revista é, pois, a questão da interpretação normativa, situada no plano geral e abstracto, do regime contido no nº 7 do art. 931º do CPC: ao prever-se a possibilidade de o juiz, no âmbito do divórcio, fixar, oficiosamente ou a requerimento do interessado, um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família a lei admite ou impõe que tal composição provisória de interesses conflituantes envolva a fixação de uma contrapartida pecuniária ao outro cônjuge, necessariamente privado do uso do bem enquanto durar o processo? Tal norma pressupõe uma atribuição provisória, necessariamente a título gratuito, da casa de morada da família a um dos cônjuges, tido por mais necessitado? ou pelo contrário, consente também numa atribuição do imóvel a título oneroso, envolvendo o pagamento de uma contraprestação ao outro cônjuge, em termos análogos aos que estão previstos a propósito da atribuição definitiva da casa de morada, face ao disposto no art. 1793º do CC, moldada fundamentalmente pelo regime do arrendamento? [...]
7. [...] a jurisprudência das Relações tem oscilado, quanto a esta questão, entre duas visões, rígidas e extremadas, entendendo uma das orientações, plasmada, por exemplo, no acórdão recorrido, que (independentemente de qualquer valoração ou ponderação concreta da situação dos cônjuges dissidentes) a fixação de tal compensação é legalmente inadmissível, ao passo que a outra corrente jurisprudencial considera que tal atribuição compensatória deverá ter necessariamente lugar, como forma de obviar a um inadmissível enriquecimento do cônjuge a quem o imóvel foi provisoriamente atribuído à custa do outro interessado.
Considera-se que nenhuma destas posições extremadas, assentes fundamentalmente numa análise conceitual do regime jurídico em causa, é adequada às exigências de ponderação equitativa das circunstâncias do caso concreto, especialmente prementes no campo da definição provisória das relações entre os cônjuges, na pendência do processo de divórcio: na verdade, a formulação legal – ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo - é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial e casuística das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso; no primeiro caso, o julgador entenderá que, perante o resultado de tal ponderação casuística, a vantagem auferida pelo cônjuge beneficiário com o uso exclusivo do imóvel não justifica a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, privado temporariamente do uso do bem; na segunda situação, pode o juiz temperar tal atribuição exclusiva com a imposição da obrigação do pagamento ao outro cônjuge de uma contrapartida económica, fundada em razões de equidade e justiça, aproximando-se, neste caso, ao menos por analogia, do regime de arrendamento que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
Note-se que a resposta à questão que nos ocupa não pode fluir directamente de uma simples análise do regime da compropriedade, nomeadamente da norma que consta do art. 1406º, nº1, do CC: para além de as relações patrimoniais entre cônjuges ou ex-cônjuges se não poderem reconduzir, de um ponto de vista funcional, aos precisos quadros do regime legal da compropriedade em bens determinados, a referida norma, ao estabelecer uma possibilidade de uso individual do bem comum por cada comproprietário sem, todavia, privar de forma inadmissível os restantes contitulares de tal direito de uso, não contempla obviamente a específica situação litigiosa que nos ocupa, em que a atribuição do imóvel, em uso exclusivo a um dos contitulares, radicou numa decisão jurisdicional, que resolveu provisoriamente a situação de conflito, real ou latente, entre os interessados.
Tal significa, como é evidente, que o uso, individual e exclusivo, do bem pelo cônjuge a quem o mesmo foi judicialmente atribuído é lícito, encontrando ainda causa ou suporte precisamente na dita decisão, ou seja, na hétero composição de interesses que a mesma - injuntivamente – contém. Mas a circunstância de não existir efectivamente uma situação de responsabilidade civil do beneficiário da atribuição ou de enriquecimento sem causa deste não significa que se deva afastar em absoluto a possibilidade de, por exigências de justiça e equidade, face às circunstâncias concretas da vida dos cônjuges, tal atribuição exclusiva poder ser temperada com a compensação, no plano patrimonial, do outro cônjuge, privado do uso referido imóvel e, por isso, eventualmente obrigado a suportar outras despesas ou incómodos graves com o estabelecimento da sua residência, até à partilha dos bens…
Saliente-se que nos movemos no campo das decisões provisórias e cautelares, em que sempre se entendeu que o julgador dispõe de amplas possibilidades de valoração concreta e flexível dos interesses contrapostos, bem expressas, por exemplo, na norma constante do art. 376º, nº3, do CPC, ao prescrever que – em sede de procedimentos cautelares – o juiz não está sujeito à providência concretamente requerida, podendo decretar a que se revele mais eficaz e adequada à tutela do direito e à prevenção do periculum in mora.
O concreto conteúdo das medidas ou providências cautelares a decretar obedece, assim, desde há muito, a uma ampla possibilidade de modelação judicial, feita em função de juízos casuísticos, não se conciliando com uma rigidez de procedimentos, segundo a qual, independentemente das circunstâncias do caso, o tipo e a natureza da medida cautelar teriam de ser, sempre e necessariamente, definidas em abstracto; ora, tal flexibilidade impõe-se, por maioria de razão, no campo da jurisdição voluntária, em situações em que urge definir provisoriamente, segundo critérios substanciais de justiça e equidade, os interesses contrapostos dos cônjuges.
Interpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
Desta configuração normativa conferida à decisão que atribui, a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família decorre que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a tiver efectivamente atribuído na decisão proferida: ou seja, tal direito a uma compensação patrimonial pressupõe necessariamente, em termos constitutivos, a formulação de um juízo equitativo, em que o julgador, ponderadas as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges e por imperiosas razões de justiça material, considera que o equilíbrio dos interesses em confronto só se satisfaz com a imposição ao beneficiário da utilização do imóvel de uma contrapartida por tal uso exclusivo; e, assim sendo, não existe direito à compensação pelo uso exclusivo se se consolidar a decisão provisória acerca do uso da casa de morada, sem nela se prever explicitamente qualquer obrigação de pagamento por parte do cônjuge beneficiado com o uso exclusivo – estando, deste modo, excluída a possibilidade de o outro cônjuge vir ulteriormente, como sucede no caso dos autos, em nova acção, apensada ao processo de divórcio, pretender obter compensação, não prevista na decisão provisória oportunamente proferida nos autos sobre esse tema.
Acresce, no caso dos autos, que a referida decisão provisória foi, de algum modo, a partir do decretamento do divórcio, substituída ou consumida pelo acordo, celebrado pelos cônjuges, judicialmente homologado, no qual identicamente se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele explicitamente atribuído ao R.: saliente-se que tal acordo, interpretado à luz do princípio da impressão do destinatário, só pode significar que nele se não contemplava o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização expressamente permitida ao R – implicando a pretensão formulada na presente acção uma modificação substancial dos termos de tal acordo, ao pretender transformar a utilização incondicionada, ali efectivamente prevista, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontrava o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.
Deste modo, não estando prevista, quer na decisão provisória, proferida no início do processo de divórcio acerca da utilização provisória da casa de morada de família, quer no acordo dos cônjuges acerca desta matéria, judicialmente homologado, o pagamento de qualquer compensação à A. pela utilização exclusiva da casa de morada da família, atribuída ao R., não existe fundamento bastante para obter o reconhecimento ulterior de tal obrigação, que não decorre automática e necessariamente dessa atribuição provisória, pressupondo antes uma valoração judicial constitutiva que, no caso, se não verificou."
3. [Comentário] a) O decidido no acórdão permite a discussão de uma questão teórica com bastante importância prática.
O acórdão integra a decisão provisória que é permitida pelo art. 931.º, n.º 7, CPC no âmbito das medidas provisórias e cautelares. Cabe perguntar: tem de ser assim?
O aspecto a considerar é o seguinte: nos termos do art. 2.º, n.º 2, CPC, as providências cautelares destinam-se a acautelar o efeito útil da acção, ou seja, têm por função atribuir uma tutela provisória que assegura que, quando vier a ser atribuída a tutela definitiva, esta ainda é útil. Isto é: através de uma providência cautelar define-se uma tutela provisória para que a tutela definitiva venha a ser útil.
Cabe então perguntar o seguinte: a tutela provisória permitida pelo art. 931.º, n.º 7, CPC destina-se a acautelar o efeito útil da acção de divórcio ou de algo que nela venha ser decidido? Parece dever dar-se uma resposta negativa a esta pergunta. O que a referida tutela provisória assegura é uma tutela imediata dos interesses de um dos cônjuges (por exemplo, o interesse em possuir uma habitação onde possa residir), não a utilidade da decisão definitiva (relativa, por exemplo, à atribuição a um dos ex-cônjuges da antiga casa de morada da família).
Se assim é, pode também questionar-se se o regime provisório de alimentos -- que o art. 931.º, n.º 7, CPC também permite que o juiz defina -- coincide com o regime dos alimentos provisórios regulados nos art. 384.º a 387.º CPC. A resposta também parece ser negativa: esse regime provisório é coisa distinta da providência cautelar de alimentos provisórios, pois que se destina a assegurar as necessidades de um dos cônjuges durante a pendência da acção de divórcio, e não a garantir a utilidade da decisão definitiva sobre alimentos entre os entretanto ex-cônjuges.
A favor desta orientação pode ainda invocar-se, além da circunstância de que nenhum regime provisório definido nos termos do art. 931.º, n.º 7, CPC se destina a acautelar o efeito útil de uma tutela definitiva, o seguinte:
-- O critério de definição do regime provisório é um critério de discricionariedade (ou de conveniência), o que nada tem em comum com o critério de decretamento de providências cautelares;
-- O regime provisório destina-se a vigorar até ao que seja decidido na sentença final da acção de divórcio; está excluída qualquer necessidade de confirmação da tutela provisória através de uma acção respeitante à tutela definitiva;
-- A aplicação da inversão do contencioso também está excluída quanto a qualquer dos referidos regimes provisórios.
b) Do exposto decorre que nem toda a tutela provisória regulada no CPC coincide com a tutela provisória característica das providências cautelares.
Já houve a oportunidade de referir neste Blog que seria interessante reflectir sobre se as providências cautelares, em vez de se referirem à utilidade da tutela definitiva, não poderiam ser referidas à necessidade de uma tutela imediata. Apesar de, por vezes, se confundirem os planos (nomeadamente, quando se analisam as providências cautelares ou quando se estudam regimes estrangeiros sobre estas providências), aqueles planos são completamente distintos e originam soluções legais totalmente díspares.
Uma mudança daquele tipo seria uma verdadeira "revolução" legal no panorama processual civil português. Neste momento, talvez seja melhor ficar pela "evolução" doutrinária e reconhecer que, mesmo no actual processo civil português, há formas de tutela provisória que se orientam pela necessidade de uma tutela imediata e que um dos casos em que isso sucede é aquele que se encontra regulado no art. 931.º, n.º 7. CPC.
MTS
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