"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
31/10/2018
As recentes alterações à Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, e ao Regulamento das Custas Processuais
Jurisprudência 2018 (104)
Decisão-surpresa; requisitos;
acção de reivindicação; ónus da prova
1. O sumário de STJ 15/3/2018 (2057/11.0TVLSB.L1.S2) é o seguinte:
I - Emerge do art. 608.º, n.º 2, do CPC que a actividade judicativa, com excepção das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente, mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor, abarcando também e eventualmente a matéria de excepção aduzida pelo réu em sua defesa.
II - Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – actualmente consagrado no art. 5.º, n.º 3, do CPC, o tribunal pode apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.
III - As decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes, ou seja, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado.
IV - A simples aplicação de uma norma que não foi invocada não justificará, por si só, a audição prévia das partes, só devendo ter lugar quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes preconizaram ser aplicável.
V - A sujeição do prédio ao regime da compropriedade determinada pelo n.º 1 do art. 1416.º do CC pressupõe a prévia existência de um título constitutivo da propriedade horizontal que, pelos motivos aí expostos, padeça da nulidade mista ali cominada.
VI - Não tendo o acórdão recorrido reconhecido a aquisição de parte de um prédio urbano por usucapião, por falta de alegação e demonstração dos pertinentes requisitos materiais e administrativos, não podia convocar o art. 1416.º, n.º 1, do CC, para concluir pela existência de uma situação de compropriedade ao abrigo desse preceito, quando não havia sido invocada a existência de qualquer título constitutivo.
VII - Na acção de reivindicação incumbe ao autor o ónus probatório dos respectivos elementos constitutivos, o que, em princípio, demanda a invocação de um modo de aquisição originário da propriedade; porém, nos casos de aquisição derivada, é tida por suficiente a invocação da aquisição do domínio e a junção de certidão do registo predial a su favor, atento o que deriva da respectiva presunção registal.
VIII - No entanto, perante a consideração de que tal presunção não abrange a descrição física dos espaços reivindicados, impende sobre os reivindicantes o ónus de demonstrarem que os espaços reivindicados se encontram integrados no imóvel registado a seu favor.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Invocam [...] os recorrentes que a decisão proferida constitui uma decisão surpresa afronta o princípio do contraditório, o princípio da cooperação e o princípio da igualdade de armas.
Vejamos.
Como acima já expusemos, o julgador não se acha limitado pelas alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito.
Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino Iura novit Curia, – actualmente consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.
Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil – serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objecto da causa [...].
É certo, todavia, que o princípio a que vimos fazendo referência deve ser concatenado com o princípio do contraditório e, em particular, com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
Vejamos.
Como acima já expusemos, o julgador não se acha limitado pelas alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito.
Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino Iura novit Curia, – actualmente consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.
Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil – serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objecto da causa [...].
É certo, todavia, que o princípio a que vimos fazendo referência deve ser concatenado com o princípio do contraditório e, em particular, com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
Do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro extrai-se que, neste enunciado, se consagra a proibição da prolação de decisões surpresa, também tidas como “decisões solitárias do juiz” [...]. Por outro lado tem sido considerado que as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes ou seja aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes. O campo privilegiado de valência desta proibição são as questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado [Neste sentido, v. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra, pág. 19] .
Assim, a simples aplicação de uma norma que não foi invocada pelas partes não justificará, por si só, a audição prévia das partes, sendo que a mesma só deverá ter lugar quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes preconizaram ser aplicável – será, por exemplo, o caso de se ter como nulo um contrato com base no qual as partes apenas esgrimiam argumentos a respeito do seu cumprimento –, não podendo aquelas razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso [...].
No caso vertente e como vimos, o aresto impugnado limitou-se a enquadrar juridicamente os factos aduzidos pelos recorridos em sua defesa, não tendo, desse modo, ancorado a decisão de improcedência do recurso em qualquer factualidade distinta daquela que as partes tinham a possibilidade de ter em conta.
Recorde-se, por seu turno, que, na contestação que apresentaram, os recorrentes suscitavam já o enquadramento da resolução do litígio sobre o exercício do direito de propriedade relativamente aos espaços reivindicados no contexto da propriedade horizontal.
Na apelação subordinada que interpuseram, os recorridos invocaram também a existência de compropriedade sobre os espaços reivindicados pelos recorrentes.
Desse modo, o enquadramento do caso no regime jurídico da propriedade horizontal não pode ser tido como inopinadamente díspar daquele que as partes podiam sensatamente conjecturar. De resto, também a sentença apelada, pertinentemente, convocara o regime da propriedade horizontal para dirimir o caso dos autos, o que não mereceu qualquer censura dos então apelantes. E, sabendo-se que a sujeição ao regime da compropriedade é uma das consequências da falta de reunião dos requisitos legais da propriedade horizontal e não estando alegada e/ou demonstrada a verificação de todos esses requisitos, seria razoavelmente expectável para as partes (que se encontram assistidas por advogado) que se viesse a concluir pela aplicação da previsão do n.º 1 do artigo 1416.º do Código Civil como fundamento de denegação da pretendida restituição.
Assim, não se pode reconhecer razão aos recorrentes ao sustentarem que se trata de uma decisão surpresa, não se descortinando assim qualquer violação ao princípio do contraditório.
Sabe-se, por outro lado, que o princípio da igualdade (artigo 4.º do Código de Processo Civil) visa exclusivamente assegurar que ambas as partes dispõem das mesmas faculdades para fazerem valer os seus interesses e que estão sujeitas a ónus e cominações similares ou semelhantes. Ora, ponderando que os recorrentes tiveram a possibilidade de contraditar a pretensão formulada pelos recorridos na apelação subordinada (n.º 5 do artigo 638.º do Código de Processo Civil) e ali afirmarem as razões que agora aduzem na revista, não se descortina um entorse a tal princípio.
De resto, não se vislumbra que a simples consideração daquele quadro jurídico se constitua, em si mesmo, como uma infracção ao falado princípio.
É também sabido que o “princípio da cooperação” (artigo 7.º do Código de Processo Civil) visa criar uma comunidade de trabalho interactiva entre as partes e o tribunal [...], com vista à justa e célere composição do litígio. Tal princípio desdobra-se no plano material (previsto no n.º 2 desse preceito) e no plano formal (n.º 4 do mesmo artigo).
Atentas as razões já expostas, é de concluir que não se impunha à Relação que procurasse obter quaisquer contributos das partes para a solução que veio a dar ao litígio. Por isso, não se vislumbra como a consideração daquele enquadramento jurídico representa uma violação deste princípio. E, em consequência do que acabamos de referir e sabendo-se que apenas as normas jurídicas e as interpretações que delas se façam podem ser tidas como inconstitucionais, não se descortina que o entendimento que preconizamos dos preceitos acima citados contenda com qualquer uma das dimensões em que se desdobra o direito a um processo equitativo."
[MTS]
30/10/2018
Jurisprudência uniformizada (37)
Processo penal;
indemnização civil
-- Ac. STJ 5/2018, de 30/10, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.
A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.
Papers (382)
-- Bechtold, Stefan / Frankenreiter, Jens / Klerman, Daniel M., Forum Selling Abroad (SSRN 09.2018)
-- Clermont, Kevin M., Staying Faithful to the Standards of Proof (SSRN 09.2018)
Jurisprudência 2018 (103)
Decisão interlocutória; revista;
convenção de arbitragem; apreciação
1. O sumário de STJ 20/3/2018 (1149/14.8T8LRS.L1.S1) é o seguinte:
I - Admite revista o acórdão da Relação que, incidindo sobre decisão interlocutória de conteúdo adjectivo – indefere a excepção de preterição do tribunal arbitral e confere competência material ao tribunal judicial para conhecer a causa – integra a norma exceptiva do art. 671.º, n.º 2, al. a), mediante a previsão constante do art. 629.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC.
II - Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.
III - Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
a) Da (in)admissibilidade do recurso
A recorrida defende a inadmissibilidade do recurso de revista, apoiando-se no disposto no artigo 671º. Refere que não estão reunidos os pressupostos aí enunciados, uma vez que a decisão recorrida não conheceu do mérito da causa, não pôs termo ao processo, nem absolveu da instância a Ré.
Como já se anotou, o acórdão recorrido revogou a decisão da 1ª instância que havia julgado procedente a excepção da preterição de tribunal arbitral.
Na presente revista, a recorrente refuta essa decisão e bate-se pela repristinação do decidido na 1ª instância.
Apesar de, em princípio, não admitirem recurso de revista os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjectiva (como é o caso da decisão recorrida), a lei processual civil abre, no entanto, as duas excepções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671º. Admitem, por conseguinte, revista os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, integrem alguma das previsões constantes do n.º 2 do artigo 629º do CPC[2].
Uma dessas situações de excepção é a que se reporta à violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado – alínea a), do n.º 2 do artigo 629º.
Nos termos do artigo 96º, alínea b), do CPC, a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.
No caso vertente, a Ré, na revista, impugna a decisão que, indeferindo a excepção da preterição do tribunal arbitral, conferiu competência material ao tribunal judicial para conhecer dos autos.
Estando em causa a suposta violação das regras de competência em razão da matéria, nenhuma dúvida se levanta quanto à admissibilidade da revista.
b) Da preterição do tribunal arbitral voluntário
Como já se anotou, o acórdão recorrido revogou a decisão da 1ª instância que havia julgado procedente a excepção da preterição de tribunal arbitral.
Na presente revista, a recorrente refuta essa decisão e bate-se pela repristinação do decidido na 1ª instância.
Apesar de, em princípio, não admitirem recurso de revista os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjectiva (como é o caso da decisão recorrida), a lei processual civil abre, no entanto, as duas excepções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671º. Admitem, por conseguinte, revista os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, integrem alguma das previsões constantes do n.º 2 do artigo 629º do CPC[2].
Uma dessas situações de excepção é a que se reporta à violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado – alínea a), do n.º 2 do artigo 629º.
Nos termos do artigo 96º, alínea b), do CPC, a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.
No caso vertente, a Ré, na revista, impugna a decisão que, indeferindo a excepção da preterição do tribunal arbitral, conferiu competência material ao tribunal judicial para conhecer dos autos.
Estando em causa a suposta violação das regras de competência em razão da matéria, nenhuma dúvida se levanta quanto à admissibilidade da revista.
b) Da preterição do tribunal arbitral voluntário
Veja-se, antes de mais, o modo como o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de fazer improceder a excepção da preterição do tribunal arbitral voluntário:
“4.2. Passando, então, ao escrutínio do objecto da presente lide (tal como o mesmo foi definido pela apelante através das conclusões do seu recurso), impõe-se esclarecer que, pese embora a língua oficial dos autos seja o português, é útil observar o texto em língua inglesa da cláusula 19 c) do contrato firmado entre as partes - e que, insiste-se, é aquela cuja interpretação permitirá determinar o destino do pleito – porquanto, nas suas contra-alegações, a Ré, mais ou menos explicitamente, põe em causa a tradução desse contrato apresentada pela Autora a acompanhar a petição inicial deste processo (e que é a usada no texto da decisão recorrida, a saber e na parte que é verdadeiramente relevante: «… e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional).
“4.2. Passando, então, ao escrutínio do objecto da presente lide (tal como o mesmo foi definido pela apelante através das conclusões do seu recurso), impõe-se esclarecer que, pese embora a língua oficial dos autos seja o português, é útil observar o texto em língua inglesa da cláusula 19 c) do contrato firmado entre as partes - e que, insiste-se, é aquela cuja interpretação permitirá determinar o destino do pleito – porquanto, nas suas contra-alegações, a Ré, mais ou menos explicitamente, põe em causa a tradução desse contrato apresentada pela Autora a acompanhar a petição inicial deste processo (e que é a usada no texto da decisão recorrida, a saber e na parte que é verdadeiramente relevante: «… e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional).
E é, novamente apenas na parte verdadeiramente relevante, o seguinte o texto em inglês dessa cláusula: «…and any disputes between the parties arising under or in connection with or relating to any alleged breach of this Agreement shall be settled by arbitration in the city of Barcelona in accordance with the rules then obtaining of International Chamber of Commerce. …».
Inequivocamente, a tradução de que o Mmo Juiz a quo se serve para fundamentar o seu sentenciamento não é a única possível mas, não menos indisputavelmente, as palavras-chave do clausulado são alguma alegada violação do presente Contrato ou to any alleged breach of this Agreement.
Em suma, o compromisso arbitral aplica-se quanto a todos os conflitos emergentes (arising under - os que surgem por baixo de) ou conexos/em conexão ou relativos a/relacionados com uma qualquer alegada violação/quebra do contrato assinado pelas partes no dia 25/04/1996.
E é essa a leitura que um/a declaratário/a normal colocado/a na posição do/a real declaratário/a fará desse conjunto de palavras escritas, sendo esse o sentido que, tendo bem mais do que um mínimo de correspondência nesse texto, conduz a um maior equilíbrio das prestações e traduz uma actuação de acordo com os ditames da boa fé.
E como se tal não fosse - mas é - já suficiente, a interpretação agora manifestada é, sem margem para dúvidas, aquela que traduz a solução ético-socialmente mais acertada na actual situação do processo e, bem assim, aquela da qual melhor resulta a salvaguarda da segurança e da confiança jurídicas (legal certainty), as quais, por sua vez, constituem Valores ético-sociais da maior relevância, pois a segurança e a confiança são condições indispensáveis ao normal funcionamento do comércio jurídico e, mais do que isso, da própria vida em sociedade.
4.3. Ora, lendo com a devida atenção a petição inicial deste processo, o que se constata é que a Autora apenas pretende ver discutidas as seguintes questões:
a) qual a natureza jurídica do contrato - ou seja, como deve o mesmo ser qualificado (se é ou não um contrato de concessão comercial);
b) se lhe é ou não devida uma indemnização de clientela face à denúncia do contrato operada (unilateralmente) pela Ré nos termos previstos na cláusula 12 desse acordo negocial, o que implica decidir se a cláusula 9 do mesmo é ou não nula, e, finalmente,
c) qual o valor a fixar a título dessa indemnização.
Manifestamente e por mais que a Ré o queira fazer crer e o Mmo Juiz a quo assim o queira configurar, nenhuma dessas questões jurídicas - nem mesmo a indicada na alínea b) supra, que respeita a problemas de validade dos termos do acordo celebrado entre as partes - se reconduz a uma quebra ou violação do que se encontra estipulado em qualquer das cláusulas desse contrato.
O que significa que (sem haver sequer que cuidar se, em outro processo, a Ré violou o compromisso arbitral consubstanciado na alínea a) da cláusula 19 do contrato dos autos) é totalmente improcedente a excepção de preterição de tribunal arbitral invocada pela Ré, não podendo, portanto, ser mantida a decisão recorrida, antes tendo a mesma que ser revogada e substituída por outra que, declarando essa improcedência, determine o prosseguimento da tramitação do processo.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta”.
A nossa decisão irá, como veremos, em sentido contrário.
Está perfeitamente adquirido que, mediante a inclusão de cláusula compromissória, as partes decidiram submeter ao tribunal arbitral os eventuais litígios que as dividissem quanto ao contrato firmado em 25.04.1996.
A questão está em saber se essa cláusula compromissória abrange o presente litígio, sendo necessário, para o efeito e antes de mais, caracterizar este a partir da causa de pedir invocada e do pedido deduzido.
Alegou a Autora que:
- No ano de 1996, a Autora (então denominada “CC, Lda.”), celebrou com a Ré um contrato de distribuição, em regime de exclusividade, através do qual se obrigava a promover a venda, distribuição e assistência pós-venda, incluindo a instalação, formação e suporte dos produtos certificados da marca “BB” comercializados pela Ré à Autora no território português.
- Assim, durante mais de 16 anos, a Autora comprou à Ré diverso material do seu comércio (instrumentos científicos) com a finalidade de revender esses mesmos bens a clientes por si angariados no território português, a quem prestava formação técnica e a quem fornecia os necessários serviços de assistência pós-venda, manutenção preventiva e correctiva;
- Tais vendas e serviços foram sempre efectuados de acordo com as directrizes e formação prestados pela Ré aos colaboradores da Autora, que se deslocavam às instalações da Ré, em Barcelona, pelo menos duas vezes ao ano;
- A Ré fez cessar esse contrato em 31.12.2012; [...]
- A Autora angariou centenas de clientes para a marca da Ré, ao longo de mais de 16 anos, clientela essa de que a Ré passou a dispor após a cessação do contrato em causa;
- Em resultado das vendas realizadas nos últimos cinco anos de duração de contrato (2008 a 2012), a Autora obteve uma remuneração anual média de 1.343.611,88 €;
- Estando verificados os requisitos previstos no n.º 1, alíneas a), b) e c) do artigo 33º do DL 178/86, de 3 de Julho, tem a Autora direito a uma indemnização de clientela no valor de 1.343.611,88 €.
No quadro sinteticamente descrito, a relação contratual estabelecida entre a Autora e Ré reconduz-se a um contrato de distribuição comercial, na modalidade de concessão comercial.
Cessado esse contrato em 31.12.2012, através da denúncia formalizada por carta de 16.11.2102, reclama agora a Autora uma indemnização de clientela, ao abrigo do que dispõe o artigo 33º do DL do DL 178/86, de 3 de Julho. [...]
Resta saber, como se disse acima, se esse pedido de indemnização se inscreve no âmbito da cláusula compromissória constante da cláusula 19ª, alínea c) do mencionado contrato, ou seja, se a competência para dirimir o conflito é do tribunal arbitral.
Quando se procura apurar o sentido da convenção de arbitragem, para efeitos do eventual deferimento da competência ao tribunal arbitral, devem aplicar-se as regras gerais de interpretação do negócio jurídico.
A nossa decisão irá, como veremos, em sentido contrário.
Está perfeitamente adquirido que, mediante a inclusão de cláusula compromissória, as partes decidiram submeter ao tribunal arbitral os eventuais litígios que as dividissem quanto ao contrato firmado em 25.04.1996.
A questão está em saber se essa cláusula compromissória abrange o presente litígio, sendo necessário, para o efeito e antes de mais, caracterizar este a partir da causa de pedir invocada e do pedido deduzido.
Alegou a Autora que:
- No ano de 1996, a Autora (então denominada “CC, Lda.”), celebrou com a Ré um contrato de distribuição, em regime de exclusividade, através do qual se obrigava a promover a venda, distribuição e assistência pós-venda, incluindo a instalação, formação e suporte dos produtos certificados da marca “BB” comercializados pela Ré à Autora no território português.
- Assim, durante mais de 16 anos, a Autora comprou à Ré diverso material do seu comércio (instrumentos científicos) com a finalidade de revender esses mesmos bens a clientes por si angariados no território português, a quem prestava formação técnica e a quem fornecia os necessários serviços de assistência pós-venda, manutenção preventiva e correctiva;
- Tais vendas e serviços foram sempre efectuados de acordo com as directrizes e formação prestados pela Ré aos colaboradores da Autora, que se deslocavam às instalações da Ré, em Barcelona, pelo menos duas vezes ao ano;
- A Ré fez cessar esse contrato em 31.12.2012; [...]
- A Autora angariou centenas de clientes para a marca da Ré, ao longo de mais de 16 anos, clientela essa de que a Ré passou a dispor após a cessação do contrato em causa;
- Em resultado das vendas realizadas nos últimos cinco anos de duração de contrato (2008 a 2012), a Autora obteve uma remuneração anual média de 1.343.611,88 €;
- Estando verificados os requisitos previstos no n.º 1, alíneas a), b) e c) do artigo 33º do DL 178/86, de 3 de Julho, tem a Autora direito a uma indemnização de clientela no valor de 1.343.611,88 €.
No quadro sinteticamente descrito, a relação contratual estabelecida entre a Autora e Ré reconduz-se a um contrato de distribuição comercial, na modalidade de concessão comercial.
Cessado esse contrato em 31.12.2012, através da denúncia formalizada por carta de 16.11.2102, reclama agora a Autora uma indemnização de clientela, ao abrigo do que dispõe o artigo 33º do DL do DL 178/86, de 3 de Julho. [...]
Resta saber, como se disse acima, se esse pedido de indemnização se inscreve no âmbito da cláusula compromissória constante da cláusula 19ª, alínea c) do mencionado contrato, ou seja, se a competência para dirimir o conflito é do tribunal arbitral.
Quando se procura apurar o sentido da convenção de arbitragem, para efeitos do eventual deferimento da competência ao tribunal arbitral, devem aplicar-se as regras gerais de interpretação do negócio jurídico.
Assim, conforme resulta da conjugação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, as linhas gerais que orientam a correcta interpretação da vontade negocial resumem-se ao seguinte: a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, devendo a interpretação adoptada, quando se trate de negócio formal, ter um mínimo de correspondência no texto do documento que a corporiza.
Vejamos, então, o que se estipulou na mencionada claúsula 19ª, alínea c):
“O presente Contrato deverá ser regido pelas leis de Espanha e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional”.
Depreende-se do texto do acórdão recorrido que a razão que ditou a improcedência da excepção da preterição do tribunal arbitral foi a de não vir configurada uma situação de violação do contrato, porque só esta poderia incluir-se no âmbito da cláusula compromissória.
Supomos, porém, que tem de se ir mais longe na interpretação e de se indagar para além da pura literalidade desta alínea c).
Por isso, numa perspectiva mais contextualizada do programa contratual, importa considerar também o teor do estipulado na alínea b) da mesma cláusula 19ª.
Aí se dispôs o seguinte:
“Nenhuma das partes deverá ser responsável para com a outra por motivos presentes neste Contrato ou por qualquer falha de desempenho ao abrigo do presente contrato por compensações ou danos relacionados com a perda dos potenciais lucros ou dos lucros reais ou comissões de vendas ou venda previstas, ou despesas, investimentos ou compromissos feitos em ligação com presente”.
Parece, pois, que as partes quiseram renunciar reciprocamente a futuros litígios envolvendo perdas, danos ou compensações derivados do contrato, reservando exclusivamente ao tribunal arbitral todos os conflitos que viessem a surgir relacionados com todas as outras vertentes do contrato.
Será que a indemnização de clientela constitui uma dessas outras vertentes?
O artigo 18º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV) [...] determina que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
Encontra-se aqui consagrado o princípio da competência-competência, cuja justificação radica na necessidade de evitar que, invocada por uma das partes litigantes a falta de competência do tribunal arbitral, tivesse de ser o tribunal judicial a decidir dessa mesma competência. Atribui-se, portanto, ao tribunal arbitral competência para julgar da sua própria competência, com a necessária ponderação sobre a validade da convenção de arbitragem e sobre a arbitrabilidade do litígio.
Paralelamente, estatui o artigo 5º, n.º 1, da mesma Lei que o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.
Desta norma emana o efeito negativo do referido princípio, ao impor aos tribunais judiciais o dever de se absterem de julgar sobre as referidas matérias, antes que o árbitro se pronuncie sobre as mesmas. [...]
Logo, quando se suscitem dúvidas sobre o âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio [...].
Embora nos queira parecer que a regulamentação do ponto 19º do contrato aponte para a exclusividade de competência da jurisdição arbitral (uma vez que não há a mínima referência a uma instância não arbitral), admite-se que possam existir dúvidas quanto ao âmbito da cláusula compromissória e a sua aplicabilidade ao caso concreto, considerando a forma algo ambígua como se encontra redigida.
Todavia, o que sempre resulta evidente é que nada existe que afecte, de modo manifesto, a validade da dita cláusula ou a sua exequibilidade, pelo que caberá ao tribunal arbitral conhecer, em primeira mão, da sua aplicabilidade ao conflito que opõe a Autora à Ré."
[MTS]
29/10/2018
Legislação (135)
-- L 64/2018, de 29/10: Garante o exercício do direito de preferência pelos arrendatários (altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966)
-- DL 86/2018, de 29/10: Altera o Regulamento das Custas Processuais
Jurisprudência 2018 (102)
Pessoa colectiva de direito público;
responsabilidade civil extracontratual; competência material
1. O sumário de STJ 1/3/2018 (1203/12.0TBPTL.G1.S1) é o seguinte:
I. A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da ação, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
II. O art. 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa consagra, em matéria de competência dos tribunais administrativos e fiscais, uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
III. Com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"3.2.1. Posto que os autores deduziram contra a ré Freguesia de … pedido de indemnização baseado na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, alegando que a mesma ofendeu o seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam ao causar com a sua atuação danos no respectivo muro, está em causa saber se são os tribunais administrativos e fiscais ou os tribunais judiciais os competentes para conhecer deste pedido.
A este respeito, defende a recorrente Freguesia de … que, estando-se perante uma situação de responsabilidade civil extracontatual decorrente do exercício das suas funções públicas, a jurisdição competente para conhecer do litígio é a jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa e da al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Contrariamente, entendeu o acórdão recorrido que essa competência pertence aos tribunais comuns, uma vez que a relação material controvertida está configurada, na petição inicial, como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.
Mais argumentou que, apesar do artº 4.º n.º 1, al. f ) do ETAF prever que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, não podemos dissociar essa responsabilidade civil extracontratual dos princípios consagrados constitucionalmente nos citados art.ºs 211° e 212° da Constituição, subjacentes àquela norma e que determinam a competência dos tribunais administrativos e fiscais apenas para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, mas já não para as relações jurídicas de direito privado, da competência residual dos tribunais judiciais.
Cremos, porém, que sem razão.
Senão vejamos.
A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Por sua vez, estabelece o art. 212º, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF de 2002 […] (aqui aplicável visto a ação ter sido proposta em 16.11.2012 [...] e, de harmonia com disposto no art. 5º, nº1 do mesmo diploma o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa é o da propositura da ação), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1 do mesmo diploma que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
« (…) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (…)
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público; (…) ».
E ainda que à primeira vista possa parecer que a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais para conhecer de questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público colide com o princípio da reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, consagrado no nº 3 do art. 212º da CRP, temos por certo ser essa incompatibilidade meramente aparente.
É que, contrariamente ao entendimento seguido no acórdão recorrido, o nº 3 deste art. 212º não consagra uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de matérias de natureza administrativa, no sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e de que só eles poderão julgar tais questões.
Trata-se, antes, segundo orientação pacífica na doutrina [Neste sentido, cfr. Vieira de Andrade, in “ A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs.; Sérvulo Correia, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes,” 1995, pág. 254; Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, n.º 16, págs. 35 e 36; Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, n.º 24, págs. 3 e segs.], de uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
Ou seja, o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.
No mesmo sentido e de forma unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem também entendido que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 deste art. 212º foi a abolição do caráter facultativo da jurisdição administrativa, rejeitando uma interpretação deste artigo conducente à consagração de uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa [...].
É também este o entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo [Cfr., entre outros, os Acórdãos do Pleno de 1998.02.18- recº n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14- rec. n.º 45633, de 2001.01.24 – rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 – rec. n.º 1329/02].
E foi também esta a leitura feita pelo legislador do ETAF de 2002, conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem [...], onde se afirma, de forma clara, que:
«(…) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.
Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (…).
Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A este respeito, defende a recorrente Freguesia de … que, estando-se perante uma situação de responsabilidade civil extracontatual decorrente do exercício das suas funções públicas, a jurisdição competente para conhecer do litígio é a jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa e da al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Contrariamente, entendeu o acórdão recorrido que essa competência pertence aos tribunais comuns, uma vez que a relação material controvertida está configurada, na petição inicial, como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.
Mais argumentou que, apesar do artº 4.º n.º 1, al. f ) do ETAF prever que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, não podemos dissociar essa responsabilidade civil extracontratual dos princípios consagrados constitucionalmente nos citados art.ºs 211° e 212° da Constituição, subjacentes àquela norma e que determinam a competência dos tribunais administrativos e fiscais apenas para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, mas já não para as relações jurídicas de direito privado, da competência residual dos tribunais judiciais.
Cremos, porém, que sem razão.
Senão vejamos.
A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Por sua vez, estabelece o art. 212º, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF de 2002 […] (aqui aplicável visto a ação ter sido proposta em 16.11.2012 [...] e, de harmonia com disposto no art. 5º, nº1 do mesmo diploma o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa é o da propositura da ação), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1 do mesmo diploma que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
« (…) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa; (…)
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público; (…) ».
E ainda que à primeira vista possa parecer que a atribuição da competência aos tribunais administrativos e fiscais para conhecer de questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público colide com o princípio da reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, consagrado no nº 3 do art. 212º da CRP, temos por certo ser essa incompatibilidade meramente aparente.
É que, contrariamente ao entendimento seguido no acórdão recorrido, o nº 3 deste art. 212º não consagra uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação de matérias de natureza administrativa, no sentido de que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e de que só eles poderão julgar tais questões.
Trata-se, antes, segundo orientação pacífica na doutrina [Neste sentido, cfr. Vieira de Andrade, in “ A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs.; Sérvulo Correia, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes,” 1995, pág. 254; Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, n.º 16, págs. 35 e 36; Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, n.º 24, págs. 3 e segs.], de uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtrativos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
Ou seja, o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas.
No mesmo sentido e de forma unânime, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem também entendido que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 deste art. 212º foi a abolição do caráter facultativo da jurisdição administrativa, rejeitando uma interpretação deste artigo conducente à consagração de uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para a apreciação de matérias de natureza administrativa [...].
É também este o entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo [Cfr., entre outros, os Acórdãos do Pleno de 1998.02.18- recº n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14- rec. n.º 45633, de 2001.01.24 – rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 – rec. n.º 1329/02].
E foi também esta a leitura feita pelo legislador do ETAF de 2002, conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem [...], onde se afirma, de forma clara, que:
«(…) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado.
Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (…).
Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional.
Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado»."
[MTS]
27/10/2018
Bibliografia (733)
-- Martingo Cruz, R., A Mediação Familiar como Meio Complementar de Justiça - Algumas Questões (Almedina: Coimbra 2018)
26/10/2018
Jurisprudência 2018 (101)
Princípio do juiz natural;
princípio da plenitude da assistência do juiz
1. O sumário de STJ 8/3/2018 (2723/04.6TBBRR.L1.S1) é o seguinte:
I. Se a acção postular litisconsórcio necessário activo, tendo havido habilitação dos herdeiros do demandante, entretanto falecido, está assegurada a legitimidade de todos e o recurso que um deles interpuser da sentença aproveita aos demais.
II. Na vigência do art. 668º do vCPC, tendo sido arguidas pelo recorrente nulidades da sentença, o juiz poderia supri-las, nos termos do nº 4, pelo que não lhe estava defeso, considerando-as procedentes, proferir nova decisão.
III. O princípio do juiz natural encontra consagração constitucional no processo penal, art. 39º, nº2, da Constituição da República, como garantia fundamental relacionada com a exigência de um julgamento justo e imparcial, sendo o juiz do processo aquele a quem couber a competência de harmonia com a lei.
IV. No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontra protecção, enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo. A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção: relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstractas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.
V. Não se podendo afirmar que a alteração das pessoas dos Magistrados, que intervieram na 1ª Instância e na Relação, no julgamento da acção e do recurso, respectivamente, visaram de forma ilegal, arbitrária e discriminatória, prejudicar os Recorrentes, ou quem quer que fosse, não se pode considerar ter havido violação do princípio do juiz natural. No processo civil tem aplicação o princípio da plenitude da assistência dos juízesconsagrado no art. 605º do Código de Processo Civil, que também comporta excepções.
VI. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado agora no art.605º do Código de Processo Civil (antes no art. 654º), só tem aplicação quando da fixação da matéria de facto, em ponderação dos princípios da imediação, da oralidade e concentração, conhecendo aplicação intransigente quando o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa é aquele que quem tem de proferir a decisão de facto: aí, salvo casos excepcionais, quem presidiu à recolha da prova é quem a julga e fixa.
VII. Em regra o contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, sem eficácia real, mesmo tendo havido traditio, não confere ao promitente comprador uma posse em nome próprio: inexistindo tal posse, a que é exercida pelo possuidor é em nome alheio e só é idónea para aquisição do direito real de propriedade ocorrendo inversão do título de posse e a verificação dos requisitos de posse usucapível, desde o momento da inversão.
VIII. Por estar reconhecido que os réus devem restituir o prédio reivindicado aos proprietários demandantes, e tendo os réus realizado obras no imóvel durante o largo período temporal da ocupação que subsiste, são tais obras benfeitorias, nos termos do art. 216º do Código Civil.
IX. As benfeitorias feitas pelos Réus, que não foram autorizadas pelo proprietário, e que visam apenas o interesse dos benfeitorizantes em função de diverso destino económico dado à coisa, que o reivindicante vencedor não pretende sequer utilizar por não serem prestáveis à afectação económica da coisa, apenas podem qualificadas como benfeitorias voluptuárias, porque não visaram evitar a perda ou destruição ou deterioração da coisa, nem lhe aumentam o valor por não serem indispensáveis.
II. Na vigência do art. 668º do vCPC, tendo sido arguidas pelo recorrente nulidades da sentença, o juiz poderia supri-las, nos termos do nº 4, pelo que não lhe estava defeso, considerando-as procedentes, proferir nova decisão.
III. O princípio do juiz natural encontra consagração constitucional no processo penal, art. 39º, nº2, da Constituição da República, como garantia fundamental relacionada com a exigência de um julgamento justo e imparcial, sendo o juiz do processo aquele a quem couber a competência de harmonia com a lei.
IV. No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontra protecção, enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo. A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção: relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstractas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.
V. Não se podendo afirmar que a alteração das pessoas dos Magistrados, que intervieram na 1ª Instância e na Relação, no julgamento da acção e do recurso, respectivamente, visaram de forma ilegal, arbitrária e discriminatória, prejudicar os Recorrentes, ou quem quer que fosse, não se pode considerar ter havido violação do princípio do juiz natural. No processo civil tem aplicação o princípio da plenitude da assistência dos juízesconsagrado no art. 605º do Código de Processo Civil, que também comporta excepções.
VI. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado agora no art.605º do Código de Processo Civil (antes no art. 654º), só tem aplicação quando da fixação da matéria de facto, em ponderação dos princípios da imediação, da oralidade e concentração, conhecendo aplicação intransigente quando o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa é aquele que quem tem de proferir a decisão de facto: aí, salvo casos excepcionais, quem presidiu à recolha da prova é quem a julga e fixa.
VII. Em regra o contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, sem eficácia real, mesmo tendo havido traditio, não confere ao promitente comprador uma posse em nome próprio: inexistindo tal posse, a que é exercida pelo possuidor é em nome alheio e só é idónea para aquisição do direito real de propriedade ocorrendo inversão do título de posse e a verificação dos requisitos de posse usucapível, desde o momento da inversão.
VIII. Por estar reconhecido que os réus devem restituir o prédio reivindicado aos proprietários demandantes, e tendo os réus realizado obras no imóvel durante o largo período temporal da ocupação que subsiste, são tais obras benfeitorias, nos termos do art. 216º do Código Civil.
IX. As benfeitorias feitas pelos Réus, que não foram autorizadas pelo proprietário, e que visam apenas o interesse dos benfeitorizantes em função de diverso destino económico dado à coisa, que o reivindicante vencedor não pretende sequer utilizar por não serem prestáveis à afectação económica da coisa, apenas podem qualificadas como benfeitorias voluptuárias, porque não visaram evitar a perda ou destruição ou deterioração da coisa, nem lhe aumentam o valor por não serem indispensáveis.
X. O instituto do enriquecimento sem causa não se aplica às benfeitorias voluptuárias.
"6ª questão: o juiz natural
Relacionada com as precedentes questões, suscitam os Recorrentes a violação do princípio do juiz natural, porquanto, aduzem, intervieram vários Magistrados no processo, enquanto pendente no Tribunal de 1ª Instância, não coincidindo quem presidiu à audiência de discussão e julgamento e quem proferiu a sentença apelada.
Aduzem, ainda os Recorrentes […] que, na Relação, o processo teve duas Relatoras: primeiro, por despacho de 21.4.2017, que, depois foi substituída.
Sobre a alegada violação do princípio do juiz natural se pronunciou o Acórdão recorrido, a fls. 4233/4244, enfatizando que a regra do juiz natural “com imutabilidade imperativa só está arvorada em princípio constitucional no processo penal, “ex vi” do nº9 do artigo 32.º da Constituição da República”, visando o princípio assegurar a imparcialidade e a isenção do julgador.
Nas garantias do processo penal a Constituição da República – no nº9 do antes referido art.32º consigna – “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
Na “Constituição da República Anotada”, vol. I, pág. 525, os eminentes constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, escrevem:
“O princípio do juiz legal (n°9) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos. Note-se que a Constituição proíbe a existência de tribunais penais, para certas categorias de crimes. Mesmo que sem competência exclusiva (art. 209°-4).
Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.
A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa;
(c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).”
Sem dúvida que a predefinição da competência dos Julgadores, a divisão interna funcional e o carácter aleatório da distribuição dos processos, são garantias de um processo penal imparcial e justo, direitos fundamentais que são salvaguardados expressamente em processo criminal, que, nos termos do nº 1 da Lei Fundamental, “assegura todas as garantias de defesa.”
No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontram protecção enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo, equitativo, e ao seu julgamento imparcial.
A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
Relacionada com as precedentes questões, suscitam os Recorrentes a violação do princípio do juiz natural, porquanto, aduzem, intervieram vários Magistrados no processo, enquanto pendente no Tribunal de 1ª Instância, não coincidindo quem presidiu à audiência de discussão e julgamento e quem proferiu a sentença apelada.
Aduzem, ainda os Recorrentes […] que, na Relação, o processo teve duas Relatoras: primeiro, por despacho de 21.4.2017, que, depois foi substituída.
Sobre a alegada violação do princípio do juiz natural se pronunciou o Acórdão recorrido, a fls. 4233/4244, enfatizando que a regra do juiz natural “com imutabilidade imperativa só está arvorada em princípio constitucional no processo penal, “ex vi” do nº9 do artigo 32.º da Constituição da República”, visando o princípio assegurar a imparcialidade e a isenção do julgador.
Nas garantias do processo penal a Constituição da República – no nº9 do antes referido art.32º consigna – “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
Na “Constituição da República Anotada”, vol. I, pág. 525, os eminentes constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, escrevem:
“O princípio do juiz legal (n°9) consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos. Note-se que a Constituição proíbe a existência de tribunais penais, para certas categorias de crimes. Mesmo que sem competência exclusiva (art. 209°-4).
Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.
A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa;
(c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).”
Sem dúvida que a predefinição da competência dos Julgadores, a divisão interna funcional e o carácter aleatório da distribuição dos processos, são garantias de um processo penal imparcial e justo, direitos fundamentais que são salvaguardados expressamente em processo criminal, que, nos termos do nº 1 da Lei Fundamental, “assegura todas as garantias de defesa.”
No processo civil, não que seja de excluir esse princípio, que não está contemplado em sede constitucional, mas também aí, mormente, a distribuição aleatória dos processos e a proibição de transferência abusiva dos magistrados encontram protecção enquanto exigência e postulado do direito a um processo justo, equitativo, e ao seu julgamento imparcial.
A não coincidência entre o Magistrado que preside à produção da prova e aquele que julga, pode resultar de motivos vários, sejam eles ligados ao cargo, a razões de saúde, transferência, sanção disciplinar ou promoção.
Relevante é que a descoincidência se fique a dever a motivos com suporte legal inerentes à organização e funcionamento da Magistratura, com apoio em normas gerais e abstractas e regulamentos dimanados dos órgãos jurídico-constitucionais competentes.
O processo civil proporciona meios para a assegurar a imparcialidade dos julgadores, ainda que com feição diferente da protecção constitucional a que nos referimos, mormente, nos arts. 115º e 119º e 124º do Código de Processo Civil.
Assim, não se podendo afirmar que as alterações das pessoas dos Magistrados que intervieram na 1ª Instância e na Relação visaram, de forma ilegal e discriminatória, prejudicar os Recorrentes, ou quem quer que fosse, não se pode considerar ter havido violação do princípio do juiz natural. No processo civil tem aplicação o princípio da plenitude da assistência dos juízes consagrado no art. 605º do Código de Processo Civil, que também comporta excepções.
O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado agora no art.605º do Código de Processo Civil (antes no art. 654º), só tem aplicação quando da fixação da matéria de facto, em ponderação dos princípios da imediação, da oralidade e concentração, conhecendo aplicação intransigente quando o tribunal perante o qual foi feita a discussão da causa é aquele que quem tem de proferir a decisão de facto: aí, salvo casos excepcionais, quem presidiu à recolha da prova é quem a julga.
Como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra, de 18.3.2014 – Proc. 3721/11.9TBLRA.C1 (sumário) - Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt:
“Dado que no Código de Processo Civil de 1961 o princípio da plenitude da assistência dos juízes só valia para os actos de produção da prova e de julgamento da matéria de facto – e, portanto, para a fase da audiência – e não também para a fase da sentença, o proferimento da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto não infringia aquele princípio – nem, aliás, qualquer outro princípio ou norma processual.
Uma vez que o NCPC concentrou o julgamento da questão de facto na sentença final, esta sentença só pode ser proferida pelo juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência ou audiências de discussão e julgamento.
Essa regra não é, porém, aplicável aos casos em que, antes do início da vigência do NCPC, a matéria de facto já se mostrava julgada pelo juiz que assistiu aos actos de produção da prova.
O proferimento da sentença final por juiz diferente do que decidiu a matéria de facto resolve-se, no NCPC, numa simples nulidade processual, inominada ou secundária, que não constitui objecto admissível do recurso.”
7ª questão
- Ainda no elenco das nulidades, é assacada ao Acórdão a nulidade causada pela omissão de elaboração do sumário pelo Relator. Seria uma nulidade atípica, porque não consta do elenco taxativo do art. 615º do Código de Processo Civil aplicável por força do art. 684º.
O nº 7 do art. 663º do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz que elaborar o acórdão deve sumariá-lo. A elaboração e redacção do Acórdão é da responsabilidade do relator. A omissão do sumário em nada se repercute na essência da decisão, pelo que não pode ser considerada nulidade do processo, nem confere às partes qualquer prerrogativa de índole adjectiva."
[MTS]
25/10/2018
Jurisprudência 2018 (100)
Meio de prova; apelação autónoma;
revogação da decisão; efeitos
I. O sumário de RG 17/5/2018 (710/15.8T8VRL.G2) é o seguinte:
1 - A ratio da admissibilidade da apelação autónoma e imediata das decisões sobre os meios de prova, para lá do obviar a atrasos processuais, está na conveniência de evitar a prática de atos inúteis, atenuando-se os riscos de futura inutilização do processado;
2 - Sendo revogada a decisão que rejeitou um meio de prova, tem de se produzir o meio de prova prejudicado pela rejeição e as diligências e os trâmites processuais não podem deixar de ficar sujeitos às vicissitudes do decidido;
3 - Assim, a procedência do recurso de apelação do despacho que rejeita um meio de prova implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência, entre eles a sentença final proferida (nº 2, do artigo 195º, Código de Processo Civil, aplicável por analogia), ficando, consequentemente, prejudicado o recurso da sentença, anulada.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"[...] as questões a decidir são as seguintes:
- Se cabia ao Tribunal a quo cumprir o decidido pelo Tribunal ad quem no âmbito da apelação em separado (recurso esse interposto da decisão que rejeitou a produção do meio de prova), produzindo a prova - inspeção judicial - admitida pelo Tribunal superior;
- Se cabia ao Tribunal a quo cumprir o decidido pelo Tribunal ad quem no âmbito da apelação em separado (recurso esse interposto da decisão que rejeitou a produção do meio de prova), produzindo a prova - inspeção judicial - admitida pelo Tribunal superior;
- Em caso afirmativo, consequências do incumprimento. [...]
- Da obrigatoriedade de cumprimento da decisão do Tribunal Superior e consequências do incumprimento
Conclui o Autor que os despachos recorridos violam as normas contidas nos arts 6º, 152º, nº 1, 607º, nº 1, 613º, 652º, nº 1, als. b) e d), todos do actual Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, pois o incumprimento do decidido pelo Tribunal ad quem no âmbito da apelação em separado, interposta da decisão que rejeitou o meio de prova, implica a invalidação de todo o processado posterior ao despacho de rejeição, considerando-se prejudicada a sentença final, e que a apelação interposta do despacho interlocutório de não admissão de meio de prova, ao ser julgada procedente, revela-se prejudicial conhecimento do objeto do recurso desta, a qual teve por base uma decisão de facto sem que fosse realizada a diligência de prova que a Relação considerou necessária.
Vejamos se assim acontece.
Verifica-se que do despacho que rejeita um meio de prova cabe recurso de apelação autónoma, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo – cfr. al. d), do nº2, do art. 644º, nº2, do art. 645º e nº1, do art. 647º.
Como se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 28/4/2015, processo 465/14:dgsi.net, a al. d) do nº2 do art. 644º, abrange tanto a admissão como a rejeição de meios de prova, ou seja, a pronúncia relativa a requerimentos de prova, não consentindo distinções entre meios de prova novos ou velhos, diferentes ou iguais aos apresentados pela parte contrária, já produzidos ou a produzir. As razões que justificam a admissibilidade da apelação autónoma e imediata das decisões sobre os meios de prova prendem-se, para além da, desejável, celeridade processual, com a conveniência de atenuar os riscos de uma futura inutilização do processado [...] [...].
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 17/5/2017, Processo 28048/15.3T8LSB.L1-4 se decidiu que a eventual revogação da decisão intercalar que contende com o resultado da lide provoca efeitos anulatórios da tramitação processual que se lhe segue e afecta a própria decisão final, tornando prejudicado o recurso interposto desta [..].
Aí se refere “em consequência da procedência da apelação interposta quanto ao despacho interlocutório, a reapreciação da sentença final queda prejudicada na medida em que o erro decisório que afecta um dos passos que a antecedeu (…) exerceu efectiva influência no resultado da lide – cfr. o artigo 660.º do Código de Processo Civil – inutilizando o processado ulterior.
Nesta situação em que o recurso interposto da decisão interlocutória é decidido a favor do recorrente, como diz o Professor Miguel Teixeira de Sousa num post intitulado “Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado”, publicado em 21 de Janeiro de 2016 no blogue do IPPC [...], há que aplicar, por analogia, o disposto no artigo 195.º, n.º 2, Código de Processo Civil: “a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final”.
Mostra-se pois prejudicada a impugnação deduzida da sentença”.
Os trâmites processuais ou diligências anteriores ficam sujeitos às vicissitudes do que vier a ser decidido: se for confirmada a decisão recorrida, serão integralmente respeitados; sendo revogada, proceder-se-á, conforme os casos, à invalidação e desconsideração dos actos de produção de prova indevidamente executados, à produção dos meios de prova prejudicados pela rejeição [Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, Coimbra, 2017, Almedina, p.199].
In casu, o Douto Acórdão desta Relação, que, revogando o despacho proferido em audiência de julgamento, admitiu a prova por inspecção ao local, determina, obviamente, pelo referido, como não pode deixar de ser, invalidação do processado posterior ao despacho que rejeitou tal meio de prova, incluindo a sentença proferida.
A não ser assim, nunca seria produzida e considerada a prova admitida e o Acórdão, que decidiu definitivamente a questão, não passaria de letra morta, nenhuma utilidade tendo o recurso.
E, na verdade, estatui o nº 1, do artigo 152º, do referido diploma legal, que Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores.
Ora, julgada procedente a apelação autónoma tal determina que o Tribunal de 1ª instância tenha de proceder à inspeção ao local.
O tribunal a quo devia, em obediência ao decidido pelo Tribunal Superior, cumprir, sem mais, o decidido por este Tribunal. Ao efectuar o que diz ser a interpretação da lei está, na verdade, a não cumprir o decidido no Acórdão que admitiu a inspeção judicial requerida pelo autor, com inobservância do disposto no nº1, do artigo 152º, do CPC.
E a existência do Acórdão no processo de recurso em separado, não cumprido pelo tribunal de primeira instância, obsta ao conhecimento do objeto do recurso da decisão final, a qual teve por base uma decisão de facto sem que fosse realizada a diligência de prova que essa douta Relação considerou necessária.
O decidido no Acórdão desta Relação de 16.11.2017, impõe, na verdade, ao juiz de primeira instância que prossiga a audiência de julgamento, com inspeção judicial.
E a sentença proferida, onde se não considerou a prova pericial admitida, tem de ser anulada, tudo se configurando como que se se voltasse ao momento em que a inspecção ao local foi indeferida, despacho esse que se substituiu pelo deferimento de tal requerimento de prova, que tem de ser produzida, prosseguindo, depois, a audiência de julgamento com a restante tramitação (designadamente alegações).
O cumprimento do decidido pelo Tribunal ad quem no âmbito da apelação em separado, implica, forçosamente, a invalidação de todo o processado posterior ao despacho de rejeição, incluindo da sentença final, para, primeiramente, ser produzida a prova admitida pelo Tribunal superior."
[MTS]
24/10/2018
Jurisprudência europeia (TJ) (182)
Processo prejudicial urgente – Reg. 2201/2003 – Competência em matéria de responsabilidade parental – Conceito de “residência habitual da criança” – Exigência de uma presença física – Retenção da mãe e da criança num país terceiro contra a vontade da mãe – Violação dos direitos fundamentais
da mãe e da criança
TJ 17/10/2018 (C‑393/18 PPU, UD/XB) decidiu o seguinte:
O artigo 8.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que uma criança deve ter‑se encontrado fisicamente presente num Estado‑Membro para que se possa considerar que reside habitualmente nesse Estado‑Membro, na aceção dessa disposição. Circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, admitindo que se verificaram, isto é, por um lado, a coação exercida pelo pai sobre a mãe que levou a que a mãe desse à luz o filho do casal num Estado terceiro e residisse nesse Estado juntamente com a criança desde o nascimento desta e, por outro, a violação dos direitos fundamentais da mãe ou da criança, não são relevantes a este respeito.
Jurisprudência 2018 (99)
Alimentos; filho maior;
competência material
1. O sumário de RG 17/5/2018 (602/18.9T8VCT.G1) é o seguinte:
A competência para a acção de alimentos a filho de maior idade prevista no artº 989º, nº 3, do CPC, quando não proposta pelo próprio (nem tenha havido regulação enquanto menor) mas pelo progenitor, divorciado, que o tenha a seu cargo, contra a progenitora com a qual não se perspectiva possibilidade de acordo, pertence aos tribunais e não às conservatórias.
"Ainda que proposta por um progenitor contra o outro e visando exigir deste a contribuição para o sustento e educação dos filhos comuns, nos termos das invocadas normas dos artºs 989º, do CPC, e 3º, alínea d), e 6º, alínea d), do RGPTC (aprovado pela Lei 141/2015, de 8 de Setembro), estamos perante Providência Tutelar Cível relativa a filhos maiores.
Era controvertida […], designadamente quanto ao procedimento adequado, a questão dos alimentos aos mesmos devidos, face ao disposto no artº 1880º, CC, em conjugação com o regime previsto para os casos de divórcio ou separação nos artºs 1905º e 1906º, sobretudo quando, uma vez fixados, cessava a menoridade antes de concluída a formação profissional. […]
Sendo inequívoca, a partir do Decreto-Lei nº 272/2001, a intenção do legislador de aliviar os tribunais e passar para as conservatórias matérias, como a da fixação de alimentos a filhos maiores ou emancipados, cuja resolução se apresenta como verdadeiramente não litigiosa e naturalmente mais vocacionada ao consenso privilegiado, a verdade é que, apesar de, mesmo nas situações subsequentes ao divórcio e relativas a menores, a lei também incentivar e conferir prioridade ao acordo sobre a regulação do exercício do poder paternal, designadamente no contexto previsto nos artºs 931º e sgs e 994º e sgs, CPC, além de sempre se salvaguardar o recurso aos tribunais em casos de falta dele, para as situações de potencial litígio à vista entre os progenitores, designadamente e sobretudo naquelas em que, estando o filho maior a cargo de um deles, este se vê obrigado a reclamar do outro o contributo alimentar mais ou menos explicitamente recusado, acabou por, decididamente, se optar pelo caminho da via judicial, ao alterar-se, pela Lei 122/2015, o artº 989º, do CPC, assim se eliminando algumas dúvidas e constrangimentos anteriores.
Na nota preambular justificativa da Proposta de Lei nº 975/XII/4ª, apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia da República e que esteve na sua origem, pode ler-se:
“….urge dar resposta a uma questão particular relativa ao actual regime de exercício das responsabilidades parentais.
Era controvertida […], designadamente quanto ao procedimento adequado, a questão dos alimentos aos mesmos devidos, face ao disposto no artº 1880º, CC, em conjugação com o regime previsto para os casos de divórcio ou separação nos artºs 1905º e 1906º, sobretudo quando, uma vez fixados, cessava a menoridade antes de concluída a formação profissional. […]
Sendo inequívoca, a partir do Decreto-Lei nº 272/2001, a intenção do legislador de aliviar os tribunais e passar para as conservatórias matérias, como a da fixação de alimentos a filhos maiores ou emancipados, cuja resolução se apresenta como verdadeiramente não litigiosa e naturalmente mais vocacionada ao consenso privilegiado, a verdade é que, apesar de, mesmo nas situações subsequentes ao divórcio e relativas a menores, a lei também incentivar e conferir prioridade ao acordo sobre a regulação do exercício do poder paternal, designadamente no contexto previsto nos artºs 931º e sgs e 994º e sgs, CPC, além de sempre se salvaguardar o recurso aos tribunais em casos de falta dele, para as situações de potencial litígio à vista entre os progenitores, designadamente e sobretudo naquelas em que, estando o filho maior a cargo de um deles, este se vê obrigado a reclamar do outro o contributo alimentar mais ou menos explicitamente recusado, acabou por, decididamente, se optar pelo caminho da via judicial, ao alterar-se, pela Lei 122/2015, o artº 989º, do CPC, assim se eliminando algumas dúvidas e constrangimentos anteriores.
Na nota preambular justificativa da Proposta de Lei nº 975/XII/4ª, apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia da República e que esteve na sua origem, pode ler-se:
“….urge dar resposta a uma questão particular relativa ao actual regime de exercício das responsabilidades parentais.
Essa questão particular respeita ao regime que penaliza de forma desproporcionada as mulheres que são mães de filhos ou filhas maiores e que estão divorciadas ou separadas dos respetivos pais.
É hoje comum que, mesmo depois de perfazerem 18 anos, os filhos continuem a residir em casa do progenitor com quem viveram toda a sua infância e adolescência e que, na esmagadora maioria dos casos, é a mãe.
Tem vindo a verificar-se, com especial incidência, que a obrigação de alimentos aos filhos menores cessa, na prática, com a sua maioridade e que cabe a estes, para obviar a tal, intentar contra o pai uma ação especial.
Esse procedimento especial deve provar que não foi ainda completada a educação e formação profissional e que é razoável exigir o cumprimento daquela obrigação pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete.
Como os filhos residem com as mães, de facto são elas que assumem os encargos do sustento e da formação requerida.
A experiência demonstra uma realidade à qual não podemos virar as costas: o temor fundado dos filhos maiores, sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, leva a que estes não intentem a ação de alimentos.
Mesmo quando o fazem, a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional.
Há, também, por consequência do descrito, uma desigualdade evidente entre filhos de pais casados ou unidos de facto e os filhos de casais divorciados ou separados.
A alteração legislativa proposta vai ao encontro da solução acolhida em França, confrontada, exatamente, com a mesma situação, salvaguardando no âmbito do regime do acordo dos pais relativo a alimentos em caso de divórcio, separação ou anulação do casamento, a situação dos filhos maiores ou emancipados que continuam a prosseguir os seus estudos e formação profissional e, por outro lado, conferindo legitimidade processual ativa ao progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas de filho maior para promover judicialmente a partilha dessas mesmas despesas com o outro progenitor.”
Em anotação publicada no Blog do IPPC pelo Juiz de Direito J. H. Delgado de Carvalho, relativa às modificações operadas pela Lei 122/2015, escreveu este:
“A situação do filho maior ou emancipado que continue a prosseguir os seus estudos e formação profissional passa a ser salvaguardada no âmbito do regime do acordo dos pais sobre o exercício das responsabilidades parentais, mais concretamente do regime relativo a alimentos em caso de divórcio, separação ou anulação do casamento. O princípio da igualdade (cfr. art. 13.º da Constituição) implica que se deva adotar uma idêntica solução no âmbito da regulação das responsabilidades parentais no caso de cessação da união de facto, mesmo que a filiação se encontre estabelecida apenas quanto a um dos progenitores e, no momento da cessação da coabitação entre o único progenitor e o unido de facto, este último esteja a exercer, a seu pedido e por decisão judicial, as responsabilidades parentais em conjunto com aquele (cfr. os n.ºs 2 e 5 do novo art. 1904.º-A aditado ao Código Civil pela Lei n.o 137/2015, de 7/9).
Se os progenitores não regularem a situação do filho que continua a prosseguir os seus estudos e formação profissional para além da maioridade, mantém-se a obrigação de alimentos nos termos fixados para a menoridade do filho.
Uma outra importante alteração que o novo regime introduz é a possibilidade de o progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas de sustento e educação de filho maior exigir do outro progenitor a comparticipação daquelas despesas (cfr. o n.º 3 aditado ao art. 989.º do NCPC). Perante a inércia do filho, depois de perfazer 18 anos, reconhece-se legitimidade processual ativa ao progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas do filho maior, concitando à repartição dessas mesmas despesas pelo outro progenitor.
No entanto, essa legitimidade apenas pode ser exercida no âmbito da acção prevista no n.º 3 aditado ao art. 989.º do NCPC, que, de forma apropriada, podemos designar como ação para a contribuição do progenitor não convivente nas despesas com a educação e formação profissional de filho maior ou emancipado.
O reconhecimento de legitimidade direta ativa tem um importante alcance prático: o progenitor convivente pode imporao outro progenitor, para o futuro, a distribuição, total ou parcial, das despesas com o sustento e educação de filho maior, ficando dispensado de alegar e provar as despesas concretamente suportadas por si, com vista ao seu reembolso, de acordo com o disposto no art. 592.º, n.º 1, do CCiv (sub-rogação legal). A legitimidade processual reconhecida ao progenitor convivente na ação para a contribuição nas despesas com filhos maiores ou emancipados, embora não exclua a ação sub-rogatória, permite exigir a comparticipação, para o futuro, do progenitor não convivente naquelas despesas e enquanto se mantiver a razoabilidade dessa repartição, assim como permite a cobrança coerciva das contribuições vencidas e não pagas até esse momento. A legitimidade processual reconhecida ao progenitor convivente pelo n.º 3 aditado ao art. 989.o do NCPC é extensível à fase executiva.
1.4. Forma de processo aplicável à ação para a contribuição nas despesas com filhos maiores ou emancipados. – Por força da parte final do n.º 3 aditado ao art. 989.º do NCPC, esta ação tem natureza especial e segue a forma de processo prevista e regulada nos arts. 186.º a 188.º da OTM [correspondentes aos arts. 45.º a 47.º do RGPTC (providência tutelar cível para a fixação de alimentos devidos a criança)]
O pedido para a contribuição nas despesas de filho maior que não pode sustentar-se a si mesmo está, pois, excluído do procedimento especial previsto e regulado nos arts. 5.o a 10.º do Dec.-Lei n.º 272/2001, de 13/10. A parte final do n.º 3 aditado ao art. 989.º do NCPC, devido à formulação utilizada (“nos termos dos números anteriores”), é explícita em mandar aplicar os termos do Código de Processo Civil; por sua vez, o n.º 1 do art. 989.º do NCPC torna aplicável, mutatis mutandis, o regime previsto para os alimentos a menores, ou seja, o regime previsto na OTM, nomeadamente nos seus arts. 157.º e 186.º a 188.º.
Esta ação é instaurada pelo progenitor com quem o filho reside contra o progenitor não convivente na secção de competência especializada (secção de família e menores), na secção de competência genérica da instância local ou na secção cível em que esta se encontre desdobrada, consoante os casos (cfr. arts. 6.º, al. d) e 8.º do RGPTC; e art. 123.º, n.º 1, al. e), da LOSJ). A ação é distribuída autonomamente quando não exista processo no qual se tenha estabelecido o regime de alimentos a menor, pois, nesta hipótese, não são aplicáveis os art. 282.º, n.º 1, e 989.º, n.º 2, do NCPC; de modo diverso, quando esse processo exista, esteja pendente ou não, o pedido de contribuição nas despesas com filho maior ou emancipado, por força do disposto na parte final do n.º 3 aditado ao art. 989.º do NCPC, constitui incidente do processo no qual foi fixada a pensão de alimentos para a menoridade e, por via disso, corre por apenso a este, renovando-se a instância se o processo se encontrar já findo. Esta solução impõe-se por força do disposto nos art. 282.º, n.º 1, e 989.º, n.º 2, do NCPC.
De qualquer modo, o objeto da ação prevista no n.º 3 aditado ao referido art. 989.º do NCPC não é alterar a pensão de alimentos fixada para a menoridade, mas antes obrigar o progenitor não convivente a comparticipar nas despesas com o sustento e a educação de filho maior, desde o momento da instauração dessa ação (por aplicação analógica do art. 2006.º, do CCiv) e até que o mesmo complete a sua formação.
Significa isto que a ação agora prevista destinada à comparticipação das despesas com o sustento e educação de filho maior que ainda não alcançou independência económica pode ser instaurada, quer exista processo anterior no qual se tenha estabelecido o regime de alimentos devidos a menor, quer não exista esse processo, e o filho, por relutância, não tenha apresentado na Conservatória do Registo Civil o pedido de alimentos para efeitos do disposto no art. 1880.º do CCiv, dando início ao procedimento especial por alimentos a filho maior ou emancipado, previsto e regulado nos arts. 5.º a 10.º do Dec.-Lei n.º 272/2001.”
No Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado nº 53/CC/2016, de 29-10-2016, relatado por Paula Marina Oliveira Calado Almeida Lopes, concluiu-se, além do mais, sobre a questão colocada:
“VII. O nº 3 aditado ao artº 989º. Do CPC, pela Lei nº 122/2015, de 1 de Setembro, conferiu ao progenitor sobrecarregado com a totalidade das despesas com o filho maior ainda em formação profissional, a legitimidade para, por si e no seu interesse, exigir que o outro progenitor partilhe nas despesas com os filhos maiores, através da acção especial e alternativa ao procedimento de alimentos a filho maior previsto no referido Decreto-Lei nº 272/2001, no qual é parte legítima o filho.
VIII. A acção referida na conclusão anterior segue os trâmites processuais previstos nos artigos 45º e seguintes do Decreto-Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro (Regime Geral do Processo Tutelar Cível), com as devidas adaptações, não configurando um pedido de alimentos a filho maior previsto e regulado no referido Decreto-Lei 272/2001.”
No Acórdão da Relação de Lisboa de 23-03-2017 (Processo nº 2257/17.9T8LSB.L1-6, relatado pelo Desemb. Eduardo Peterson Silva), decidiu-se:
“À providência a que se refere o artigo 989º nº3 do CPC não é aplicável o procedimento especial previsto e regulado nos artigos 5º a 10º do Dec-Lei n.º 272/2001, de 13/10, competindo pois ao tribunal o seu processamento.”
No Acórdão da Relação de Évora de 13-07-2017 (Processo nº 1362/16.3T8PTG.E1, relatado pela Desemb. Maria da Conceição Ferreira), semelhantemente, entendeu-se:
“À providência a que se refere o artigo 989º, nº 3, do CPC não é aplicável o procedimento especial previsto e regulado nos artigos 5º a 10º do Dec. Lei n.º 272/2001, de 13/10, competindo, pois, ao tribunal o seu processamento.”
Também em estudo publicado na revista digital Julgar On Line (Março de 2018, página 14, da autoria do Juiz de Direito Gonçalo Oliveira Magalhães), se considerou:
“O art. 989.º, n.º 3, do CPC, na redacção da Lei n.º 122/2015, de 1.09, reconhece essa legitimidade [do progenitor] quando se torne necessário providenciar judicialmente sobre alimentos aos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional, o que pode ser dogmaticamente enquadrado na figura da legitimidade indirecta. Por identidade de razões, a legitimidade mantém-se quando se trate de prosseguir as acções intentadas durante a menoridade que devam prosseguir nos termos do art. 989.º, n.º 2. Afastada está, por falta de previsão legal (cf. art. 30.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC), a legitimidade para a acção, da competência das conservatórias do registo civil, destinada à formação de acordo, nos termos do art. 5.º do DL n.º 272/2001.”
E, concluindo quanto às diversas hipóteses e subsequentes caminhos:
“Se a necessidade de fixar a obrigação surgir na maioridade, importa distinguir, com base em juízo de prognose, se a vontade do filho e a do progenitor obrigado são ou não conciliáveis. Na primeira hipótese, deve seguir-se o processo destinado à autocomposição previsto no art. 5.º do DL n.º 272/2001, de 13.10, para o qual apenas o filho tem legitimidade activa; na segunda, fica aberto o caminho para o processo judicial, que segue o regime previsto para a fixação de alimentos a filhos menores, estando assegurada a legitimidade (substitutiva) activa do progenitor com quem o filho convive.”.
Tendo, por fim, em conta, para além do exposto, que, em função do alegado na petição […], é de perspectivar seriamente como remota, face à configuração fáctica já litigiosa do caso, a hipótese de consenso entre os progenitores sobre a obrigação visada e que, em tais situações, já mesmo antes da Lei nº 122/2015, se preconizava […], ante o prognóstico de tal cenário e não obstante o previsto no DL 272/2001, a competência originária do tribunal de família […], é de concluir também que, no presente caso, não sendo embora a acção proposta pelo filho nem (que se saiba) tendo sido fixados alimentos durante a menoridade mas por um dos progenitores contra o outro, nos termos e com os fundamentos previstos no nº 3, do artº 989º, CPC, o apelante tem bem fundamentada razão, devendo ser revogado o despacho recorrido e declarada a competência do tribunal, determinando-se o prosseguimento nele da presente causa."
[MTS]
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