Sob a epígrafe “Oponibilidade a terceiros”, preceitua o artigo 5.º do Código de Registo Predial:
1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.
2 - Excetuam-se do disposto no número anterior:
a) A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b) As servidões aparentes;
c) Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.
3 - A falta de registo não pode ser oposta aos interessados por quem esteja obrigado a promovê-lo, nem pelos herdeiros destes.
4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
5 - Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.
A questão enunciada supra foi objeto de aceso debate doutrinário e jurisprudencial, o que justificou a prolação sobre a mesma, de dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência, que tiveram por base situações semelhantes à que se debate nos autos: penhora com registo anterior ao registo da aquisição por terceiro (embargante).
Tratava-se de saber se o credor exequente deve ser considerado “terceiro” em relação a um adquirente anterior com registo de aquisição posterior ao registo da penhora.
Consoante se adotasse um critério mais ou menos amplo, assim diferia a resposta: o credor exequente seria considerado “terceiro” para efeitos do art.º 5.º do CRP, caso prevalecesse o critério amplo de “terceiro”; o mesmo credor não seria considerado “terceiro” para efeitos do art.º 5.º do CRP, caso prevalecesse o critério mais restritivo de “terceiro”.
Refere-se no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 20 de maio de 1997 - Acórdão n.º 15/97, publicado no Diário da República n.º 152/1997, Série I-A de 4.07.1997 que, destinando-se o registo predial a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (cf. artigo 11.º do Código do Registo Predial), tão digno de tutela é aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, troca, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.).
Consta da fundamentação do citado aresto, que «[n]ão importa apurar se o credor exequente agiu de boa ou má fé ao nomear à penhora a fracção predial em causa. É que a eficácia do registo é independente da boa ou má fé de quem regista».
E conclui-se que no caso em apreço o credor embargado e o embargante são terceiros, pelo que, não tendo sido a compra efetuada pelo embargante levada ao registo antes do registo da penhora, é aquela ineficaz em relação a esta, tendo sido uniformizada a jurisprudência na qual se optou pelo conceito de “terceiros” mais amplo, nestes termos: «Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente».
A posição sufragada no Acórdão Uniformizador de 20 de maio de 1997, veio a ser rejeitada no Acórdão Uniformizador de 18.05.1999 (Proc. n.º 98B1050, Diário da República n.º 159/1999, Série I-A de 10.07.1999), no qual se refere a tranquilidade do comércio jurídico decorrente do entendimento anterior, aludindo-se, no entanto, a “inarredáveis escolhos geradores de efeitos perversos, eles próprios génese de intranquilidade”, e questionando-se o preço a pagar por essa tranquilidade.
Na fundamentação do segundo Acórdão Uniformizador é chamada à colação a argumentação expendida no Acórdão Uniformizador 20 de maio de 1997, expressa em vários votos de vencido, exarados naquele aresto, nos quais se justifica a adesão ao conceito restrito de terceiros, nomeadamente o voto do Conselheiro Martins Costa, com o seguinte teor: “O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são «terceiros», embora sujeita a registo, no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfação dos fins da execução (ver nota 35). A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que «os actos de disposição ou oneração de bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta» (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 1.ª ed., p. 67)”.
Alicerçado, sobretudo, na doutrina do Professor Manuel de Andrade, o Plenário do Supremo optou, desta feita, pela restritividade do posicionamento tradicional, concluindo: “Revendo-se a doutrina do mencionado aresto de 20 de Maio de 1997, formula-se, pois, o seguinte acórdão unificador de jurisprudência: «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.»”.
Como se refere no acórdão do STJ, de 6.11.2012 (Processo n.º 786/07.1TJVNF-B.P1.S1), a formulação legal de terceiros vertida no n.º 4 do artigo 5.º do Código de Registo Predial (aditado pelo DL n.º 533/99, de 11.12) é tributária da conceção restrita de terceiros, acolhida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 3/99, de 18.05.
E decorre da conceção restrita de terceiros, acolhida no AUJ n.º 3/99 e vertida no n.º 4 do artigo 5.º do Código de Registo Predial: que a inoponibilidade de direitos, para efeitos de registo, pressupõe que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum, dela se excluindo os casos em que o direito em conflito deriva de uma diligência judicial, in casu, de uma penhora; e que o exequente/embargado não é considerado terceiro em relação aos embargantes e, apesar de ter registado a penhora antes do registo de propriedade daqueles, a sua inscrição registal não prevalece sobre a propriedade da mesma, uma vez provada a aquisição da propriedade em momento anterior ao registo da penhora [...].
Face ao exposto, revela-se manifesta a improcedência da alegação do recorrente no segmento analisado: conclusões 1.ª a 20.ª.
3.2. As consequências da prova da aquisição em momento anterior à penhora
Conclui a Mª Juíza, na fundamentação jurídica da sentença recorrida:
«[…] Porém, aqui impõe-se distinguir se o embargante alega ter adquirido o bem do próprio executado ou de outrem.
Se alega ter adquirido o bem de pessoa diversa do executado, tudo se passa como acima se referiu: inexistindo presunção registral a seu favor, não lhe basta invocar uma forma de aquisição derivada do direito, tendo de invocar também uma forma de aquisição originária.
Mas se alegar que adquiriu o bem do próprio executado, a situação tem contornos diferentes.
A penhora de um bem tem como pressuposto que aquele existe no património do executado, pois que, em regra, apenas este responde pelo cumprimento coercivo da obrigação nos termos já referidos. Como já se referiu, só nos casos especialmente previstos na lei é que a execução pode incidir sobre bens de terceiro.
Por isso, quando penhora um bem, o exequente não põe em causa o direito de propriedade do executado sobre aquele bem. Pelo contrário, parte do pressuposto da existência daquele direito na titularidade do executado, aceitando toda a situação jurídica anterior à aquisição do bem pelo executado.
Por isso, o embargante que adquira do executado, não tem de alegar nem provar uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, bastando-lhe alegar e provar o acto translativo do direito de propriedade da esfera jurídica do executado para a sua (aquisição derivada). E, ao contestar os embargos, o exequente não pode pôr em causa o direito de propriedade do executado, porque estaria em contradição com o comportamento anteriormente assumido quando penhorou o bem e, dessa forma, implicitamente reconheceu a existência daquele direito na esfera jurídica do executado. Resta-lhe, apenas, como meio de defesa, infirmar a transmissão ou o respectivo título, alegando, por exemplo, a sua invalidade ou ineficácia.
No caso concreto da compra e venda, o direito de propriedade dela derivada transfere-se e consolida-se no património do comprador por mero efeito do contrato (artºs 408º e 879º, al. a) do Código Civil), pelo que, se for aquela a forma de aquisição derivada do direito invocada pelo embargante, basta a junção aos autos da escritura pública (ou de documento com o mesmo valor do original) para que se mostre provada a aquisição do direito de propriedade.
O que os embargantes fizeram.
É assim irrelevante saber por que motivo os embargantes adquiriram, quando obtiveram as chaves, se pagaram ou não o preço e até quando registaram a aquisição.
A transferência do direito de propriedade repete-se, ocorre por mero efeito do contrato, sendo irrelevante o cumprimento do mesmo – citados artºs 408º e 879º, al. a) do Código Civil.
E o registo predial não é constitutivo. Pelo que a data da aquisição não é a do registo, é a da escritura.
Assim, são os embargantes titulares de um direito incompatível com a penhora, pelo que não podem deixar de proceder os embargos».
O recorrente insurge-se contra a fundamentação da sentença, alegando que (conclusões 21.ª a 40.ª): não é irrelevante saber por que motivo os embargantes adquiriram o bem imóvel penhorado nos autos, quando obtiveram as chaves, se pagaram ou não o respetivo preço; o preço acordado na referida escritura de compra e venda pode não ter sido pago; a escritura pública de compra e venda apenas confere uma força probatória plena aos documentos autênticos relativamente aos factos praticados pela autoridade pública e aos factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora; importa aferir se o preço convencionado de € 52.500,00 foi efetivamente pago; o banco exequente pode impugnar o pagamento do preço convencionado para efeitos de aferir da seriedade do negócio e das verdadeiras intenções das partes contraentes; é relevante apurar nos presentes autos o pagamento do preço da escritura de compra e venda celebrada a 9 de dezembro de 2015 de forma a aferir as intenções dos declarantes na venda e na compra do bem imóvel; também é importante apurar se a data da obtenção das chaves do bem imóvel penhorado por parte dos Embargantes D... e E..., de forma a aferir do início da respetiva posse. […]
Como bem refere a Mª Juíza, tendo os embargantes adquirido o imóvel ao executado, não têm de alegar nem provar factos integradores da aquisição originária do direito de propriedade, bastando-lhe alegar e provar o ato translativo do direito de propriedade da esfera jurídica do executado para a sua (aquisição derivada).
Isto porque, o exequente não pode pôr em causa o direito de propriedade do executado, após ter promovido a penhora do bem, porque ao fazê-lo reconheceu a existência daquele direito na esfera jurídica do executado, restando-lhe apenas, como meio de defesa, infirmar a transmissão ou o respetivo título, alegando, por exemplo, a sua invalidade ou ineficácia.
Ora, na situação sub judice provou-se que desde a celebração da escritura os embargantes usam a fração penhorada, à vista de todos e sem oposição de ninguém, pagando os respetivos impostos.
Em suma, provou-se: a transmissão da propriedade, que ocorreu por mero efeito do contrato (artigos 408º e 879º, al. a) do Código Civil); a prática de atos de posse subsequentes por parte dos embargantes, correspondentes ao direito transmitido.
Salvo o devido respeito, parece-nos inconsequente a argumentação do recorrente/embargado em sede recursória, face ao que alegou na contestação.
Vejamos porquê.
No referido articulado (artigos 1.º a 28.º), o embargado alegou que o direito dos embargantes não lhe é oponível face ao disposto no artigo 5.º do Código de Registo Predial, atenta a anterioridade do registo – questão já abordada no ponto anterior.
Na parte restante (artigos 28.º a 42.º), o embargado limitou-se a alegar que os embargantes não fizeram prova do pagamento do preço (artigos 29.º a 32.º), que os embargantes limitam-se a invocar “genericamente a posse do bem imóvel penhorado” (artigos 33.º a 40.º), e que, ainda que provassem a posse, a mesma não seria oponível contra terceiros relativamente a quem se invocou a propriedade (artigos 41.º e 42.º).
Reiterando o respeito devido, como bem refere a Mª Juíza na sentença recorrida, provada a transmissão (aquisição derivada) da propriedade do imóvel e a posterior prática de atos consubstanciadores da posse real e efectiva [...], apenas restava ao embargante, para poder prevalecer a sua tese, infirmar a transmissão ou o respetivo título, alegando, por exemplo, a sua invalidade ou ineficácia.
O embargante não alega factos integradores da simulação nem de qualquer outro vício suscetível de gerar a nulidade ou a invalidade do negócio, pelo que se revela totalmente improcedente a argumentação recursória, também neste segmento."
3. [Comentário] O acórdão merece apenas um breve comentário: uma boa decisão jurisprudencial sobre um mau regime legal. A pergunta que se continua a fazer é esta: se a propriedade do terceiro embargante, por não ter registo anterior ao da penhora, caducaria com a venda executiva (art. 824.º, n.º 2, CC) -- isto é, se não é oponível à execução --, como é que se pode entender que a mesma pode fundamentar embargos de terceiro -- ou seja, que é, afinal, oponível à execução?
MTS